
Para o ex - Primeiro - ministro de Cabo Verde, os principais protagonistas políticos terão que sentar-se em torno de uma mesa de reconciliação nacional, em busca de acordos e consensos fundamentais, que lhes permitam refundar o estado, garantir a paz e a estabilidade, reconstruir o país, abrir os caboucos e lançar os alicerces do desenvolvimento político-institucional e económico. «O povo da Guiné-Bissau merece esse ’sacrifício’ da sua elite política», conclui. Confira o conteúdo do artigo a seguir, também publicado na página de facebook de José Maria Neves.
GUINÉ-BISSAU E A ILOGICIDADE DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS EM TEMPOS DO COVID 19
Tenho uma grande amizade e simpatia pelo povo da Guiné-Bissau.
Gosto do seu crioulo, da sua comida, da sua música, das suas gentes, da sua tremenda beleza paisagística, da sua fina generosidade e sincera irmandade para com os caboverdianos.
Sempre que visitei aquele país irmão senti-me emocionado. Em vários momentos vieram-me lágrimas aos olhos e não pude conter a emoção por pisar o solo de uma das pátrias de Amílcar Cabral. Os guineenses consentiram enormes sacrifícios para a nossa libertação do jugo colonial.
É eterna, pois, a nossa gratidão.
O primeiro das ex-colónias portuguesas em África a ascender a independência (24 de Setembro de 1973), ainda antes da Revolução dos Cravos em Portugal.
Aliás, a luta armada de libertação da Guiné e Cabo Verde conduzida pelo PAIGC foi essencial para a mobilização dos Capitães de Abril e para o derrube do regime salazarista.
Mas, desde a independência, a Guiné-Bissau nunca teve estabilidade. Golpes de Estado, assassinatos de adversários políticos, crises económicas e instabilidades governativas caracterizam o quotidiano da vida política naquele país vizinho.
As instituições são frágeis, não há nem tolerância nem paciência para o exercício sereno e estável do poder político em democracia.
As disputas políticas são uma questão de vida ou morte. Quem ganha ganha tudo, quem perde perde tudo.
Ninguém está disposto a fazer a penosa travessia do deserto na oposição. Quem perde começa a conspirar no dia seguinte para não ficar arredado da mesa do poder. Tudo é líquido. Desfazem-se alianças, conspira-se e derrubam-se governos. A Constituição não conta, serve tudo e o seu contrário, conforme os interesses interpretativos de cada um. O processo político é ilógico e irracional. Os atores políticos não se entendem, a violência grassa e os desacordos são irreconciliáveis.
Nos meus três mandatos como Primeiro Ministro, trabalhei com os Presidentes Kumba Yalá, Henrique Rosa, Malan Bacai Sagná, Nino Vieira, Raimundo Pereira, Serifu Namadju e José Mário Vaz.
Perdi a conta dos Primeiros Ministros. Em Cabo Verde, recebi as visitas de Alamara Nhasé, Carlos Gomes, Júnior e Domingos Simões Pereira. Fiz três visitas oficiais, duas nos mandatos de Carlos Gomes Júnior e uma no de Domingos Simões Pereira.
As perspetivas de cooperação sempre foram muito boas, mas a instabilidade política não permitiu que se fizesse nada.
Cansaço da comunidade internacional
Do meu ponto de vista, verifica-se um cansaço da comunidade internacional em relação à Guiné-Bissau.
Há algumas semanas disse a um amigo que as instituições internacionais acabariam por reconhecer Umaru Sissoko Embaló e o status quo por ele criado.
Só assumiu o poder naquelas circunstâncias porque tinha fortes apoios no seio da CEDEAO. Logo após a divulgação dos resultados eleitorais provisórios, visitou vários países africanos, entre os quais Cabo Verde, para agradecer aos amigos o apoio concedido durante a campanha eleitoral.
Na sequência da posse “simbólica”, perante os seus apoiantes, fez visitas de Estado ao Senegal, Níger e Nigéria.
Para mim, conhecendo a forma como a CEDEAO funciona, o reconhecimento oficial de Umaru Sissoko Embaló era uma questão de tempo.
A comunidade internacional, a braços com a mais devastadora crise sanitária dos últimos cem anos, com graves consequências políticas, económicas e sociais, para além de cansada, já não tem tempo nem recursos para analisar e apoiar na resolução da questão da Guiné-Bissau, um dos países mais pobres do mundo.
A solução encontrada, que eu já previra, foi deixar como está para ver como é que fica.
Assim, foi sem surpresa que recebi o comunicado da CEDEAO e dos outros organismos internacionais e países. Nem vale a pena tentar identificar incoerências nos comunicados divulgados nos últimos dias. Infelizmente, nesse plano, não há lógica nem racionalidade. As decisões da CEDEAO, que viabilizaram a permanência de José Mário Vaz na presidência, após ter terminado o mandato, a nomeação do Governo de Aristides Gomes e as eleições presidenciais, também foram tomadas à revelia da Constituição e continham muitas contradições.
Do meu ponto de vista, a solução dos problemas da Guiné-Bissau passa pelos próprios guineenses. “Por mais quente que seja a água da fonte, ela não cozerá o teu arroz”, já tinha dito Amílcar Cabral.
Os principais protagonistas políticos terão que sentar-se em torno de uma mesa de reconciliação nacional, em busca de acordos e consensos fundamentais, que lhes permitam refundar o estado, garantir a paz e a estabilidade, reconstruir o país, abrir os caboucos e lançar os alicerces do desenvolvimento político-institucional e económico.
O povo da Guiné-Bissau merece esse “sacrifício” da sua elite política.
José Maria Pereira Neves
( Ex Primeiro- ministro de Cabo Verde)
Por asemana.publ.cv/