Soldado ucraniano dorme num bunker em Chasiv Yar (Wojciech Grzedzinski/Anadolu via Getty Images) Marta Coropos Carvalho cnnportugal.iol.ptEnquanto vários países europeus mobilizam os cidadãos com manuais de sobrevivência e reforçam a Defesa, especialistas alertam para a falta de planeamento e resposta de Portugal face à ameaça de uma crise inesperada
E se, de repente, a vida como a conhecemos mudasse radicalmente? E se uma crise inesperada - um desastre natural, um conflito armado ou uma ameaça nuclear - nos forçasse a viver sem as comodidades do dia a dia que tomamos como garantidas?
Vários países europeus têm vindo a preparar os seus cidadãos para estes cenários de emergência, promovendo planos de ação, guias de sobrevivência e recomendações oficiais. Em Portugal, porém, essa mobilização parece inexistente. Estará o país a ficar para trás na preparação para o inesperado? Estamos a ignorar um risco real?
Numa altura em que o contexto geopolítico internacional reacende o debate sobre a possibilidade de um conflito armado na Europa, o major-general Isidro de Morais Pereira é claro: existe uma ameaça e Portugal está a subestimar os riscos.
“É uma ameaça à nossa forma de vida, à nossa liberdade, à nossa democracia e à nossa tolerância. Se queremos preservar a nossa forma de viver temos de nos proteger. Portugal deve seguir o bom exemplo de muitos outros países da Europa que já estão a tomar medidas e a orientar as populações”, afirma, em declarações à CNN Portugal.
O governo francês anunciou a criação de um manual de sobrevivência para preparar a população para "ameaças iminentes". O documento de 20 páginas será entregue a cada família e contém instruções de como se devem proteger e ajudar os outros em caso de ameaça.
Duarte Caldeira, presidente do Centro de Estudos e Intervenção em Proteção Civil, também não tem dúvidas: em Portugal existe uma “impreparação total” para estes cenários, resultado de um “défice tremendo de informação”.
“A generalidade dos cidadãos portugueses nunca passou por um conflito bélico nem recebeu qualquer tipo de formação nesse sentido. As pessoas não sabem que medidas de autoproteção devem adotar numa situação destas”, aponta.
Além da França, também a Polónia e a Finlândia - dois países da NATO que fazem fronteira com a Rússia - , juntam-se à Suécia e à Noruega na lista de países que já distribuíram folhetos semelhantes. O conteúdo dos documentos não difere muito: procuram preparar a população para um cenário de guerra.
“Em Portugal, não existe por parte das autoridades e do Estado este esforço para os portugueses adequarem os seus comportamentos ao risco. Em 2020 e 2021 fomos vítimas de uma pandemia gravíssima devastadora em relação à vida humana e percebemos que a sociedade não estava preparada para lidar com este risco. O Estado tem de agilizar mecanismos de informação de modo a que o cidadão esteja devidamente informado a todo o termo com os riscos a que está sujeito”, afirma Duarte Caldeira.
Os suecos, por exemplo, estão familiarizados há muito tempo com estes panfletos de informação pública: o primeiro foi emitido na Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, consultando o website português da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil só existe um único folheto de sensibilização disponível - e é relativo ao risco sísmico.
Numa situação de conflito armado, a capacidade militar por si só não é suficiente: é essencial que os cidadãos também estejam preparados. Para o major-general Isidro de Morais Pereira, em Portugal existe uma desvalorização da componente civil em favor da militar - “não basta ter umas forças armadas muito capazes se não se pensa como é que se deve proteger a população”, garante - o que, na sua visão, evidencia falhas na resposta a desafios deste género.
"A divulgação de manuais de sobrevivência como estes fazem parte da defesa civil do território, da defesa das populações, são medidas que podem contribuir muito para proteger as pessoas. Isto tem de ser feito em Portugal. O Sistema Nacional de Planeamento Civil de Emergência tem como tarefa fundamental planear, olhar para o futuro, traçar cenários, perceber como é que a sociedade como um todo deve estar pronta para reagir, não é só os militares. Este manual é uma necessidade que devia ser elaborada pelo Planeamento Civil de Emergência e distribuído por todos os cidadãos”, vinca.
A própria União Europeia anunciou o lançamento uma estratégia de preparação para tempos de crise. A iniciativa inclui um conjunto de orientações para os Estados-membros, de forma a garantir que tanto a população civil como as autoridades estão prontas para crises de larga escala, incluindo cenários onde as forças armadas necessitem de apoio civil.
A última secção do manual norueguês orienta os cidadãos sobre como se podem inscrever em forças de reserva, sejam elas militares ou comunitárias, permitindo-lhes desempenhar um papel ativo na defesa e no apoio à comunidade.
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Armazenamento de água e de um gerador para o caso de a fábrica de Avdiivka, na Ucrânia, voltar a ser bombardeada (Gaelle Girbes/Getty Images) |
Criação de um fundo de Defesa: algo a investir?
Além da aposta na preparação da população, vários países europeus estão a reforçar os seus orçamentos para a defesa. A França anunciou a criação de um fundo de 450 milhões de euros exclusivo para a Defesa, seguindo o exemplo alemão.
A Polónia, a Estónia, a Letónia - três dos quatro países da NATO que mais investem em Defesa -, a Finlândia e a Suécia também já anunciaram estar a considerar aumentar a despesa militar, beneficiando da flexibilização das normas fiscais da União Europeia para este setor, numa altura em que Bruxelas prevê que o dinheiro gasto em Defesa não entre para as contas do défice. Na opinião do major-general, Portugal deveria adotar uma abordagem semelhante.
“É essencial criar um fundo de Defesa para cobrir as principais lacunas do país e a prioridade deve ser a aquisição de sistemas de defesa antiaérea. Nós não temos nem capacidade para defender os órgãos de soberania: se Portugal for atacado por um míssil antibalístico dirigido à Assembleia da República, nós não temos maneira de o parar porque não temos nenhum sistema antiaéreo capaz de o detetar, não temos radares suficientemente potentes nem, depois, mecanismos para o interceptar no ar e para o destruir, não temos, ponto final”, nota.
Outra medida anunciada pela Alemanha é o desenvolvimento de uma aplicação para ajudar os cidadãos a localizar o bunker mais próximo em caso de ataque. Já Portugal não tem qualquer estrutura organizada para este efeito.
Também a Polónia, no seu manual de sobrevivência, deixa conselhos à população sobre sistemas de alerta, abrigos antiaéreos e segurança digital.
“O que é que nós temos em Portugal? Temos a rede metropolitana, temos em Lisboa algumas instalações militares que têm essa capacidade, mas também não são muitas, e temos alguns parques de estacionamento subterrâneos, mas tudo isto tem de ser adaptado. Portanto, há estruturas que existem, não por essa razão, mas que poderão ser adaptadas caso haja um ataque, um bombardeamento, para as pessoas se abrigarem, mas é preciso um plano sério para essa transformação. Não há uma rede organizada como nos outros países”, afirma o major-general Isidro de Morais Pereira.
A Comissão Von der Leyen apresentou, na semana passada, o plano para ReArmar a Europa sob o qual se pretende investir até 800 mil milhões de euros em armamento e outros equipamentos nos próximos quatro anos - com 650 mil milhões a virem dos orçamentos nacionais e 150 mil milhões de empréstimos com dívida comum garantida pelo orçamento comunitário.
Como é que os cidadãos comuns se podem preparar?
Face a um cenário de crise, podem faltar alimentos, deixar de haver água nas torneiras, falhar o abastecimento de combustíveis, existir várias falhas na Internet e redes móveis e até haver escassez de medicamentos.
Para o investigador da área da Proteção Civil, construir o nosso próprio “kit de sobrevivência” é indispensável e uma “responsabilidade” de cada cidadão.
Não devem faltar mantimentos não perecíveis e que forneçam “calorias suficientes”, um vasto abastecimento de água, enlatados, pilhas, um rádio para receber informações importantes das autoridades, lanternas, e conjuntos de primeiros socorros, incluindo medicamentos não sujeitos a receita médica, como analgésicos ou anti-inflamatórios de venda livre. Ter ainda uma duplicação das chaves de casa e do carro e fotocópias dos documentos de identificação pode ser também importante.
Como o cenário de confinamento é uma possibilidade, o governo francês aconselha ainda a ter jogos por perto, como cartas, para entreter os mais novos.
Contudo, Duarte Caldeira alerta que o kit não garante autonomia para mais que “meia dúzia de horas”. A resposta tem mesmo de ser organizada pelo Estado.
“Nenhuma família pode sustentar-se sozinha durante longos períodos de crise. Isso é inviável, é utópico, não existe. Têm de ser as autoridades devidamente organizadas a garantir esse apoio logístico que passa muito para além da atitude de cada um dos cidadãos perante situações desse tipo”, conclui.