Por expresso.pt 5 Fevereiro, 2022
Espera um transplante de pulmão. Mesmo com oxigénio 24h por dia, falta-lhe fôlego para sair de casa. Está sozinha há oito anos, desde que chegou da Guiné. Embaixada de Portugal negou visto à mãe, apesar dos apelos dos médicos
O mundo de Isabel está cada vez mais pequeno, dia a dia a fechar-se sobre o seu T1, no Barreiro. Mesmo com o aparelho portátil de oxigénio em débito máximo, já não consegue ir a Lisboa e nos últimos meses foi desistindo, uma a uma, das rotinas que mantinha dentro do bairro. Há uns dias tentou ir à biblioteca e a meio percebeu que lhe faltava o ar para lá chegar. Voltou para trás. Também já não consegue ir à missa ou sequer dar uma volta pelo quarteirão. Só ainda não abriu mão de estudar — a única coisa que a “impede de enlouquecer” —, mas o esforço começa a ser demais. Mora num 1º andar sem elevador. O despertador toca às 6h para que tenha tempo de apanhar às 9h o autocarro que a leva à escola. Tem de descansar quase a cada passo. São poucas centenas de metros que a deixam tão exausta como se tivesse corrido a maratona. A paragem fica ao fim da rua.
Isabel Bapalpeme, 29 anos, tem dois pulmões, mas o direito não funciona e o esquerdo cada vez menos. E nota-se na voz. Começa audível, mas depressa se desvanece num fiozinho de som. Ela tenta falar, quer falar, mas falta-lhe fôlego. Tinha 15 anos quando uma tuberculose a apanhou numa aldeia no meio do mato, na Guiné-Bissau, onde vivia. Bastava um antibiótico, uns meses de toma, e ficava bem. Mas nunca foi tratada. Foram oito anos de tosse, febre, o corpo cada vez mais magro até aos 27 quilos, em 1,73 m, com que chegou a Portugal, de urgência, ao abrigo do programa de cooperação internacional para a saúde.
Internada em 2014 no Hospital Pulido Valente, em Lisboa, foi-lhe debelada a doença, mas as lesões eram irreversíveis. O transplante é a única solução. Até lá, espera sozinha, presa a um fio azul de vários metros que a liga ao concentrador de oxigénio colocado na entrada da casa e que lhe permite circular pelo pequeno apartamento onde não há quase nada. Faltam sofás, mesa de jantar, secretária, estante para os romances e policiais que tanto gosta de ler. Passa as horas sentada numa cadeira, a fazer no telemóvel os trabalhos de casa do curso profissional de administrativa que está a tirar. Porque também falta um computador.
Entre tudo o que não tem, o que ela queria mesmo era companhia. O silêncio em que vive só é interrompido pelo som da máquina que a liga à vida. “Queria muito a minha mãe aqui. Não consigo sorrir desde 2008 e eu não era assim. Era alegre, espontânea. Mas agora o meu mundo está a fechar-se”, desabafa. O suporte familiar é um dos fatores fundamentais para um doente poder ser transplantado. Isabel está em lista de espera, mas o facto de viver sozinha é um obstáculo ao sucesso da intervenção. Por isso, os médicos que a acompanhavam no Centro Hospitalar Lisboa Norte enviaram, em 2018, duas cartas à Embaixada de Portugal na Guiné-Bissau apelando à emissão de um visto para a vinda da mãe.
Nenhuma das missivas, onde era descrita a gravidade da situação e a necessidade “fundamental” da presença da família, teve resposta. E apesar dos apelos humanitários, em março de 2019 o pedido de visto foi recusado, por “não ser possível comprovar a intenção da requerente [a mãe, Sábado Bapalpeme] de abandonar o território antes do visto caducar”. Ou seja, por não existir uma data de regresso da mãe, temendo-se a permanência irregular em Portugal.
€204 por mês
O Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) justifica a recusa com o facto de a mãe ter pedido o visto errado: “A referida cidadã apresentou um pedido de visto Schengen sem preencher os respetivos requisitos. Deveria ter requerido um visto nacional de estada temporária para acompanhamento de familiar sujeito a tratamento médico (tipologia E7).” Mas a embaixada nunca lhe explicou isso, mesmo sabendo, pelas cartas dos médicos, que se tratava de uma situação de saúde.
Já depois da resposta do MNE, a mãe voltou à embaixada de Portugal em Bissau, para pedir o visto correto. Mas não conseguiu sequer ser recebida.
A embaixada portuguesa falhou-lhe, a da Guiné também. Isabel nunca recebeu apoio económico do seu país desde que veio para Portugal, apesar de os protocolos de cooperação preverem ajuda por parte dos países de origem. Sobrevive graças ao Rendimento Social de Inserção (RSI), que lhe dá €204 por mês, e ao apoio do primo Silvânio, o único familiar em Portugal, que tratou da sua vinda, que a ajuda a pagar a renda de €245, que lhe faz as compras e a acompanha em todo o processo clínico.
Isabel é agora seguida no Centro Hospitalar de Lisboa Central, a que pertence o Hospital de Santa Marta, o único no país a fazer transplantes de pulmão (ver texto ao lado). Apesar de estar há mais de dois anos a ser acompanhada na consulta de transplantação, só recentemente entrou em lista de espera ativa. Havia doentes mais urgentes e até há pouco tempo a jovem ia conseguindo fazer a sua vida com o recurso a oxigénio, mesmo com grandes limitações. Mas o seu estado agravou-se. “O pulmão direito está completamente destruído e o esquerdo já tem grandes dificuldades”, explica Luísa Semedo, responsável da equipa de transplantação pulmonar. De quanto tempo vai ser a espera, ninguém sabe: há cerca de 60 pessoas na mesma lista.
Neste momento, qualquer esforço pode fazê-la colapsar. “Esteve prestes a desmaiar a tentar subir umas escadas”, conta Ana Cysneiros, que a esperava à saída do barco, na última vez que tentou ir a Lisboa. Pneumologista, estava de urgência no dia em que “Belita” chegou da Guiné, em 2014. Foi quem a admitiu no Pulido Valente, “emagrecida até ao osso”. Tornaram-se amigas, uma família que se escolheu.
Durante a conversa de Isabel com o Expresso, é a médica que lhe completa as frases, quando já não resta à guineense ar para continuar. Conhece-lhe a vida ao pormenor. Sabe que os dois bolos que fez para as visitas demoraram horas a confecionar, com pausas a cada passo da receita. Que a limpeza imaculada da casa não é só de hoje, está sempre assim, apesar do esforço sobre-humano. Que anda preocupada com o vizinho de cima, que ameaça queixar-se ao senhorio do barulho do aparelho de oxigénio. Que lhe dói não ter ido para a universidade estudar enfermagem quando tinha notas para isso, mas faltava-lhe autonomia de oxigénio.
“Quando a ‘Belita’ chegou, falava mal português. Entrou para o 8.º ano e em menos de um ano tornou-se a melhor aluna. Tem uma resiliência surpreendente. Era de esperar que estivesse quieta, na cama. Mas não. Não gosta de mostrar fragilidades. É fácil subestimar o impacto que o oxigénio tem na sua vida”, reconhece Ana Cysneiros.
Para a reportagem, Isabel arranjou o cabelo, pôs trancinhas e uma franja, vestiu-se para ir à rua — sem chegar a ir —, mas já não pôde esconder o tubo do oxigénio durante as fotografias como sempre fez. 24h por dia são 24h por dia. Nem um segundo a menos.
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