Droga apreendida em megaoperação ibérica (Fernando Villar/EPA)
Por cnnportugal.iol.pt 14/04/23
Uma operação que marca "uma nova tendência no tráfico de cocaína" e que envolvia "cozinheiros", "engenheiros" e até um "notário". Pelo meio foi também utilizada uma empresa portuguesa
Lembra-se da série “Breaking Bad”? Uma operação mais sofisticada decorria bem perto do território português, tendo sido agora identificada. Trabalhava todo o dia e utilizava um complexo esquema de segurança e de rotação de pessoas para garantir que a produção não parava. A Polícia Judiciária e a Polícia Nacional espanhola desmantelaram o maior laboratório de produção de cocaína na Europa.
Tudo se passava a cerca de uma hora da fronteira portuguesa, em Pontevedra, onde vários “cozinheiros”, como a personagem Walter White, trabalhavam durante 24 horas por dia para produzirem até 200 quilos de droga todos os dias. A droga pura, essa, chegava à Europa através do Porto de Leixões, em Matosinhos.
“A organização criminal tinha um alto nível de sofisticação e os seus membros, que repartiam claramente as funções, utilizavam fortes medidas de segurança, como o uso de nomes falsos, veículos de transporte, disfarces para os condutores ou comunicações submetidas a um estrito protocolo de segurança”, revela o comunicado da polícia espanhola, que anunciou 18 detenções, todas em Espanha. Um vídeo partilhado pelas autoridades mostra bem a dimensão da operação, sendo possível perceber como operava o maior laboratório da Europa.
Na sequência da operação foram apreendidos 1.300 quilos de pasta base de cocaína, depois utilizada para a transformação em droga para consumo. “Trata-se da maior apreensão até agora fora das zonas de produção”, explica a polícia, que identificou ainda 151 quilos de cocaína em estado puro e mais de 23 mil litros de substâncias utilizadas para a transformação da droga.
Em paralelo foram bloqueadas pela justiça 17 propriedades, num valor total que se aproxima dos 1,7 milhões de euros. Há ainda 37 produtos financeiros na mesma situação, encontrando-se as autoridades a fazer a avaliação dos mesmos.
A investigação iniciou-se em outubro de 2022. Foi aí que, segundo a Polícia Nacional, os agentes “tiveram conhecimento da existência de uma organização assente em Las Palmas”. Desde cedo se percebeu que havia uma “potente infraestrutura” por detrás da operação, sendo que alguns dos membros da rede já estavam sinalizados pela polícia por causa de investigações anteriores, não só por apresentarem um alto nível de vida, mas também por ligações a cidadãos colombianos conhecidos por serem fornecedores de droga.
Polícia espanhola exibiu o material apreendido numa conferência de imprensa em Madrid (Fernando Villar/EPA)
Como funcionava a rede
Desde cedo foi possível perceber a existência de grandes movimentações que ligavam Las Palmas a Madrid, ligando depois a capital espanhola a Pontevedra. Tudo com recurso a “várias células de atuação para reduzir o contacto entre as mesmas e evitar levantar suspeitas”.
Grande parte da logística acontecia em Colmenar Viejo, localidade nos arredores de Madrid. Era lá que estava uma propriedade onde era armazenada uma grande quantidade de produtos químicos e de outros bens utilizados para a produção de droga.
A casa funcionava como uma espécie de plataforma de “arrefecimento” dos produtos, que ficavam lá durante um determinado período até que já não houvesse suspeitas sobre qual o seu destino. O objetivo era “armazenar as substâncias durante um tempo para detetar se existiam vigias sobre as mesmas e iludir uma possível ação policial”.
Dali os produtos seguiam em veículos de empresas logísticas, como camiões, para Pontevedra, onde eram utilizados para transformação da droga. Uma operação que ficava a cargo de um empresário basco que, “graças aos seus contactos”, servia como um facilitador para o transporte dos produtos em toda a Península Ibérica. “Um destes transportes permitiu aos agentes localizar um armazém industrial, localizado em Pontevedra, utilizado num primeiro momento como centro logístico para abastecer o megalaboratório e, posteriormente, para ‘arrefecer’ os materiais levados para o mesmo”, explica a polícia.
A parte da produção e transformação da droga ficava a cargo de colombianos e mexicanos. Os primeiros funcionavam como “cozinheiros” ou químicos do laboratório, enquanto os segundos contribuíam com “conhecimentos técnicos” para extraírem a coca da base, transportando-a depois em trituradores de pedras de grandes dimensões, que chegavam ao Porto de Leixões. Eram também os mexicanos os responsáveis por assegurar que a droga pura era convenientemente processada.
Feito todo esse processo, era a vez de os espanhóis entrarem em cena, ficando a cargo deles o “grosso da operação”, nomeadamente o transporte da Colômbia até ao armazém em Pontevedra. A parte da distribuição também ficava a cargo dos espanhóis.
Droga apreendida após interceção de camioneta à entrada de Madrid tinha selos do Super-Homem nos fardos (Fernando Villar/EPA)
Portugueses entram em cena
Mesmo tendo em conta toda a operação de segurança, que incluía mesmo postos de vigia cuidadosamente localizados, a polícia espanhola começou a detetar movimentos demasiado suspeitos. A presença de três homens de origem sul-americana em Pontevedra acabou por espoletar tudo, até porque já estavam sob forte vigilância das autoridades.
Foi também por essa altura que se deu conta de que uma empresa pretendia importar um triturador de pedras. O tal mecanismo no qual vinha a droga pura. A chegada da máquina a solo europeu seria feita pelo Porto de Leixões, com o tal empresário basco a ser a peça-chave em todo o processo. Criou uma empresa especificamente para esta atividade, permitindo assim a chegada da droga, que era estrategicamente colocada nos cilindros metálicos das máquinas. O Jornal de Notícias avança que a empresa em causa, que tem sede no Grande Porto, se dedica à importação de carros e que foi adquirida pelo cidadão basco em novembro do ano passado.
O tal triturador passou um total de três meses em Portugal, entre o Porto de Leixões e o armazém da empresa portuguesa. Ainda foi vistoriada pela Polícia Judiciária, mas as autoridades não encontraram nada de errado, ainda que tenham passado na mesma as suspeitas à polícia espanhola. Afinal, dentro da máquina estavam 1.600 quilos de pasta base de cocaína.
Chegava a vez de as autoridades portuguesas intervirem, até porque estava claro que a operação passava por Portugal. A Polícia Judiciária começou a analisar o caso, e depressa percebeu que havia constantes viagens e reuniões entre membros da organização criminosa e funcionários do Porto de Leixões.
Pouco depois de a máquina trituradora chegar a Pontevedra, a polícia sinalizou a chegada de dois mexicanos ao mesmo local. Vinham para Espanha para “desmontar a máquina e recuperar a cocaína escondida no interior”. Eram o “engenheiro”, que devia tirar a droga e passá-la para o laboratório, e o “notário”, uma pessoa de confiança da organização que comunicaria com os chefes.
A investigação progrediu e identificou também a chegada de seis colombianos, cuja entrada na Europa se fez com grande segurança. “Foram levados para um local seguro e, depois de lhes retirarem os telefones e esperarem um tempo, levaram-nos para o laboratório de forma faseada”, refere a polícia, apelidando estes homens de “cozinheiros”. Os seis trabalhavam em diferentes turnos, permitindo, assim, que o laboratório funcionasse durante todo o dia.
Transferida a droga para o laboratório, numa operação que implicou camiões, disfarces e até emissores Wi-Fi, para constante comunicação entre todos, estava montado o maior laboratório de cocaína da Europa.
A conclusão da investigação permitiu perceber que por detrás dos espanhóis estavam duas “potentes organizações criminosas de caráter internacional”, uma colombiana e outra mexicana, e que, segundo a polícia espanhola, se “uniram para poder financiar em conjunto um laboratório capaz de produzir seis mil quilos de cocaína em diferentes fases”.
Polícia espanhola apreendeu também vários objetos, desde balanças a microondas (Fernando Villar/EPA)
Eram os “señores”, os verdadeiros chefes do megalaboratório, que operavam tudo a partir da América do Sul e que, a partir de lá, davam instruções e ordens sobre como operar. A polícia espanhola afirma mesmo que os espanhóis eram “subalternos” dos sul-americanos, que “desembolsaram uma quantidade próxima a dois milhões de euros para estabelecer o laboratório clandestino”. Já os elevados custos de operação, como transporte e pagamento das casas, era pago através de entregas de dinheiro vivo.
O desmoronamento do esquema começou quando a polícia intercetou uma camioneta que transportava cerca de 100 quilos de cocaína. O veículo, que pertencia a uma “conhecida” empresa de transportes, fazia a ligação entre Pontevedra e a capital espanhola, tendo sido à entrada da Comunidade de Madrid que foi apanhado.
“Esta operação permitiu identificar uma nova tendência no tráfico de cocaína, na qual a substância é exportada sem ter sido submetida ao processo químico, que acontece em laboratórios químicos no país de destino”, afirma a Polícia Nacional.
As autoridades acreditam também que este desmantelamento terá evitado "efeitos devastadores" no ambiente, uma vez que os mais de 23 mil litros de químicos encontrados seriam, depois da transformação, deitados ao rio que corre junto à propriedade de Pontevedra.
Além da Polícia Nacional e da Polícia Judiciária, também a Direção Antinarcóticos da Colômbia ajudou no desmantelamento deste laboratório. As 18 detenções ocorreram em várias regiões espanholas: 11 na Galiza, 1 no País Basco, 4 em Madrid e 2 em Las Palmas.
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