sábado, 20 de agosto de 2022

ENTREVISTA - "O 'sangue doce' é mito". É por isto que os mosquitos picam as pessoas

© Shuttestock

Notícias ao Minuto 20/08/22 

Miguel Castanho, do laboratório Miguel Castanho do Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa, esclarece esta e outras dúvidas frequentes em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, a propósito do Dia Mundial do Mosquito.

É provável que tenha crescido a acreditar que os mosquitos são bastante seletivos e que escolhem as suas 'vítimas' com base na doçura do sangue. Se esse é o seu caso, esqueça tudo o que leu e ouviu até hoje sobre o tema. Não é por isso que o inseto mais mortal do mundo dá mais ou menos ferroadas. 

É Miguel Castanho, do laboratório Miguel Castanho do Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa, quem garante, em entrevista ao Lifestyle ao Minuto, que  "o 'sangue doce' é mito". "A ideia de que são as propriedades do sangue de cada pessoa, nomeadamente, a 'doçura', que determinam a atração dos mosquitos, não tem fundamento", defende. 

O especialista acrescenta que, segundo um estudo recente, de 2022, "tem a ver com o odor natural da pessoa". "Moléculas voláteis que se libertam do corpo acabam por despertar nos mosquitos fêmea reações fisiológicas que levam à picada. Os mosquitos macho não se alimentam de sangue. Curiosamente, dois destes compostos, chamados decanal e undecanal, têm um odor cítrico e são usados em alguns perfumes", explica.

Miguel Castanho  © DR
Miguel Castanho chama ainda a atenção para a relação entre as doenças transmitidas por mosquitos, como a dengue, eishmanioses, malária e febre amarela, e o aquecimento global. "Fruto das alterações climáticas, com a expansão das áreas tropicais e subtropicais, estes mosquitos têm expandido os territórios em que habitam", pelo que "é urgente o desenvolvimento de medicamentos e vacinas". Contudo, as perspetivas para o futuro não são animadoras. "Infelizmente, a erradicação é uma miragem."

Quais as principais doenças transmitidas por mosquitos?

A doença transmitida por mosquitos mais conhecida no nosso país talvez seja a malária, que já foi um grande problema de saúde pública em algumas regiões do continente e assim continua em alguns países que foram colónias portuguesas. A malária é um enorme problema a nível global, com cerca de 240 milhões de casos anuais, e está bem presente na nossa memória coletiva. No entanto, existem outras doenças de enorme impacto a nível global, como febre amarela, dengue, zika ou chikungunya, todas elas causadas por vírus transmitidos por mosquitos do género Aedes (o mais conhecido deles, o mosquito-tigre, listado de preto e branco). Já ocorreu em Portugal, mais concretamente no arquipélago da Madeira, um surto de dengue, que foi o mais importante ocorrido na Europa até hoje. Existem ainda doenças transmitidas por mosquitos do género culex. No total, estima-se que os mosquitos estejam envolvidos na morte de cerca de 725 mil pessoas por ano.

Os mosquitos transmissores de doenças são os animais que mais matam, ultrapassando em muito as serpentes, por exemplo

Quais as mais perigosas? 

No meu entender, a dengue é a doença que merece mais atenção. Enquanto a malária pode ser prevenida com recurso a medicamentos e vacinas, o dengue é uma doença sem fármacos específicos nem vacina eficaz para uso em grande escala. É a doença viral transmitida por mosquitos de maior impacto a nível mundial, com dezenas de milhões de casos anuais levando a mais de 20 mil mortes, sobretudo em crianças. Existem quatro versões do vírus de dengue, sem imunidade cruzada, portanto, a mesma pessoa pode ter várias infeções por dengue durante a sua vida. A dengue é endémica em regiões tropicais. Entre 40 a 80% de todas as infeções por dengue são assintomáticas, o que dificulta ainda mais o controlo das transmissões.

Na Europa continental, sobretudo no sul, existem já zonas colonizadas pelo mosquito aedes albopictus, uma espécie invasora de mosquito que tem ganho ganho terreno na Europa devido ao aquecimento global. Com ele, aumenta também o risco de surtos de dengue ou zika em países como Portugal.

Quais os perigos das picadas de insetos?

Se pedirmos a alguém que nos diga que ideia tem de um monstro mortal, provavelmente falar-nos-ão dos animais jurássicos ou do domínio do fantástico popularizados pelo cinema. Outros podem ser menos impressionáveis e falarem de serpentes ou tubarões, mas provavelmente ninguém se lembrará dos frágeis mosquitos. Contudo, os mosquitos transmissores de doenças são os animais que mais matam, ultrapassando em muito as serpentes, por exemplo. Fruto das alterações climáticas, com a expansão das áreas tropicais e subtropicais, estes mosquitos têm expandido os territórios em que habitam, logo agravando esta tendência. Algumas picadas de insetos são perigosas em si, como as picadas de abelhas ou vespas em pessoas que tendem a desenvolver reações exacerbadas, mas o risco e a perigosidade não se comparam ao risco de transmissão de doenças.

A ideia de que são as propriedades do sangue de cada pessoa, nomeadamente, a 'doçura', que determinam a atração dos mosquitos, não tem fundamento

Como prevenir?

Quando não existem medicamentos ou vacinas disponíveis contra os vírus transmitidos por mosquitos (caso de Dengue, Zika ou Chikungunya, por exemplo), a alternativa é combater os mosquitos em si. Apelar ao uso de repelentes e redes mosquiteiras para evitar picadas, por um lado, e grandes campanhas para que não se deixem reservatórios de água parada nos meios urbanos (vasos, pneus abandonados, bicas, charcos, etcétera), por outro, são as medidas normalmente adotadas. Os mosquitos depositam os ovos em águas e as larvas desenvolvem-se em águas paradas. Por esta razão, as épocas de chuva em alguns países são particularmente propícias à ocorrência de surtos.

Estas medidas são importantes, mas insuficientes. Os resultados são modestos. É urgente o desenvolvimento de medicamentos e vacinas.

Quais os cuidados extra que devemos ter no verão, sobretudo quando viajamos?

Em Portugal o risco ainda é mínimo. Quando viajamos, o melhor é procurar informação sobre a eventual ocorrência de surtos na zona para onde queremos viajar. Se estiver a ocorrer um surto no destino, é preciso tomar medidas, como usar roupas que cubram o corpo e usar repelentes. Existe, no entanto, uma situação especial: caso esteja em curso um surto de Zika e a viajante seja uma mulher grávida, adie a viagem. A infeção pelo vírus Zika em mulheres grávidas pode causar infeção no feto e afetar gravemente o desenvolvimento do bebé. Zika é uma doença que pode ter consequências graves numa gravidez. 

Qual a importância da consulta do viajante?

No conhecimento de que doenças são endémicas em cada território, se existem medicamentos ou vacinas para essas doenças, como tomá-los e que comportamentos adotar em cada viagem para diminuir os riscos. Isto também é válido para as doenças transmitidas por mosquitos.

O que fazer em caso de picada?

O maior esforço deve estar concentrado em evitar ser picado, mas, no caso de picada, podem ser usados fármacos para o alívio da comichão e da inflamação local. Também devemos ter em atenção que muitas picadas de mosquitos não são causadas por mosquitos perigosos e, mesmo quando a picada é de um mosquito perigoso, nem todas as picadas resultam em infeção. Mesmo em caso de infeção, nem todas as infeções resultam em doença. Portanto, ser picado esporadicamente é algo indesejável mas não é motivo para ansiedade.

O que não devemos mesmo fazer?

Coçar uma picada até ao ponto de criar ferida é o maior risco.

Infelizmente, a erradicação é uma miragem. Vírus como dengue e zika estão muito bem adaptados a conviver com mosquitos e humanos

Os mosquitos só picam algumas pessoas ou fazem-no indiscriminadamente?

A questão não está completamente esclarecida e alguns estudos científicos têm-se dedicado a este assunto. De um lado, a hipótese de todos serem picados indiscriminadamente, mas algumas pessoas reagirem mais às picadas que outras, do outro lado está a hipótese de alguns indivíduos serem, de facto, alvos preferenciais das picadas. Um estudo recente, de 2022, aponta para a segunda hipótese. Segundo esta investigação, tudo tem a ver com o odor natural da pessoa. Moléculas voláteis que se libertam do corpo acabam por despertar nos mosquitos fêmea reações fisiológicas que levam à picada. Os mosquitos macho não se alimentam de sangue. Curiosamente, dois destes compostos, chamados decanal e undecanal, têm um odor cítrico e são usados em alguns perfumes.

Quais os principais mitos que importam esclarecer?

A ideia de que são as propriedades do sangue de cada pessoa, nomeadamente, a 'doçura', que determinam a atração dos mosquitos, não tem fundamento. O 'sangue doce' é um mito. A convicção de que ingerir vitaminas B faz exalar um odor que mantém os mosquitos à distância também pode ser considerada um mito porque não foi demonstrada cientificamente.

E o que muitas pessoas não sabem é que estas doenças têm efetivamente impacto no cérebro. Nesse sentido, que trabalho tem sido feito pelo Instituto de Medicina Molecular? 

Estamos preocupados com a falta de soluções farmacológicas para dengue e zika, sobretudo, pela ameaça que representam e pela expansão que se espera para o futuro, com ameaças reais à Europa do sul, por exemplo. Temos investigado sobre um medicamento que possa atacar, em simultâneo, diretamente estes vírus. O objetivo é desenvolver um medicamento que possa ser usado para controlar surtos de vírus, quer se trate de dengue ou zika. Estamos sobretudo preocupados com o efeito que o zika pode ter sobre os fetos nas mulheres grávidas, portanto queremos que este medicamento chegue ao cérebro do feto em desenvolvimento. Para isso tem de passar da mãe para o feto, o que não é trivial de conseguir. Mais do que este objetivo, queremos que o medicamento chegue também ao cérebro dos infetados para evitar complicações neurológicas, que ocorrem com alguma frequência, nos próprios pacientes (tal como acontece em alguns infetados pelo SARS-CoV-2, por exemplo). Contamos com a colaboração de grupos parceiros na Alemanha, Brasil e Espanha, num projeto, denominado NOVIRUSES2BRAIN, financiado pela Comissão Europeia após concurso internacional.

Que avanços têm sido registados no sentido de erradicar estas doenças? O que é que se pode esperar nos próximos anos?

Infelizmente, a erradicação é uma miragem. Vírus como dengue e zika estão muito bem adaptados a conviver com mosquitos e humanos. Só um grande grau de adaptação justifica que o mesmo género de mosquitos, o aedes, transmita tamanha diversidade de vírus tão disseminados entre humanos. A evolução natural conjunta entre vírus, humanos e mosquitos deve datar dos primórdios da humanidade. Controlar em larga escala as respetivas doenças é praticamente impossível, sem vacinas muito eficazes para prevenção e sem medicamentos muito eficazes para remediação.

A febre amarela, também transmitida por mosquitos aedes, conta com uma vacina, o que a tornou muito mais controlada. Com o progresso das alterações climáticas e a consequente expansão das doenças associadas a estes mosquitos para a América do Norte e para a Europa central, a sensibilidade para o problema deve aumentar, com impacto na disponibilização de investimento para a investigação e criação de soluções ao nível farmacológico. 'Quem vai para o mar, avia-se em terra', diz o ditado. Quanto mais cedo nos começarmos a preparar para as epidemias do futuro, melhor.


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