O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, defende que líderes podem impulsionar o multilateralismo para prevenir ou enfrentar crises como a Covid-19, as alterações climáticas e questões de segurança em diferentes países e regiões.
A entrevista, conduzida por Assumpta Massoi, da ONU News, marca o início da semana de alto nível da 76ª. sessão da Assembleia Geral. A conversa também destaca a situação do Afeganistão e a falta de confiança entre potências globais.
ONU NEWS (ON):Estou muito feliz por ter essa oportunidade hoje. No recente relatório “Nossa Agenda Comum”, o secretário-geral destacou o multilateralismo como a melhor ferramenta para reconstruir um mundo sustentável após a pandemia da Covid-19. Por que o senhor tem essa forte convicção de que o multilateralismo é o único caminho certo para o nosso mundo hoje?
António Guterres (AG): É um prazer estar aqui. Veja o que aconteceu mundialmente. O vírus derrotou o mundo, mais de um ano e meio depois do início da pandemia e ainda temos o vírus se espalhando por todos os lugares. Nós vemos um impacto dramático na vida das populações, o aumento drástico de desigualdades e as economias em situações difíceis.
Os mais vulneráveis sofrem enormemente e o mundo não foi capaz de se unir, definir planos globais de vacinação e reunir os países para produzirem vacina, ou produzirem a vacina junto à Organização Mundial da Saúde, com financiamento internacional e então negociar com a indústria farmacêutica e dobrar a produção, garantindo uma distribuição igualitária ainda na produção.
Isso não pode ser feito país por um país, de forma independente. Precisa ser feito por todos. O problema é que as instituições multilaterais que temos agora, essencialmente a OMS, não tem poder para obter informações sobre a situação.
Não temos poder de investigar a origem da doença. Então, precisamos resolver o problema de forma multilateral, trazendo todos juntos. Precisamos ter instituições multilaterais com forte capacidade de governança para prevenir e resolver alguns dos desafios que estamos enfrentando.
Quando falamos sobre o clima, é o mesmo. Estamos à beira do abismo. A verdade é que nosso objetivo foi claramente estabelecido pela comunidade científica. A temperatura não deve subir em mais de 1,5 grau até o final do século. Corremos o risco de não alcançar a meta porque os países não estão colaborando entre si. Há pouca confiança entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Há uma divisão entre o Sul e o Norte que dificulta assumir esses compromissos, reduzir emissões para ter reduções drásticas nas próximas décadas e alcançar a neutralidade em carbono até 2050.
Assim, precisamos reforçar o multilateralismo. Está claro que apenas em cooperação podemos superar nossos problemas. Mas, as instituições que temos, não possuem dentes. E por vezes, ainda que os tenham, como é o caso do Conselho de Segurança, não têm muito apetite.
Precisamos de uma rede de instituições multilaterais trabalhando juntas porque tudo agora está interligado. A rede precisa de mais autoridade para ser capaz de mobilizar toda a comunidade internacional e resolver os problemas que encaramos.
Esse é exatamente um dos objetivos da Nossa Agenda Comum: detectar quais são as populações e os bens públicos globais que precisam de melhor governança e trabalhar com o Estado-membro para achar mecanismos para deixar governos mais eficientes com vista a prevenir pandemias futuras e sermos capazes de combater as mudanças climáticas e abordar desigualdades do mundo de hoje.
ON: Vamos focar agora na Covid-19. O senhor tem insistido que ninguém está seguro até que todos estejam seguros. Mas a realidade é diferente especialmente na África, onde menos de 2% das pessoas foram vacinadas e em muitas partes do mundo, as vacinas não estão sendo usadas. O que deve ser feito para que as nações desenvolvidas ou mais ricas aceitem e ajam sobre o fato de que a luta contra o Covid-19 só pode ter sucesso como uma empreitada global comum.
AG: Como disse, precisamos de um plano de vacinação global, ser capazes de trazer para perto todos aqueles que produzem ou podem produzir vacinas e duplicar a produção para que tenhamos equidade de distribuição. Essa tem sido nossa vontade, infelizmente, não alcançada ainda.
O resultado é o que você falou. O meu país [Portugal], que vem sendo muito bem-sucedido, já vacinou 80% da população. Mas, como você disse, há países na África em que esse número não chega a 2%. E o vírus segue se espalhando à escala global. E está em mutação. Está mudando e há o risco que, em determinado momento, uma dessas variantes será um vírus resistente às vacinas usadas atualmente.
Nesse dia, ninguém mais estará seguro, no Sul ou no Norte, nem nos países onde todos forem vacinados. Então, essa é a razão para entendermos que a prioridade deve ser vacinar todos em todos os lugares. Está claro que apenas em cooperação podemos superar nossos problemas. Mas, as instituições que temos, não possuem dentes.
Isso também explica o porquê do nosso apelo para que medidas fossem tomadas para garantir que 70% da população mundial fosse vacinada até metade do próximo ano. E 70% de forma igualitária, não 1% em um lugar e 20% em outro.
ON: Vamos falar de Afeganistão agora, onde a situação é de grande preocupação, especialmente para mulheres. O [governo] Talibã não possui nenhuma mulher ou representantes de outros grupos étnicos. Que estratégia o secretário-geral acredita que as Nações Unidas e seus parceiros devem adotar para ajudar o povo afegão?
AG: A situação é imprevisível. Todos queremos que o Afeganistão tenha um governo inclusivo. Todos queremos que o Afeganistão respeite os direitos humanos e, principalmente, os direitos das mulheres e meninas. Todos queremos que Afeganistão nunca mais seja um centro para terroristas. Todos queremos que o Afeganistão combata o tráfico de drogas. Mas é difícil prever o que vai acontecer.
© Acnur/Yama Noori
Eu acredito que as Nações Unidas possuem uma tarefa e essa tarefa é encetar o diálogo. Engajar baseado no que podemos entregar. O que podemos entregar é ajuda humanitária essencial, agora. Debater para explicar ao Talibã o quão importante é para eles ter um governo inclusivo, com diferentes tipos de etnias e, claro, com mulheres. Para ter os direitos de mulheres e meninas respeitados, mulheres podendo trabalhar. Precisamos mobilizar a comunidade internacional para providenciar ajuda humanitária. O povo afegão está sofrendo muito.
Meninas devem ter acesso a todos os níveis de educação e, ao mesmo tempo, cooperar com a comunidade internacional no combate ao terrorismo de forma efetiva. Então, temos que nos envolver com o Talibã e é isso que temos vindo a fazer.
Como sabem, enviamos o Martin Griffiths, nosso coordenador de emergências e subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, para Cabul para dialogar com a liderança do Talibã sobre como garantir a entrega de ajuda humanitária em ambiente seguro e de forma igualitária, sem discriminações de qualquer tipo e, ao mesmo tempo, debater outros aspectos mencionados acerca de direitos humanos e outras formas de cooperação também é essencial.
Então, precisamos de encetar diálogo com eles. Não sabemos como as coisas devem desenvolver, mas sabemos que se não nos envolvermos, elas provavelmente seguirão em direção errada.
Precisamos mobilizar a comunidade internacional para oferecer ajuda humanitária. O povo afegão vem sofrendo muito. É vital que levemos comida, medicamentos e outras formas de ajuda essencial aos afegãos para evitar uma situação catastrófica no país.
Outra preocupação que temos é que devido a diferentes medidas e sanções que existem, estas possam estrangular completamente a economia.
ON: Vamos voltar à questão de igualdade de gênero. Em muitos países, mulheres ainda são deixadas de lado em diversas frentes. O secretário-geral fez grandes avanços na questão de paridade de gênero, aqui nas Nações Unidas. Muitos críticos da ONU avaliam que deveríamos puxar ainda mais essa agenda. Quais são as ações que desejaria ver implementadas para igualdade de gênero até 2030?
AG: Há muitas dimensões na representatividade feminina em diferentes órgãos nas Nações Unidas e nos níveis nacional e internacional. As questões de apoio a mulheres empreendedoras e o empoderamento econômico de mulheres combatendo violência contra gênero. Como você sabe, a situação é terrível em áreas de conflito. Mas em muitas circunstâncias, em casa, ainda que sejam abolidas todas as leis discriminatórias que ainda existem em muitos países onde haja igualdade, ainda não está na legislação.
Todas essas questões são prioritárias para nós, mas há uma questão central, que é o poder. O poder hoje no mundo é essencialmente concentrado por homens e com uma cultura masculina dominante. E o poder geralmente não é dado, é tomado. Então, precisamos que as mulheres continuem lutando e que homens entendam que só com igualdade de gênero o mundo pode melhorar e resolver seus problemas. Eu acho que é hora de realmente reunir esforços para garantir que nós criamos um mecanismo de segurança eficaz no Sahel.
Precisamos que os homens se envolvam efetivamente na luta por igualdade de gênero. E, nessa questão de poder, na ONU nós temos agora paridade, número igual entre homens e mulheres no ranking de 180 líderes da ONU e entre os líderes em todo o mundo.
Acreditamos que se nos órgãos em que houver poder, houver paridade, inevitavelmente há consequências. Devemos ter o mesmo nos governos, nos parlamentos, em todas as instituições. Precisamos ter homens e mulheres em total igualdade onde decisões são tomadas, onde podermos, para ter certeza de que haverá mudança. O desequilíbrio de poder é o resultado de séculos de dominação masculina e do patriarcado.
ON: Outro grupo marginalizado é a juventude. O secretário-geral tem chamado a todos para abrir aos jovens um lugar à mesa, enquanto uma nação se esforça para construir um mundo inclusivo e equitativo para todos. O que gostaria de ver os próprios jovens fazerem para garantir que eles tenham essa oportunidade?
AG: Acho que os jovens agora têm enormes instrumentos para se unirem e fazerem sua voz ser ouvida. Os jovens dominam as redes sociais muito mais do que a minha geração. Os jovens têm uma enorme capacidade de mobilização como temos visto nos movimentos contra o racismo, contra as mudanças climáticas contra desigualdades de diferentes tipos, o movimento pela igualdade de gênero, onde a geração jovem é extremamente progressista em relação aos mais velhos.
Precisamos criar os mecanismos institucionais para permitir que a voz dos jovens esteja mais presente onde as decisões são tomadas. E é por isso que, novamente, na Agenda Comum, temos uma série de medidas importantes para dar voz e influência aos jovens na forma como a ONU funciona.
Unicef/Naua /Jovens voluntárias na Jordânia
ON: Vamo-nos concentrar agora na África, nas questões de conflito. O secretário-geral alertou recentemente que eventos no Afeganistão também podem influenciar o que acontece a seguir em certos pontos voláteis na África, em particular, em lugares em que a ideologia extremista está conduzindo conflitos. Poderia explicar como vê isso?
AG: Se olharmos para a situação como o Sahel, eu estou muito preocupado. Vemos uma redução da presença francesa. Vimos o Chade movimentando tropas da área mais perigosa. Vemos os grupos terroristas encorajados pela situação no Afeganistão, a vitória do Talibã. Eu acho que é hora de realmente reunir esforços para garantir que nós criamos um mecanismo de segurança eficaz no Sahel.
É por isso que sempre defendi uma forte força africana, da União Africana, juntamente a organizações regionais, com o apoio do Conselho de Segurança. Uma resolução do Capítulo 7 e com contribuições. obrigatórias para garantir que a força seja efetivamente apoiada.
Mas também sabemos que a força militar não é suficiente. Precisamos ter desenvolvimento, precisamos combater o impacto das mudanças climáticas e precisamos fazer de tudo para melhorar a governança da área.
Precisamos realmente aumentar nossos esforços e eu apelei a comunidade internacional para apoiá-la plenamente nas diferentes dimensões. Na segurança, na dimensão do desenvolvimento, na dimensão humanitária, nas dimensões de governança e nos direitos humanos. Creio que este é um momento de tocar o alarme. É um momento de fazer com que os líderes compreendam que estamos à beira do precipício e estamos a movimentar-nos na direção errada.
Se fizermos isso, seremos capazes de derrotar o terrorismo no Sahel. Mas se mantivermos a situação que temos hoje, estou muito preocupado com esse desenvolvimento. E o mesmo pode ser dito sobre outras partes da África, onde o que aconteceu no Afeganistão pode encorajar agora grupos terroristas ou outros movimentos rebeldes que se tornam mais agressivos.
ON: E sobre a segurança global, paz e segurança globalmente, à medida que o mundo continua a lidar com mais ameaças à segurança. O secretário-geral falou sobre a questão do extremismo e outras formas de conflitos, do terrorismo e de armas de destruição em massa. O que mais a ONU pode fazer para tornar o mundo um lugar mais seguro?
AG: Bem, o maior problema hoje é a falta de confiança. E especialmente a falta de confiança entre as grandes potências. Você vê dificuldades do Conselho de Segurança em tomar decisões adequadas com as diferentes crises no mundo.
Com essa divisão entre as grandes potências e com essa falta de confiança, o que vemos é um ambiente de impunidade, as pessoas pensam que podem fazer o que quiserem. Precisamos reconstruir a confiança, e precisamos reconstruir a confiança entre aqueles que têm mais influência nos assuntos mundiais para poder cooperar para garantir que somos capazes de unir a comunidade internacional no enfrentamento das crises que estão se multiplicando agora.
Minusma/Sylvain Liechti / Soldados de paz da Minusma nas ruas de Kidal, no Mali
Vemos mais golpes de Estado, novas situações de conflito, instabilidade social e agitação. Precisamos de um Conselho de Segurança que seja unido e que seja forte. E para isso, precisamos de um diálogo sério entre as grandes potências para tentar encontrar um ponto em comum.
ON: O debate geral é na próxima semana, o secretário-geral tem alguma mensagem, ou qual é a sua mensagem-chave para os líderes mundiais que estão vindo?
AG: Creio que este é um momento de tocar o alarme. É um momento de fazer com que os líderes compreendam que estamos à beira do precipício e estamos a movimentar-nos na direção errada.
Vejamos a injustiça e a desigualdade na vacinação e com os problemas que isso causa para combater efetivamente o Covid-19. Vejamos que ainda não há um acordo em questões essenciais para garantir o êxito da COP-26 e corremos o risco de uma catástrofe do ponto de vista climático.
Vejamos os conflitos que têm se multiplicado nos últimos tempos. Guerras e golpes de Estado numa sensação de impunidade. É preciso que os líderes, especialmente das potencias mais importantes, acordem e compreendam que esse é o momento de mudar de rumo e unir esforços para enfrentar os terríveis desafios que o planeta e nós – as mulheres e os homens – estamos a enfrentar.
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