Autárquicas 2021
Os anos passam mas os números continuam a não bater certo. Os especialistas apontam os emigrantes registados em Portugal como um factor importante para a diferença. Mas longe de ser o único.
Quando, na noite de 30 de janeiro, as televisões começarem a avançar os primeiros dados sobre os resultados das eleições legislativas, há uma frase que já se antecipa: “A abstenção atingiu um novo recorde”. Tem sido assim nos últimos sufrágios.
E para tal muito contribuem os cerca de um milhão de “eleitores-fantasma” que existem nos registos oficiais. Se outrora a existência de falecidos nos cadernos eleitorais ajudava a explicar os resultados, os especialistas falam agora numa “nebulosa” que tem sido difícil desbravar.
Como se calcula este milhão?
Chegar ao número de “eleitores-fantasma” não é uma tarefa fácil ou livre de erros, dizem os politólogos ouvidos pela CNN Portugal. Ainda assim, a perspetiva do milhão não os surpreende.
Para fazê-lo, é necessário cruzar dados de diferentes fontes. Portugal contava, nos Censos 2021, com cerca de 10,35 milhões de habitantes. É preciso retirar deste número os que não têm direito a voto: cidadãos com menos de 18 anos (cerca de 1,63 milhões) e os estrangeiros (cerca de 555 mil). Ora, deste modo, serão cerca de 8,16 milhões os potenciais eleitores em Portugal.
Esse número é cruzado depois com o número de eleitores previstos para as próximas eleições para a Assembleia da República, num quadro publicado no início de dezembro. Ao todo, são 10,82 milhões. Mas é preciso descontar os inscritos nos círculos da Europa e Fora da Europa, porque estes, ao viver no estrangeiro, não terão sido contabilizados pelos Censos 2021. Assim, apura-se o número de eleitores apenas em Portugal: cerca de 9,3 milhões.
É assim possível chegar aos chamados “eleitores-fantasma”: 1,14 milhões, cerca de 10% do total. Conclui-se que há mais eleitores registados em Portugal do que o universo identificado a partir dos Censos 2021.
Números dos cadernos eleitorais não batem certo com universo de potenciais eleitores em Portugal
Emigrantes nos cadernos eleitorais mas não nos Censos
João Tiago Machado, porta-voz da Comissão Nacional de Eleições (CNE), reconhece que há uma “dificuldade na atualização dos cadernos eleitorais”, uma tarefa que está sob responsabilidade da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna.
Nem mesmo as mudanças em 2008 e 2018 contribuíram para atenuar esta realidade. Em 2008, para procurar reduzir o número de mortos inscritos enquanto eleitores, associaram-se os cadernos eleitorais às listagens do Cartão de Cidadão. Depois, em 2018, outra reforma eleitoral permitiu o recenseamento automático de emigrantes.
Os emigrantes poderão ser um dos elementos a explicar a diferença entre o número de recenseados em Portugal e o universo de eleitores calculado pelos Censos 2021. Isto porque há portugueses a viver e trabalhar no estrangeiro que se mantêm registados para o voto em Portugal. Ou seja, fazem parte das listas para votar mas não são contados na maior análise estatística do país.
“Há muitos recenseados que são emigrantes de longa duração que continuam registados em Portugal, o que pode ser uma possível explicação. Não contam como residentes. Esse valor é muito difícil de apurar, sobretudo nas zonas de grande emigração”, reforça a politóloga Paula do Espírito Santo, politóloga e docente no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).
Risco para a democracia
O fenómeno da “duplicação” de emigrantes não serve, só por si, para explicar uma diferença na ordem do milhão. Daí que Marina Costa Lobo, politóloga e investigadora do Instituto de Ciências Sociais, defenda um trabalho de verificação mais profundo aos cadernos eleitorais.
“A reforma eleitoral de 2018 tinha como corolário eliminar os emigrantes do recenseamento em Portugal. O que estes dados sugerem é que isso pode não estar a acontecer”, resume à CNN Portugal. Já quanto aos eleitores já falecidos que poderiam constar nas listagens, acredita que “não serão o problema”, porque o inventário assenta nas listagens do Cartão do Cidadão, que são atualizadas em caso de morte.
Uma breve pesquisa confirma que este é um problema que se arrasta ao longo dos últimos anos. Os diferentes cálculos, publicados pelos órgãos de comunicação social, têm apontado para números entre 650 mil e 1,25 milhões “eleitores fantasmas”.
Com um número de “eleitores fantasmas” tão acentuado, é o normal funcionamento da própria democracia que poderá estar em causa. Primeiro, pela “desvalorização do próprio número da abstenção” pelos portugueses, depois na escolha dos próprios representantes, diz Marina Costa Lobo. “A distribuição dos 230 mandatos faz-se tendo em conta o recenseamento. Se não há uma distribuição equitativa desses ‘eleitores fantasmas’ pelo país, pode estar-se a atribuir mais deputados a determinados círculos, em detrimento de outros”, reforça.
"Temos de fazer esse estudo: quais são os círculos que estão mais penalizados pela abstenção e as raízes que a podem explicar", complementa Paulo do Espírito Santo.
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