quinta-feira, 25 de abril de 2024

Historiador Julião Soares Sousa: “INDEPENDÊNCIAS DAS COLÓNIAS PORTUGUESAS DE ÁFRICA FORAM A CONSEQUÊNCIA DA REVOLUÇÃO DOS CRAVOS EM PORTUGAL”

 O DEMOCRATA  25/04/2024 
O especialista em história contemporânea e investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra (CEIS20), Julião Soares Sousa, afirmou que as independências das colónias portuguesas de África, sem sombras de dúvidas, foram uma consequência da revolução dos Cravos em Portugal.

“Mas também não sei até que ponto a Proclamação do Estado da Guiné-Bissau, feita solenemente a 24 de Setembro de 1973 em Boé teria influenciado a queda do regime em Portugal. Penso que terá tido alguma influência e, por conseguinte, influenciado a própria independência das outras colónias. É que a partir do momento em que há uma proclamação unilateral que concitou o apoio de mais de 80 países em poucos dias, houve uma alteração profunda na relação de forças”, explicou o historiador guineense doutorado na história contemporânea, respondendo a questão sobre a influência da revolução dos Cravos na independência das colónias de Portugal, em África.

O historiador guineense que vive em Portugal foi convidado a debruçar sobre a influência da revolução de 25 de abril de 1973, em Portugal, nas independências das colónias portuguesas em África, como também as ilações que se podem tirar deste ato histórico que contribuiu para a implementação da democracia em Portugal.

O Democrata (OD): A Revolução de 25 de Abril, conhecida como a Revolução dos Cravos, que derrubou o regime fascista instalado desde 1933 em Portugal, abriu caminho para a implementação do regime democrático. Pode explicar-nos de forma detalhada o nascimento deste movimento de capitães que rumores indicam ter sido na Guiné-Bissau?

Julião Soares Sousa (JSS):
O chamado movimento dos capitães ou Movimento das Forças Armadas (MFA) que estaria por detrás da Revolução dos Cravos em Portugal começou como um levantamento corporativo de oficiais e milicianos que, grosso modo, tinha participado nas campanhas militares nas colónias em África e que reivindicavam os seus direitos corporativos. Havia também o tempo de contagem do Serviço militar em Campanha e a questão remuneratória. Tinham sido publicados vários diplomas (a Lei do Serviço Militar 2135 de 11 de Julho de 1968; decretos-lei n.º 353 e n.º 409, de julho e agosto de 1973, respetivamente) que visavam atenuar a falta de homens que as campanhas de África exigiam.

Nem mesmo a posterior suspensão dos decretos pelo regime de Marcello Caetano foi suficiente para frenar a marcha em direção à deposição do regime. Isso despoletou uma série de reuniões clandestinas que culminariam com a criação do MFA e com o advento da Revolução. Os revoltosos pretendiam também o fim das guerras coloniais, a democratização e a criação de vários órgãos como a Junta de Salvação Nacional e mais tarde, depois da consolidação da Revolução, de um Governo Provisório.

A Guiné seria um palco importante nessa contestação ao regime, sobretudo quando em junho de 1973, o regime de Marcello Caetano decidiu organizar um Congresso dos Combatentes no Porto, com o intuito de amealhar o apoio dos militares à sua política colonial. Mais de 400 combatentes portugueses estacionados na Guiné contestaram a realização do referido Congresso e chegaram mesmo a enviar um telegrama ao congresso. Muitos combatentes (do quadro) tentaram inscrever-se de forma a forjar outras conclusões do Congresso e foram proibidos. Creio que isso teria sido também um elemento detonante. Havia já uma convicção dos militares portugueses nas colónias, sobretudo na Guiné de que a guerra não tinha solução militar, mas política. Essa contestação veio pôr a descoberta a fraqueza do regime e a vulnerabilidade em que se encontrava, quer em Portugal, quer nos espaços de colonização portuguesa em África, mormente na Guiné-Bissau.

OD: É verdade que as pesadas derrotas ou mortes de tropas portuguesas nos campos de batalha na Guiné, em Moçambique e em Angola motivaram essa revolta de soldados?


JSS: A situação militar no terreno não era a mais favorável para o exército colonial português. Na Guiné, entre 1972 e 1973 tinha-se agravado irremediavelmente com a introdução, por parte do PAIGC, de meios militares cada vez mais sofisticados com os “Grad” e os “Strella”. Tinha-se chegado a um ponto de não retorno, com o exército colonial português praticamente remetido a uma situação defensiva.

A dureza da guerra pode ter sido uma outra detonante, face à rigidez do regime que desde há muito vinha sendo contestado a nível doméstico, em Portugal, umas vezes visivelmente outras subterraneamente/clandestinamente.

OD: Qual é a influência da Revolução dos Cravos nas independências dos países africanos de língua oficial portuguesa?

JSS: Penso que já respondi a esta pergunta algures.

OD: A Guiné-Bissau proclamou unilateralmente a sua independência em 24 de setembro de 1973, mas foi reconhecida pelo governo português a 10 de setembro de 1974. Pode-se afirmar que a Revolução dos Cravos influenciou a independência dos países africanos, dado que todos obtiveram a independência depois deste acontecimento histórico?

JSS: Sim, em parte as independências das colónias portuguesas de África foram uma consequência da Revolução dos Cravos em Portugal, sem sombra de dúvidas. Mas também não sei até que ponto a Proclamação do Estado da Guiné-Bissau, feita solenemente a 24 de setembro de 1973 em Boé teria influenciado a queda do regime em Portugal, penso que terá tido alguma influência e, por conseguinte, influenciado a própria independência das outras colónias. É que a partir do momento em que há uma proclamação unilateral que concitou o apoio de mais de 80 países em poucos dias, houve uma alteração profunda na relação de forças.

Mais tarde ou mais cedo os outros movimentos iam seguir o mesmo passo dado pelo PAIGC na Guiné. Com a Revolução dos Cravos, a situação da independência tornou-se praticamente inadiável. Relembro, contudo, que, quando foi das negociações para a independência da Guiné, as duas delegações, a portuguesa e a do PAIGC, tiveram uma acesa discussão sobre a data em que essa independência deveria ocorrer.

O PAIGC sugeria que fosse no dia 12 de Setembro de 1974 que era a data do nascimento de Amílcar Cabral. Portugal recusou a proposta, talvez por ser uma data simbólica para o PAIGC e ao invés sugeriu que fosse no dia 10 de Setembro. A partir daí não foi possível evitar as negociações com os movimentos de libertação de Angola e de Moçambique. Os processos de independência não foram lineares.

OD: Como eram as colónias de Portugal antes de 25 de abril e o que mudou depois da chamada Revolução dos Cravos?

JSS: Bom, as colónias de Portugal em África eram territórios profundamente amordaçados. Não havia liberdade de criação de partidos. Aliás mesmo em Portugal os partidos da oposição que haviam estavam todos na clandestinidade. Havia discriminação racial e exclusão da grande maioria da população da cidadania e do gozo de direitos civis e políticos. Havia igualmente, a exploração da mão-de-obra, trabalho forçado, que apesar das reformas que o regime colonial tentou promover foram apenas cosméticas. No caso concreto da Guiné, o próprio Spínola, que foi Governador da então “província” ultramarina, chegou a afirmar que a subversão local se aproveitou muito dessas condições objetivas e subjetivas que enumeramos acima. É evidente que a mudança operada e que deve constituir motivo de orgulho para todos nós é que se conquistou a independência.

Apesar disso, são ainda inúmeros os problemas e os obstáculos a enfrentar. Por exemplo, atacar a pobreza extrema, a exclusão social, resolver a questão do emprego jovem, fixar as populações localmente através da geração de empregos, construir infraestruturas rodoviárias que integrem o país e as ligações com os países vizinhos; apostar seriamente na formação de quadros e tentar fixá-los no nosso país, melhoria das condições salariais, entre outras muitas coisas. Se não formos capazes de fazer isso teremos o nosso sonho de desenvolvimento posto em causa por muitas gerações. Porque neste mundo a competição pelos quadros e pela mão-de-obra é cada vez maior. Se não soubermos gerar as condições para competir estaremos irremediavelmente perdidos.

OD: Há quem diga que a Revolução de 25 de abril foi apenas um pretexto para salvar a pele dos portugueses e não dos cidadãos dos países dominados. Concorda com essa narrativa?

JSS: Não acredito nessa narrativa. Vale a pena lembrar que a guerra colonial em três frentes de batalha (Guiné, Angola e Moçambique), principalmente na Guiné, também pesou nessa equação. Havia militares portugueses a combater nessas três frentes de guerra que estavam cansadas da guerra em África e para os quais os sacrifícios que estavam a ser consentidos em África não se justificavam.

No processo da Revolução em Portugal, muitos dos militares que tomaram parte no movimento das Forças Armadas estiveram ou passaram pela Guiné. Assim sendo, experimentaram as agruras da guerra num terreno considerado difícil. Se se tiver em conta que um dos objetivos da própria revolução era a democratização do país, então não se percebe como seria possível democratizar sem descolonizar. As colónias foram e eram uma autêntica pedra no sapato do regime colonial. E sê-lo-iam para qualquer regime, incluindo o democrático. Por isso devemos estabelecer sempre uma ligação entre a Revolução, a Democracia e a Descolonização.

OD: Que ilações se podem tirar dos 50 anos depois desta revolução, sobretudo para os países como a Guiné-Bissau em que se fala de mãos ocultas dos militares na administração do país?

JSS: Considero que os países africanos estão a fazer o seu percurso. Os processos de independência não são fáceis. As próprias revoluções que visam a transformação radical das estruturas coloniais e o advento de novas estruturas são processos complexos. Mesmo em Portugal houve muitos problemas depois da Revolução dos Cravos até o país se estabilizar e ter o sistema democrático que hoje constitui um dos alicerces da estabilidade do país. Então se olharmos para o passado de Portugal também houve momentos de instabilidade que duraram anos.

Estou a pensar por exemplo na situação pós-Revolução Republicana de 1910. Não quero com isso dizer que a instabilidade é uma fatalidade. Não, não é e não deve ser um estigma. O que importa é que haja consensos nacionais alargados para que não se perca a oportunidade de alicerçar o nosso sistema político democrático e assente no parlamentarismo e vontade política para elevar as condições de vida material das populações. Acho que todos somos responsáveis nesse processo de construir um país em que impere a irmandade, a paz e o progresso que foi um dos lemas, se se quiser, da luta de libertação nacional.

Por: Assana Sambú

Sem comentários:

Enviar um comentário