Por João Guerreiro Rodrigues cnnportugal.iol.pt
Telemóveis, headphones, carregadores, veículos, computadores portáteis e até smartwatches. Todos estes dispositivos podem, em determinadas circunstâncias, ser transformados numa arma
De um momento para o outro, milhares de explosões ocorrem em simultâneo, tirando a vida a mais de 40 pessoas e ferindo 3.500. A operação, que se acredita ter sido orquestrada pelos serviços secretos israelitas, atingiu o seu objetivo, mas trouxe ao de cima uma nova realidade que os especialistas temem ser um “precedente muito perigoso”. Num mundo marcado pelo crescimento de tensões entre superpotências e com a Rússia a aumentar as campanhas de sabotagem na Europa, todos os objetos podem vir a ser armas de crime e os civis, quer queiram quer não, são parte dos conflitos modernos.
“Neste momento, qualquer tecnologia está disponível para ser utilizada como uma arma, inclusive um telemóvel. Hoje, com apenas um telemóvel, é possível fazer ataques de grandes dimensões que afetam o nosso modo de vida. Hoje um cidadão pode ser instrumentalizado para cometer um crime sem saber. Hoje tudo é uma arma”, explica à CNN Portugal Ana Miguel dos Santos, especialista em assuntos de segurança.
Durante anos, os serviços secretos militares de Israel utilizaram algumas das mais sofisticadas técnicas de ciberespionagem para espreitar e até mesmo travar os desenvolvimentos nucleares iranianos, como um vírus informático que ficou conhecido como o Stunxnet. Israel chegou mesmo a utilizar um robô assistido por um sistema de Inteligência Artificial controlado remotamente por satélite para assassinar o cientista iraniano responsável pelo programa nuclear iraniano.
Só que o ataque de Israel com recurso a pagers e walkie-talkies foi diferente e mostrou apenas “um pouco” daquilo que é possível fazer. Numa operação planeada e executada durante mais de dois anos, os serviços secretos israelitas identificaram na desconfiança do líder do grupo terrorista uma vulnerabilidade. Ciente das capacidades tecnológicas israelitas, Hassan Nasrallah temia que a utilização de telemóveis por parte dos militantes do Hezbollah deixasse um “rasto” digital que podia colocar em causa a sua organização. Os seus medos não eram infundados.
A solução encontrada pelo Hezbollah era simples e parecia vir a ser eficaz: operar com os sistemas mais rudimentares possíveis, para que Israel fosse incapaz de os intercetar ou detetar as suas localizações. Israel viu nesta mudança uma oportunidade e criou uma rede de empresas fachadas para mascarar a presença dos serviços secretos e vender ao próprio Hezbollah os pagers e os walkie-talkies que estes queriam. Só que as baterias destes dispositivos continham o explosivo PETN, de acordo com três fontes dos serviços secretos israelitas, entrevistadas pelo New York Times sob a condição de anonimato. O resultado foi uma das ações de espionagem mais surpreendentes dos últimos anos.
“Este ataque abriu um novo capítulo e corre o risco de alimentar a imaginação para o futuro. Depois disto, tudo é possível. Não são só os pagers e walkie-talkies. Computadores, carros, rádios, frigoríficos e telemóveis são formas de atacar. O Ocidente tem de ter particular cuidado, porque temos inimigos a querer atacar o nosso modo de vida. É um precedente muito perigoso”, alerta o major-general Isidro de Morais Pereira.
A situação torna-se ainda mais grave com os alertas do líder da CIA, Bill Burns, e do líder do MI6, Richard Moore, que admitem que o Ocidente enfrenta um “conjunto de ameaças sem precedentes”, com a Rússia a aumentar significativamente uma campanha de sabotagem na Europa. O líder dos serviços secretos noruegueses reforçou ainda mais este alerta, garantindo que o nível de risco aumentou para as ameaças de guerra híbrida.
A hipótese de o Ocidente levantar as restrições à Ucrânia para a utilização de armas de longo alcance contra alvos militares em território russo “pode aumentar significativamente este risco”, de acordo com os especialistas. O próprio presidente russo, Vladimir Putin, alerta que essa possibilidade significaria a participação direta da NATO no conflito, o que daria, no entender do Kremlin, a legitimidade para agir contra a liderança militar e política ocidental.
A Rússia de Putin não é estranha a assassinatos dentro e fora do país. No passado mês de julho, os serviços secretos americanos e alemães travaram um plano para o assassinato de Armin Papperger, diretor da empresa Rheinmetall, maior fabricante de armas europeu e um dos principais fornecedores de munições à Ucrânia.
“Os serviços secretos russos são mestres em guerra híbrida e não precisam que ninguém lhes ensine neste capítulo. Temos obrigação de estarmos alerta. Não é descabido ocorrer uma infiltração russa na cadeia de abastecimento. Estas redes são cada vez mais complexas e nós já não sabemos quem fabrica o quê”, explica o major-general Isidro de Morais Pereira.
De forma semelhante ao que aconteceu no Líbano, com Israel a criar uma complexa teia de empresas na cadeia de fornecimento para esconder a sua presença e vender dispositivos armadilhados ao Hezbollah, o mesmo está ao alcance dos serviços secretos russos. O GRU, serviços secretos militares russos, têm desenvolvido esforços em conjunto com o FSB na criação de empresas fachada em países da Ásia Central para conseguir comprar bens sancionados e exportá-los para a Rússia.
Estas mesmas estruturas permitem esconder do Ocidente a origem do fabrico de determinados produtos, enganando os clientes. Uma determinada empresa ou instituição pode estar a comprar um produto a uma empresa sediada em Hong Kong, mas que na verdade é a fachada de uma empresa russa, que tem como objetivo exportar um determinado produto construído para fazer detonar uma pequena carga de explosivos assim que receber um sinal.
A situação é torna-se ainda mais complexa à medida que os exércitos modernos aumentam a sua dependência de sistemas comerciais civis, como drones ou sistemas de comunicações, que são comprados a fornecedores um pouco de todo o mundo. Esta realidade permite que as cadeias de fornecimentos sejam exploradas por potenciais adversários.
“Este nível de conexão entre pessoas, a facilidade com que nos movimentamos, mesmo existindo um excesso de informação e de conhecimento, faz com que os cidadãos estejam cada vez mais vulneráveis, mesmo que não o sintam. A Rússia já entrou na Europa”, defende Ana Miguel dos Santos.
Esta sexta-feira, o Departamento do Comércio dos Estados Unidos da América anunciou que vai propor uma proibição de todos os veículos que utilizem tecnologias especificas russas e chinesas, devido a receios relacionados com a segurança nacional. Os investigadores norte-americanos alegam que foi encontrada “uma vasta gama de riscos” ligados ao hardware chinês e russo em veículos comercializados no país, incluindo a possibilidade de sabotagem remota através de hacking e capacidade de roubo de dados pessoais dos condutores.
“Em situações extremas, um adversário estrangeiro poderia desligar ou assumir o controle de todos os seus veículos que operam nos Estados Unidos, todos ao mesmo tempo, causando acidentes (ou) bloqueando estradas”, admitiu Gina Raimondo.
E, na sociedade, os possíveis vetores de ataque multiplicam-se. Telemóveis, headphones, carregadores, veículos, computadores portáteis e até smartwatches. Todos estes dispositivos podem, em determinadas circunstâncias, ser transformados numa arma. Na verdade, as opções comerciais de spyware não só são cada vez maiores como são cada vez mais potentes, capazes de explorar uma vasta gama de vulnerabilidades em todo o tipo de dispositivos. Estes ataques são mais fáceis de conduzir, uma vez que não necessitam de um acesso físico ao dispositivo alvo e, em muitos casos, aceder à informação da vítima pode ser bem mais valioso.
À semelhança dos pagers e dos walkie-talkies, os telemóveis e outros dipositivos podem ser transformados em explosivos, ao longo da cadeia de abastecimento. No entanto, os especialistas não acreditam que estas técnicas sejam colocadas em prática em larga escala contra a população civil, correndo o risco de atingir alvos concretos, como líderes militares ou políticos.
“Penso que, a longo prazo, existe um potencial para vermos mais ataques deste tipo, não dirigidos a civis, mas geralmente dirigidos a outros atores militares. O mundo está muito mais perigoso”, afirma o major-general Isidro de Morais Pereira.
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