Por: Assana Sambú JORNAL ODEMOCRATA 21/08/2022 [REPORTAGEM_agosto_2022] As cerca de trezentas pessoas residentes na pequena ilha de Djobel correm sérios riscos de serem engolidas pela água que a cada dia que passa reduz pedaços de terra daquela ilha, e mostram-se apreensivas e com medo de serem um dia “aniquiladas” por causa do conflito de posse da terra que as opõe aos populares da aldeia de Arame que, de acordo com os relatos dos habitantes de Djobel, terão recusado ceder-lhes o espaço definido pelo governo para o reassentamento, alegando que o terreno lhes pertence.
Djobel é uma pequena ilha banhada pelo rio Cacheu e que faz parte da grande secção de Suzana, Setor de São Domingos no norte da Guiné-Bissau, com uma população estimada em 257 pessoas, de acordo com os dados avançados por agentes da saúde comunitária da aldeia.
A ilha está localizada entre as aldeias de Elia, uma tabanca que consideram aliada, onde compram alguns produtos de primeira necessidade e da aldeia de Arame. Aliás, Arame é a aldeia mais próxima da pequena ilha em termos de distância, mas há vários anos que as duas localidades não se entendem, o que causa medo à população de Djobel ao ponto de não se atreverem a desembarcar no porto improvisado daquela tabanca.
PEQUENA ILHA DISPÕE DE DEZOITO “MORANÇAS” E CERCA DE CINQUENTA CASAS
A ilha é constituída por dezoito “moranças – famílias”, que totalizam cerca de cinquenta palhotas construídas de arquitetura tradicional, na sua maioria, com moradias de quatro quartos. A aldeia é também dividida em dois bairros, designadamente: Burré e Canhé, este último tem maior número de casas. O bairro de Burré alberga a pequena escola do ensino básico, o cemitério e o campo de futebol, dado que é a zona com mais espaço de terra, e neste período das chuvas é inundado pela água do mar.
A produção do arroz na bolanha e outras atividades agrícolas são feitas no bairro de Burré, inclusive algumas famílias saem de Elia e de outras tabancas para cultivar o arroz naquele bairro, devido à qualidade do solo. A ilha não dispõe de nenhum pomar de cajú, devido à falta de terra para a sua plantação. Por isso, optam pela atividade da pesca e da lavoura do arroz.
A aldeia tem uma pequena escola do ensino básico construída pela comunidade, que ministra do 1º ao 4º ano e tem duas salas de aulas, com uma lotação de 40 crianças cada. As crianças que concluem o 4º ano, se pretendem prosseguir os estudos são obrigadas a inscreverem-se nas escolas da Elia, que tem o ensino secundário.
A escola conta apenas com um professor que trabalha a título de “semi-voluntariado”, dado que os alunos pagam a inscrição no valor de 250 francos CFA e a mensalidade é de mil francos CFA para todos os níveis. O jovem professor é natural da ilha, fez os estudos em Bissau e concluiu o 12º ano de escolaridade e por não ter tido oportunidade de fazer uma formação superior voltou para a sua aldeia e dedicou-se a ensinar as crianças, como também a apoiar a sua família na luta pela sobrevivência diária.
Os alunos residentes no bairro de Canhé e o professor são obrigados a usar uma pequena canoa a remos para chegar à escola. Aliás, a movimentação na ilha, de apenas uma “morança”, para outra é feita frequentemente, sobretudo em períodos da maré cheia, de pirogas, porque cada família tem a sua para as deslocações.
As mulheres e crianças todas sabem andar de piroga, único meio de deslocação na ilha e para viajar fora dela. A nossa reportagem constatou no rio, ao longo da viagem para a ilha, crianças em pequenas pirogas a pescar e mulheres a remar na travessia entre as duas aldeias, Elia e Djobel.
A maior dificuldade da aldeia tem a ver com a disponibilidade da água potável. Para conseguir este líquido essencial à vida, algumas mulheres remam até Elia. Na época das chuvas, a situação melhora porque aproveitam a água das chuvas, que procuram conservar em tambores, no máximo, até a época da seca.
A aldeia chegou a beneficiar de um projeto da Cruz Vermelha Internacional que construiu um reservatório que permitia conservar uma quantidade limitada de água para a época da seca, mas o reservatório não resistiu à pressão da água salgada e acabou por se estragar e algumas famílias aproveitaram o remanescente da obra, transformando-o em casa de banho improvisada ou em banheiro apenas para tomar banho, enquanto a defecação faz-se nas margens do rio.
ANCIÃO: “PREFERIMOS SER ENGOLIDOS PELA ÁGUA A SERMOS ANIQUILADOS COM CATANAS”
“Nasci nesta aldeia bem como os meus filhos e netos. Antigamente, a situação era melhor e não havia problemas de inundação. Vivíamos da pesca e da lavoura, porque tínhamos espaço para lavrar. Produzíamos arroz nas bolanhas de Burré e conseguíamos a quantidade de arroz necessária para o nosso sustento, mas hoje a situação é totalmente diferente e estamos a viver aqui com muito medo de sermos engolidos pela água”, explicou um ancião residente do bairro de Canhé, de aparentemente 80 anos de idade, durante uma conversa mantida num dos portos daquele bairro, à nossa chegada à ilha, com tradução dos agentes da saúde comunitária da aldeia.
Ampom – homem grande em felupe, como estava a ser chamado pelos jovens que nos acompanhavam, disse desconhecer a sua verdadeira idade, mas assegurou que testemunhou vários eventos no período da administração colonial naquela zona e que na altura era um homem valente.
Enfatizou que estavam “muito bem”, sem problemas de inundação mas, nos últimos anos, ou melhor, no início da década 2000 começaram a registar a inundação que levou muitas famílias a perderem as suas casas, inclusive algumas famílias tiveram que abandonar a ilha e mudar para outras localidades.
“Estamos cansados e já não temos forças para fazer mais nada! Deixaram-nos para morrermos aqui e vamos morrer todos, porque seremos engolidos pela água a qualquer dia. Disseram-me que o Estado nos concedeu um espaço na estrada principal entre a Elia e Arame, para o nosso reassentamento, mas as populações da Arame não nos permitem trabalhar naquele espaço. Aliás, que nos pertence desde o período colonial. Tudo está nas mãos do Estado que pode decidir sobre este assunto”, disse o ancião com voz trémula, afirmando que não estão em condições de enfrentar os populares da Arame, por isso “preferimos sermos engolidos pela água a sermos aniquilados com catanas por causa da posse de terra”.
António Djifan, morador de bairro de Canhé e um dos agentes da saúde comunitária, explicou que o espaço que o governo lhes concedeu pertencia aos seus avôs desde o período colonial.
“O espaço foi concedido aos nossos avôs pela administração colonial. Antigamente, a administração colonial cedia uma porção de terra a uns quilómetros na estrada principal para cada aldeia ocupar-se da limpeza daquele espaço. A população desta zona é testemunha que o espaço pertence-nos e é por isso que o Estado foi orientado para nos ceder aquele espaço. Não compreendemos o porque é que a população da Arame não quer que ocupemos aquele lugar”, salientou.
Afirmou que, atualmente, os populares de Arame plantaram pomares de cajú em algumas zonas naquele terreno, por isso estão a reivindicar o espaço, mas toda a gente sabe que o espaço pertence aos populares de Djobel.
“Os régulos de todas as aldeias da secção de Suzana reuniram-se e concluíram que devemos ocupar aquele espaço que nos pertence, mas os populares da Arame continuaram a reivindicar o lugar, desafiando o poder tradicional e o próprio Estado, aliás, o Estado mostrou-nos que não tem capacidade para dirimir essa situação, razão pela qual até hoje não podemos ocupar aquele lugar”, assegurou.
Explicou, neste particular, que os régulos daquela zona decidiram amaldiçoar (mandji) o espaço, impedindo assim que os habitantes da Arame ou de Elia reivindiquem ou que se apropriem do espaço, deixando o terreno exclusivamente para os populares de Djobel, “mesmo assim não temos coragem de voltar, porque estamos com medo de sermos atacados pelos populares da Arame”.
ISABEL: “MINHA FILHA FALECEU NOS MEUS BRAÇOS NA BERMA DA ESTRADA À ESPERA DE TRANSPORTE”
Isabel Nango, a mulher do Comité da aldeia de Djobel, encontrada pela equipa de reportagem na sua casa e uma das poucas que ficaram em casa naquele dia, dado que a maioria estava na feira popular que se realizava em Elia. As mulheres daquela pequena ilha aproveitam os dias da feira popular da Elia para vender o pescado e alguns produtos haliêuticos, como também para a compra de produtos alimentares e alguns materiais para os seus lares.
A nossa equipa encontrou Isabel Nango a fazer trabalhos domésticos e a preparar o almoço com a sua filha de dez anos e a cuidar de uma anciã doente.
Explicou que atualmente a aldeia está em perigo, fortemente ameaçada e vulnerável à inundação, porque não têm espaços (terras) suficientes para trabalhar. Por isso, a maior atividade de rendimento económico é a pesca e de resto, todo o trabalho da lavoura é feito noutro bairro.
“Estamos a viver muito mal e totalmente isolados da terra. Se tivermos doentes é um grande dilema para evacuá-los ou chegar ao centro de saúde. Levamos as nossas crianças doentes para Suzana para tratamento ou consultas. Atravessamos o rio em pirogas, mesmo à noite ou de madrugada temos que atravessar o rio, por um dos portos de Elia e depois caminhamos a pé até à paragem, numa distância de quase quatro quilómetros, para embarcar num transporte público, que sai de São Domingos ou alugamos uma motorizada. É um sofrimento enorme que estamos a enfrentar”, afirmou.
“Devido a recorrentes conflitos que se registaram na zona entre Arame e Djobel sobre a posse da terra, não temos a coragem de atravessar os portos daquela aldeia, por medo de sermos agredidas ou mortos. Por isso, desembarcamos sempre nos portos de Elia que, apesar da distância, é mais seguro” contou, acrescentando que a sua filha doente faleceu, porque não conseguiu um transporte para chegar a tempo ao centro de saúde.
“A minha filha estava doente e saímos daqui à noite, atravessamos o rio para Arame, porque, na altura, entendíamo-nos bem. A criança não resistiu à doença e acabou por falecer nos meus braços na berma da estrada, onde estávamos sentados no chão à espera de transporte público para ir ao centro de saúde de Suzana”, lamentou.
Questionada sobre a situação das grávidas em trabalho de parto, respondeu que normalmente conseguem ter partos normais em maioria dos casos. Acrescentou que quando há uma grávida com dificuldades de dar à luz, ela é evacuada de urgência, de piroga para Elia, onde são transportadas de motorizadas para o centro de saúde de Suzana.
“Mas geralmente as mulheres conseguem ter parto normal sem necessidade de serem evacuadas. Aqui temos uma casa onde as mulheres dão à luz com a assistência de anciãs com experiência em assistência a grávidas em parto”, referiu.
Explicou ainda que, por causa dos níveis de água que sobem a cada dia, são obrigadas a deixar as crianças em casas fechadas, quando falta um adulto em casa para cuidar delas.
“Somos obrigadas a fechar as crianças dentro de casas e trancar as portas, se não tivermos alguém que possa cuidar delas. Os nossos animais, por exemplo, galinhas e patos, são deixados em gaiolas. Construímos uma espécie de gaiolas, usando mosquiteiros velhos para proteger as galinhas e os patos, para que não possam ser levados pela corrente de água”, referiu.
COMITÉ DA ALDEIA: “AMARRAMOS DEFUNTOS COM PAUS PARA QUE NÃO SEJAM ARRASTADOS PELA ÁGUA”
O Comité de tabanca de Djobel e que ocupa igualmente a função de agente de saúde comunitária naquela aldeia, Baciro Nango, explicou à nossa equipa de reportagem que atualmente, a aldeia enfrenta inundações jamais vistas, por isso é urgente encontrar um lugar para viverem e evitar a calamidade que poderá ocorrer a qualquer dia.Assegurou que na época da chuva, deparam-se com problemas de subida dos níveis da água do mar que estraga as bolanhas e inunda algumas casas.
“A nossa situação é bastante triste. O nosso cemitério é muito pequeno e cova-se um pouco e sai na água. Por isso, ao enterarmos defunto, somos obrigados a amarrá-lo num pau colocado na cova para que não seja arrastado pela água, sobretudo quando é maré alta”, enfatizou.
“Neste momento chove muito, a água sobe e entra nas nossas casas. É por isso que todos os dias somos obrigados a construir diques e reconstruir outros estragados pela água. Não sabemos o que poderá acontecer connosco nesta ilha na próxima maré alta. Eu continuo a afirmar que é urgente sairmos daqui o quanto antes”, enfatizou, responsabilizando o governo guineense por tudo o que vier a acontecer com eles, “porque o Estado não teve coragem de enfrentar as pessoas de Arame, a fim de nos permitir ocupar o espaço que nos foi cedido”.
“Podem imaginar que estávamos a trabalhar na construção das nossas casas no terreno, quando os habitantes de Arame invadiram o local à noite e incendiaram as casas, e partiram os blocos dados pelo governo”, revelou.
Relativamente à situação da disputa do terreno com a Arame, Nango disse que a decisão de atribuir o espaço à sua aldeia foi tomada numa reunião em São Domingos entre os membros do governo, administrador do setor e representantes da sua aldeia, de Arame e de Elia em 2019.
“No final daquela reunião foi produzido um documento, no qual decidiu-se que Djobel ocuparia o espaço em causa, de quatro quilómetros quadrados, mas como os habitantes de Arame já tinham plantado árvores de fruta naquele lugar, Djobel ficaria com o dois quilómetros quadrados. Decidiu-se igualmente que todos os pomares de cajú e outras plantas que estavam na área de dois quilómetros cedido a Djobel deveriam ser derrubados. Na altura não houve nenhuma objeção de nenhuma das partes à decisão” contou, para de seguida avançar que depois da decisão, mobilizaram toda aldeia e jovens das tabancas vizinhas para limpar o espaço de acordo com as orientações do governo.
“Na medição do espaço não foi cumprida a decisão acordada no encontro de São Domingos. O responsável de tudo isso foi antigo administrador do setor, Domingos Nanco (Dó), que chamou os responsáveis de Arame para fazer a medição, foi dali que decidiram conceder-nos o espaço que está em causa” referiu, criticando a medição feita que supostamente não obedeceu à recomendação do São Domingos, bem como o terreno não corresponde aos dois quilómetros decididos.
Solicitado a pronunciar-se sobre a decisão dos régulos da secção de Suzana de proibir as aldeias de Arame e Elia de reivindicar o referido espaço, Baciro Nango disse que ficaram satisfeitos com a decisão dos régulos.
“Os régulos chamaram-nos para ficar naquele terreno depois de concluírem toda a cerimónia de “mandjidura” e que o espaço doravante passaria a pertencer-nos. Pediram a Arame que nos deixasse ocupar o espaço em paz e que não houvesse retaliação, mas os populares de Arame não concordaram com os régulos e afirmaram que ninguém roubar-lhes-ia os seus terrenos” recordou, afirmando que não podem voltar àquele terreno para trabalhar para não se envolverem em conflito com Arame que continua a reivindicar o espaço.
COMITÉ DE ARAME: “ESPAÇO CONCEDIDO AOS POPULARES DE DJOBEL É NOSSO”
O Comité da aldeia da Arame, Moimo Sanhá, explicou numa conversa telefónica, que a antiga ministra da Administração Territorial, Ester Fernandes, foi quem concedeu aquele terreno aos populares de Djobel em 2019, porque se chegou à conclusão que deviam sair da ilha que sofre ameaças de inundação.
“Foi no mês de fevereiro de 2019 que o governo decidiu conceder o nosso terreno aos populares de Djobel. Na verdade, concordámos com a decisão na altura, até porque eu, em particular, presenciei ao ato da medição do terreno. O espaço total concedido aos populares de Djobel é de quatro quilómetros quadrados. Concordamos todos que era muito pequeno e devia ser estendido para a zona de Elia, mas estes recusaram na altura”, recordou.
Questionado porque recusaram permitir aos populares de Djobel ocupar o espaço, uma vez que já tinham concordado, respondeu que os populares de Djobel não se limitaram apenas a limpar o espaço, mas foram para além do limite e derrubaram os pomares de cajú das pessoas com o propósito de aproveitar mais espaço.
“A primeira coisa que Djobel fez, foi recusar chamar a nossa parte para decidirmos em conjunto a delimitação do espaço, porque nós conhecemos muito bem aquela zona. Eles foram buscar as pessoas da Elia para os ajudar a derrubar árvores e os nossos pomares. É por isso que reagimos, impedindo-lhes de ocupar o espaço. Estavam a causar prejuízos à população da Arame e em reação a essa atitude, as partes envolveram-se em conflito, portanto foi isso que causou este problema”, contou.
Assegurou que foram derrubadas naquele período nove pomares de caju para aproveitar o espaço e deixar-lhes em dificuldades.
“Pode imaginar 250 homens com catanas e manchados a derrubar pomares de cajú durante dois dias. Fizeram um enorme estrago às populações de Arame, aliás naquela altura, o ministro do Interior, Edmundo Mendes, visitou a nossa aldeia para se inteirar da situação e sobretudo dos pomares cortados”, lembrou.
Sobre as informações recolhidas em como o espaço em causa teria pertencido aos populares de Djobel desde o período colonial, Sanhá confirmou que no período colonial as populações de Djobel é que limpavam aquele espaço, mas garante que o local na verdade pertence à Arame e não Djobel.
“O antigo ministro da Administração Territorial e do Poder Local, Fernando Dias, tinha promovido um encontro entre os régulos de Arame e Djobel para uma negociação, mas o régulo de Djobel recusou participar no encontro. Nós mesmos convidamos o comité e anciões de Djobel para um encontro a fim de encontrarmos soluções para esta situação, mas recusaram. Eles recusaram sentar connosco, porque foram monopolizados por Elia, porque temos um diferendo na justiça com Elia”, contou.
“A população de Djobel são nossos irmãos e convidámo-los para virem povoar connosco, mas recusaram. Dissemos-lhe que cada pessoa vai identificar a sua família em Arame e este vai conceder-lhe um espaço para construir a sua casa, mas infelizmente essa iniciativa não surtiu efeito. Djobel está a ser monopolizado pelos habitantes da Elia e infelizmente não sabemos com que motivo” lamentou o Comité de Arame.
Foto: A.S