“Uma guerra entre xiitas e sunitas em Portugal? Não existe guerra nenhuma”, diz imã da Mesquita Central de Lisboa
David Munir lembrou que, atualmente no Islão, qualquer pessoa que levante a voz contra o regime, passa a ser considerado não islâmico, situação que lamenta
O imã da Mesquita Central de Lisboa, sheik David Munir, admitiu hoje à agência Lusa que tem “muita dificuldade” em ver um país islâmico exemplar, sobretudo no domínio dos direitos humanos, afinal, um dos pilares do Islão.
“Na teoria, o regime islâmico é baseado na tolerância, na misericórdia e na igualdade. […] Mas a questão que se coloca é que, no Islão, à partida, para dizer a verdade, eu tenho muita dificuldade de ver um país Islâmico exemplar. Em tudo. Nos direitos humanos e, acima de tudo, em valorizar o próximo”, afirmou o sheik Munir.
Numa entrevista à agência Lusa, o imã, que sábado foi um dos oradores de uma conferência subordinada ao tema “A Reforma no Islão”, organizada pela Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL), Observatório do Mundo Islâmico (OMI) e Centro Cultural Colinas do Cruzeiro (CCCC), frisou, porém, que o regime islâmico tem consagrado os direitos de igualdade, liberdade de expressão, liberdade de crença e tolerância.
“Cabe ao califa, que já não existe, ao emir, implementar. Tem de estar disposto a ouvir várias opiniões (…) na assembleia de pessoas, dos sábios ou dos mais entendidos ou dos líderes, os que têm a liberdade de dar a sua opinião”, explicou.
David Munir deu como exemplo o caso da democracia, quando, em eleições, um partido ganha eleições democraticamente com maioria absoluta, que lhe permite “fazer e desfazer”, sem dar hipóteses às restantes forças políticas representadas no Parlamento.
“Nos países islâmicos, temos militares e temos ditadores e temos pessoas que querem o poder e que não o querem deixar. Quando há uma pequena abertura para a possibilidade de haver um governo civil, há sempre golpes de Estado. Este é o mundo islâmico atual, em que a democracia não entra. Isto é assim, mesmo que a pessoa queira [mudar], não dura muito”, argumentou.
Para o sheik Munir, atualmente no Islão qualquer pessoa que levante a voz contra o regime, passa a ser considerado não islâmico, situação que lamenta.
"As opiniões das pessoas são válidas até a pessoa conseguir provar que não vai contra os princípios básicos do Islão. Mas, do outro lado, o que acontece nos dias de hoje, em termos gerais, qualquer pessoa que dê uma opinião diferente da do líder ou do partido que está no poder, não tem hipótese”, defendeu.
Adipolo
“Se for um país um pouco mais pacífico, tudo bem, tem o seu espaço, mas há pessoas que passam por represálias, põem a sua vida em risco, não se pode dizer nada, não se pode falar nada. Isto não tem nada a ver com o Islão”, acrescentou, admitindo que foi assim que surgiram movimentos extremistas, como o grupo Estado Islâmico, os Talibã ou o Al Shabbab.
“A falta de conhecimento, o querer o poder a todo custo, alguma influência também do Ocidente para criar uma certa instabilidade, enfim, se misturarmos tudo isto, temos uma boa refeição. No mundo Islâmico, ou em alguns países islâmicos, quando alguém sofre política, social e economicamente, quando se perde tudo, não tem razão de viver, então vai-se criando psicologicamente uma certa raiva, um certo ódio contra aqueles que estão no poder. Do outro lado, vem um grupo que usa o Islão e diz que vai manter a justiça ou igualdade. Dão alguma esperança à pessoa que perdeu quase tudo e esta acaba por se alinhar com alguma esperança. Mas depois, também acaba por ver que também não são diferentes dos outros”, explicou.
No entanto, na opinião de Munir, quem mais sofre com os grupos terroristas islâmicos “são os próprios muçulmanos”.
“A vida é sagrada para todos nós. Mas como há muçulmanos que não compactuam com a ideia deles e com a filosofia deles, passaram a ser inimigos também", afirma.
"Temos, infelizmente, vários grupos, vários 'lobos solitários' à solta e, quando um grupo é detido, desfeito, cada um faz aquilo que puder, na medida do possível, para manter a política, a filosofia, a ideia, a ideologia do grupo, e muitas vezes vai tentando influenciar o outro”, afirmou o imã da Mesquita Central de Lisboa.
“A falta de conhecimento faz com que as pessoas adiram sem saber porquê. E quando começam a estudar, quando começam a ler, abrem a mente e descobrem que, afinal, não é bem assim. E, ao abrirem a mente, quando começam a confrontar o líder, ou os líderes, são postos do lado”, justificou.
Questionado pela Lusa sobre quais os países muçulmanos que convivem num regime democrático, o sheik Munir admitiu ter “alguma dificuldade em responder”, uma vez que, apesar de já ter vivido em muitos países, não residiu em nenhum Estado muçulmano, pois sempre morou em Portugal, “no Ocidente”.
“O que eu sei sobre os países islâmicos é aquilo que sabemos das notícias. No entanto, os países que eu visitei, que não foram poucos, foram muitos, na prática não notei aquilo que eu gostava de notar. A justiça, a igualdade, a parte económica e social. Temos pessoas muito, muito ricas ou temos os muito, muito, muito pobres. Um dos pilares do Islão é a caridade obrigatória, 12,5%. Se todos dessem, iríamos melhorar muito a situação dos mais carenciados. Mas os ricos querem ficar mais ricos e os pobres vão ficar mais pobres. Esta desigualdade é social, mas também é islâmica”, explicou.
Admitindo que há ainda muito a fazer para pacificar o Islão no seu todo, o sheik Munir lembrou que “os grupinhos, grupos, líderes e congregações” que querem impor o radicalismo porque a leitura que fazem do Islão é muito limitada, não estão abertos a dialogar com os outros, mesmo sendo muçulmanos.
“Isso obriga a que o processo avance lentamente. Nalguns casos deram-se passos à frente e depois para trás e isso é um bocado complicado”, concluiu.
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