Por DW.COM.PT 26.07.2021Mais de um ano depois de ter sido forçado a abandonar o cargo de primeiro-ministro, Aristides Gomes quebra o silêncio, em entrevista à DW. Gomes, que esteve refugiado na ONU, diz que há uma regressão total no país.
Em março de 2020, as forças de segurança invadiram a casa de Aristides Gomes, forçando o primeiro-ministro do Governo constitucional liderado pelo PAIGC, formado após as eleições legislativas, a abandonar a sua casa e as funções que também desempenhava. "Está em curso um golpe de Estado na Guiné-Bissau", denunciava Gomes em entrevista à DW, afirmando que "quem tem força consegue apoderar-se do Estado e fazer aquilo que entender".
Aristides Gomes teve que sair da sua residência privada para a sede da ONU, onde teve proteção da comunidade internacional, alegando que corria risco de vida. Gomes viria a ficar nas instalações das Nações Unidas em Bissau durante um ano, até que, em fevereiro último abandou o país sob a proteção das forças da ONU rumo a França. Desde então, não deu mais nenhuma entrevista à imprensa.
Na altura, a Guiné-Bissau vivia mais um momento de tensão política, depois de o atual Presidente, Umaro Sissoco Embaló, dado como vencedor das eleições presidenciais do país pela Comissão Nacional de Eleições, ter tomado posse quando ainda decorria um recurso de contencioso eleitoral no Supremo Tribunal de Justiça, apresentado pela candidatura de Domingos Simões Pereira, que alega graves irregularidades no processo.
Na sequência da tomada de posse, Sissoco Embaló demitiu Aristides Gomes, que liderava o Governo que saiu das legislativas e que tinha a maioria no Parlamento do país, e nomeou o atual primeiro-ministro Nuno Nabiam para o cargo. Após estas decisões, os militares guineenses ocuparam e encerraram as instituições do Estado guineense, impedindo Aristides Gomes e o seu Governo de continuar em funções.
Aristides Gomes em Luxemburgo com a comunidade guineenseNeste sábado, 24 de julho, o ex-chefe do Governo esteve no Luxemburgo, em contacto com a diáspora guineense. Naquela que foi a sua primeira aparição pública, aceitou fazer à DW África um ponto de situação sobre a governação na Guiné-Bissau.
DW África: Neste seu primeiro contato com a diáspora, o que partilhou com a comunidade guineense?
Aristides Gomes (AG): Partilhei com os guineenses, a pedido deles, tendo em conta a importância crescente da diáspora na vida política, social e económica da Guiné-Bissau, os diferentes pontos de vista sobre a situação atual do país. É uma situação em que há uma rotura de lógica legal em todos os domínios, nomeadamente da economia, da sociedade, do exercício de poder que há hoje em dia na Guiné-Bissau e ainda no domínio da democracia. Chegámos ao consenso de que há um recuo nessa matéria na Guiné-Bissau.
DW África: Refere-se às denúncias de uma eventual implementação da ditadura no país?
AG: Sim. Acho que progressivamente nós estamos a caminhar - e de uma forma muito rápida - para uma ditadura. Uma ditadura inútil até, porque nem se quer é uma ditadura iluminada. Porque há casos de ditaduras mais inteligentes, que até estão a dar algum resultado, mas no caso da Guiné-Bissau é uma coisa inútil. Inútil não só para os guineenses, de forma geral, mas também é inútil para o próprio regime, o Presidente que exerce o poder e para a chamada nova maioria atual, que não convence muito.
DW África: Como explica o facto de um primeiro-ministro em exercício ter de sair da sua residência em busca de proteção nas Nações Unidas?
AR: O regime tinha medo de agir legalmente, medo de seguir os trâmites legais. Só o regime poderá explicar isso. Porque se, de facto, o regime estivesse convencido de que queria governar na base da legalidade, não da forma de captação do Estado, teria seguido todos os requisitos para a instalação de um novo Presidente. Eu fui vítima desta captação do Estado. Interessava ao regime agir dessa maneira porque nós [o PAIGC], tínhamos a maioria parlamentar na Assembleia Nacional Popular (ANP), para poder mudar, como conseguiu, de forma relativamente fraudulenta, a relação na ANP. Desde a independência nacional, nunca vimos o Estado completamente do avesso como agora.
DW África: Pediu para ir para as Nações Unidas porque corria risco de vida?
AG: O regime queria intimidar-me para que eu saísse da minha casa, assim seria eventualmente abatido e depois simulariam que estivesse a fugir armado ou que eu tentasse oferecer resistência. Por isso, decidi ficar na minha casa, mesmo quando me retiraram o corpo de segurança. Foi uma longa negociação com as Nações Unidas e a CEDEAO. Os representantes da comunidade internacional estiveram na minha casa e discutimos durante horas para que me convencessem a sair. Eu achava que não devia sair de casa. Se não fosse essa garantia da comunidade internacional, não saía.
DW África: E agora, quando é que vai voltar à Guiné-Bissau?
AG: Repare, as circunstâncias em que eu saí do país e a evolução perigosa do regime aconselham-me uma certa prudência. Mas acho que quanto mais o regime optar por uma via de força, mais se acelera a caminho de suicídio político.
DW África: Como é que deixou as contas do Estado - como saiu como primeiro-ministro e ao mesmo tempo ministro das Finanças?
AG: As finanças estavam numa via de poder viver como se viveu durante o tempo que lá estive e sem ajuda externa. É evidente que hoje em dia a Covid-19 criou algumas dificuldades aos países e a Guiné-Bissau não escapa, mas, em contrapartida, também o nosso país teve muitas facilidades por causa da Covid-19. Portanto, era uma ocasião para que se aproveitasse essas facilidades para melhorar a situação financeira da Guiné-Bissau. Para além disso, se tivessem uma gestão financeira muito mais criteriosa e com menos desvios processuais e desvios de fundos, a situação teria sido melhor.
DW África: A questão que terá ensombrado a sua governação tem a ver com o cidadão colombiano com passaporte diplomático da Guiné-Bissau, que alegadamente esteve envolvido no tráfico de droga. Como explica esta situação?
AG: As resoluções do Conselho de Segurança da ONU são claras nesse aspeto de combate à droga. O nosso Governo fez aquilo que devia fazer face ao tráfico de droga. O Conselho de Segurança aponta o nosso Governo como modelo, por ser capaz de definir uma política, uma missão, e que resultou na maior apreensão de droga alguma vez feita no país. Portanto, esta questão do Zambrano, de origem colombiana, é uma invenção, que não tem pernas para andar. Essa pessoa esteve em Bissau, foi levada aos serviços interrogatórios da Polícia Judiciária e depois foi libertado mediante a presença da polícia colombiana, ou seja, participaram na sua audição a Polícia da Interpol de Lyon, França, a polícia colombiana e todos os outros serviços ocidentais de combate a drogas participaram na sua interrogação. Porque é que foi libertado, então? Eu penso que é esta a pergunta que a polícia judiciária deveria responder. E se esse regime tem elementos [que provam que] esse Zambrano estivesse envolvido no tráfico de droga, porque não pede a sua captura internacional?
DW África: Criticou também as viagens do Presidente da República em jatos privados. Acha é mais um encargo para as contas públicas?
AG: Eu fui primeiro-ministro três vezes na Guiné-Bissau, mas nunca aluguei aviões privados para as viagens do Estado. Será que a Guiné-Bissau tem condições para suportar esses custos? Será que é indispensável o Presidente viajar em jatos privados? Será que os outros chefes de Estado anteriores faziam a mesma coisa? Talvez eu não tenha razão, mas que me convençam que era assim. Porque os outros [Presidentes] não viajavam sistematicamente de jatos privados.
DW África: Como vê o futuro imediato do país?
AG: Nós estamos numa situação extremamente difícil. Neste momento, há uma estagnação, há mesmo uma reversão em todos os aspetos. Há uma regressão em termos democráticos, do sistema de ensino, hospitalar, regressão em matéria de criação de infraestruturas. E o próprio ministro das Finanças diz que o peso da dívida, atualmente, é enorme. Para um país como a Guiné-Bissau, as dificuldades estão patentes. A solução é reforçar o Estado, reforçar a democracia e o regime abandonar a via da repressão, porque não resolve o problema. Nenhum regime, sobretudo nas fragilidades da Guiné-Bissau, poderá consolidar-se por via da repressão. É impossível.