Por: Carmelita Pires
Surgem alguns sinais positivos quanto à composição da Mesa da Assembleia Nacional Popular (ANP), os quais reforçam as aspirações de ver os deputados cumprir com honra a jura de fidelidade total ao povo e à defesa da Constituição e dos interesses nacionais, em conformidade com o Art.º 80.º da Constituição da República (CR).
Empossados e juramentados os deputados, estamos em crer que a primeira Sessão será dedicada à pronúncia e decisão sobre todas as situações que possam por em causa a soberania do país, ou ter lesado o Estado, ou ter ainda atentado contra os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Afinal, para o efeito, basta a maioria absoluta concedida e detida (Art.º 88.º/1 do Regimento da ANP). Tanto mais que, a ANP não corre o risco de ser dissolvida nos 12 meses posteriores à eleição e nem no último semestre do mandato do Presidente da República (Art.º 94.º da CR). Será desta? Podemos esperar um verdadeiro combate à inobservância da Constituição da República, à impunidade e à corrupção? Podemos confiar no virar de página, em cumprimento e respeito pelo voto popular de 4 de Junho, obtendo-se responsabilização via democracia popular? Bom, que existe legislação, existe …!
Estamos certos que, conforme reza a Constituição no seu Art.º 76.º, os representantes de todos os cidadãos guineenses, logo que investidos, se irão debruçar sobre as atuais questões fundamentais da República. Para tanto, nos termos do art.º 68.º do Regimento, em convocação extraordinária da ANP e em imperatividade constitucional, realizar DEBATE DE URGÊNCIA, visando deliberar e decidir sobre o seguinte:
1. Saída imediata e incondicional de tropas estrangeiras do solo pátrio, sem mandato válido porque chamadas por órgão incompetente para tal, comunicando-se a decisão soberana às Nações Unidas e à CEDEAO (Presidente da Conferência dos Chefes de Estado, Parlamento, Presidente da Comissão e todos os Estados membros, inclusive os suspensos da CEDEAO). Porquanto constitui evidência ser tal presença inconstitucional: só a ANP decide sobre questões fundamentais da política interna e externa do Estado (Art.º 76.º da CR); incumbe apenas à ANP a aprovação de tratados que envolvam a participação da Guiné-Bissau, sejam eles de amizade, de paz ou de defesa (Art.º 85.º al. h) da CR); e, tudo o que possa conflituar com a soberania nacional, esta que pertence ao povo, só por decisão soberana da ANP. Na República da Guiné-Bissau as relações com outros países estabelecem-se e desenvolvem-se na base do direito internacional, dos princípios da INDEPENDÊNCIA NACIONAL, da igualdade entre os Estados, da NÃO INGERÊNCIA NOS ASSUNTOS INTERNOS e da reciprocidade de vantagens, da coexistência pacífica e do não alinhamento (Art.º 18.º/1 da CR); tal qual estabelecido na Carta das Nações Unidas, no Tratado da CEDEAO e outros instrumentos jurídicos desta Organização. Caricatamente, certos Estados da CEDEAO, que se encontram na lista de Estados instáveis (Costa do Marfim, Níger, Mali, Guiné Conacri e Nigéria), com problemas internos muito mais graves do que a Guiné-Bissau, não beneficiam do “bendito” mandato do exército estrangeiro, fundamentado na “consolidação da paz e da estabilidade do país”. Ademais, são as Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) que detêm em exclusividade e monopólio a defesa nacional, e incumbe-lhes garantir a segurança interna e a ordem pública (art.º 20.º/1 da CR). A presença de militares estrangeiros no país não tem qualquer fundamento jurídico nem é sustentável a termo, pois hipoteca a soberania do país.
2. Defesa dos superiores interesses da nação, retomando a questão do acordo de petróleo celebrado com o Senegal, declarando-o inexistente à luz da Constituição da República, semipresidencialista, que tem como um dos mais significativos princípios informadores a competência exclusiva do Governo para negociar celebrar acordos internacionais (Art.º 100.º/1 al. f) da CR); ainda para mais quando o ainda Primeiro-Ministro, declarou: "o Governo não foi envolvido”. Sendo que o Presidente da República, como representante da República na ordem externa, apenas participa na definição da política externa (Art.º 68.º al. a) da CR) e dele depende vinculação definitiva internacional do Estado aos tratados solenes, competindo-lhe a sua ratificação (Art.º 68.º al. e) da CR). O acordo não tem suporte técnico-jurídico, sendo manifesta a quebra de reciprocidade e sendo extremamente penalizante para a Guiné-Bissau. Consequentemente, há que voltar ao status quo ante de suspensão das negociações, devendo o Governo em constituição avocar como competência a sua retoma, reservando-se à Presidência eventual ratificação de Novo Acordo, conforme organicamente estipulado.
3. Criação de comissões eventuais, por tempo determinado e de acordo com o estipulado no Art.º 119.º da CR.
Uma para, dissolvida a Assembleia a 16 de Maio de 2022, analisar o exercício das funções governativas pelo Governo de Gestão, pois por força do princípio constitucional da responsabilidade política do Governo perante a ANP, este passou imediatamente a ser de mera gestão, limitada, em transição, à simples administração diária e corrente, tão-somente para praticar actos inadiáveis e estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos e organizar e realizar eleições legislativas, até à tomada de posse do novo Governo, excluindo a prática de medidas de fundo, tais como: grandes movimentações financeiras, conferências internacionais, inaugurações, novas nomeações, aprovação de projetos ou decretos de lei, etc. A comissão eventual, deverá indiciar em responsabilidade o(os) titular(es), caso se apure que extravasaram suas competências diminuídas, enquadrando os actos por tipo legal, desde a violação de normas de execução orçamental, corrupção, participação económica em negócio, até peculato (Art.º 16 a 23.º da Lei de Cargos Políticos).
Outra comissão eventual para se ocupar da análise dos casos de violações de direitos humanos. Na medida em que vieram a público imensos casos de atentados contra o exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, oportunamente denunciados pela Liga Guineense dos Direitos Humanos, os quais seria doloroso aqui enumerar. A verdade é que, num suposto Estado de Direito, se viveu um autêntico “FAR WEST”! Seria inédito e incontestavelmente um bom sinal de boa governança se, pela primeira vez, algo fosse feito, dentro dos prazos de prescrição legal (Art.º 87.º do Código Penal).
4. Criação de Tribunal Ad Hoc, por lei constitucional e por maioria de 2/3 de deputados, especificamente para instrução e julgamento de todas as situações identificadas e, particularmente, para indemnização do(s) ofendido(s), incluindo o Estado.
Estamos perante um momento de credibilidade e de credenciação quase constituinte da própria ANP.
Resolvidas estas questões prévias, essenciais e fundamentais, provavelmente, estaria imensamente facilitada a gestão administrativa do próximo Governo a constituir e, necessariamente, reunidas as condições mínimas para o retorno à normalidade constitucional, num exercício equilibrado da nova legislatura, em cumprimento do juramento dos deputados e em prol da consolidação da paz e da estabilidade do país.