13/12/2020 / Jornal Odemocrata
[ENTREVISTA dezembro_2020] A vice-presidente de Federação das Associações das Pessoas com Deficiência, Ana Muscuta Turé revelou em entrevista ao jornal O Democrata que a sociedade guineense continua a praticar “infanticídio”em bebés nascidos com deficiência por considerá-los não humanos ou por terem algum tipo de deficiência. A denúncia da organização foi tornada pública em entrevista exclusiva ao Jornal O Democrata, no quadro do dia 03 de dezembro, assinalado como dia internacional de pessoas com deficiência.
Na entrevista, a ativista defendeu que a data deveria ter sido encarada como um momento de reflexão, mas devido à falta de meios derivada da pandemia que assola o mundo, não foi possível fazer grandes realizações, apenas foi entregue ao chefe de governo um manifesto da organização, com um conjunto de exigências, com incidência na inclusão das pessoas com deficiência em todos os setores da vida pública.
Ana Muscuta Turé denunciou que as pessoas com deficiência deparam-se com um conjunto de problemas, a começar pelos persistentes obstáculos e resistências em aceitar pessoas nascidas com deficiência na família.
DEFICIENTES NÃO FREQUENTAM A ESCOLA, APENAS UMA MINORIA CONSEGUE ALGUM NÍVEL DE ESCOLARIZAÇÃO
“Logo no primeiro momento que uma família descobre que a criança nasceu com uma certa deficiência, é a própria família que inicia um conjunto elaborado de procedimentos para abandoná-las, ou seja, a criança acaba por não ter enquadramento na família e o pior é que as pessoas continuam a matar os recém-nascidos por pensarem que não são seres humanos ou por considera-las simplesmente cobras ou irãs”, notou.
Ana Muscuta Turé condena essa atitude, o “infanticídio” que se verifica em pessoas com deficiência, porque “até agora muitas famílias continuam a matar crianças recém-nascidas por terem algum tipo de deficiência”.
Perante estes comportamentos, Muscuta Turé defendeu a criação um Comité Interministerial que trabalhará em conjunto com a Federação das Associações das Pessoas com Deficiência no aspeto de inclusão nas diferentes instituições de Estado do país.
Para além do infanticídio em crianças nascidas com deficiência, Ana Turé denunciou que muitas vezes, as crianças nascidas com deficiência não são registadas pelos pais nem têm nomes, “um direito que assiste a todos os seres humanos”.
“Se todos somos iguais, por que razão diferenciar filhos dos mesmos pais no tratamento”, questionou e disse que o primeiro obstáculo que se verifica na vida de pessoas com deficiência é a própria família, que as discrimina e não as manda à escola”, assinalou.
A ativista sublinhou que o segundo obstáculo que as pessoas com deficiência enfrentam é na sociedade porque, sustentou, a sociedade não conseguiu entender ainda as dificuldades que as pessoas com deficiência enfrentam.
“Se formos ver no senso do país, vamos descobrir que a maioria de pessoas com deficiência não tem escolaridade. Se a tiverem, porque o nin é baixo e não há uma forma dessas pessoas serem bem sucedidas profissionalmente para seguirem suas vidas”, lamentou.
Ana Muscuta Turé denunciou que as pessoas com deficiência enfrentam várias barreiras ou dificuldades de acesso aos mercados, às instituições, nas estradas que não estão em boas condições, sobretudo para os portadores de deficiência motora, nomeadamente: os de cadeira de rodas, de muletas e deficientes com problemas audiovisuais.
Muscuta Turé criticou os sucessivos governos de nada ou pouco terem feito em relação aos direitos que as pessoas com deficiência têm e da inclusão na sociedade de pessoas com deficiência. Revelou que existem leis: a Convenção Internacional de Pessoas com Deficiência ratificada pelo Estado da Guiné-Bissau em 2014 e a Estratégia Nacional elaborada desde 2018 para a inclusão das pessoas com deficiência, mas desde que foi ratificada o Estado nunca tem feito algo para que fosse aprovada em Conselho de Ministros.
Informou que não existem organizações financiadoras das suas atividades, mas têm parceiros que financiam no caso de existência de um projeto. “Por exemplo, em 2015 implementamos um projeto de inclusão das pessoas com deficiência na Guiné-Bissau juntamente com o nosso parceiro que é Handicap Internacional”, assinalou.
Em relação à covid-19, revelou que a organização não recebeu nenhum apoio do governo nem de outras organizações, apenas recebeu uma pequena subvenção do PUND no início da covid-19 e com esse apoio conseguiu comprar géneros alimentícios, produtos de higiene e de proteção distribuídos a todos seus associados a nível nacional.
“A situação das pessoas com deficiência é mais nas regiões, porque a sua integração e as suas condições de vida nas famílias têm sido questionadas, postas em causa e rejeitadas”, denunciou.
DEFICIENTES SÃO VIOLENTADAS E AS MULHERES VIOLENTADAS SEXUALMENTE
Ana Muscuta Turé revelou na entrevista que as pessoas com deficiência sofrem várias violações no seio das suas famílias, sobretudo violação sexual, física e verbal. “A violação sexual é muito grave nas pessoas com deficiência, mas são as próprias famílias que permitem que as violações ocorram dentro da família”, realçou, lamentando a falta de denúncias contra essas práticas.
“Temos um caso em que uma pessoa com deficiência auditiva foi violada sexualmente e sistematicamente até ficar grávida, mas fazer justiça tornou-se muito difícil, porque o tribunal não tem o domínio da linguagem gestual e para fazer valer os direitos da vítima tivemos que recorrer a algumas pessoas. Graças a essas pessoas chegamos ao fundo do caso e descobrir que a vítima foi violada e ficou grávida do filho de um estrangeiro “, denunciou.
Questionada pelo O Democrata se a organização tem um número exato de casos de violações sexuais ocorridas em pessoas com deficiência, Ana não especificou o número. Porém, frisou que estão em curso trabalhos a nível das regiões e que talvez só no final do ano os dados sejam conhecidos. Sobre a relação da organização com o Ministério da Mulher, Família e Solidariedade Social, assegurou que existe uma boa relação de trabalho, cooperação e de partilha.
Solicitada para falar sobre a passadeira do mercado de Bandim, a ativista considerou “bastante gritante” o que se passa na passadeira, porque constitui grande obstáculo aos deficientes.
“Para além das escadas, existe barreira para as pessoas com deficiência, no acesso às instituições do Estado e aos lugares públicos. As pessoas portadoras de deficiências enfrentam enormes dificuldades, porque não existem rampas de acesso”, criticou.
“Por exemplo, para quem vem da zona de Chapa de Bissau em direção ao centro da cidade, logo na primeira passadeira, enfrentamos enormes estrangulamentos, porque não foi pensada a situação das pessoas com deficiência. Quando uma pessoa portadora de deficiência pretende atravessar a avenida, ela é simplesmente obrigada a seguir em sentido contrário para ter acesso a outra faixa, o que leva tempo e provoca em nós um enorme desgaste físico. É muito preocupante a situação de pessoas com deficiência”, lamentou defendendo que lhes sejam dadas oportunidades de trabalhar a sua autoestima, pelo reconhecimento das limitações possam ter comparativamente às pessoas sem deficiência.
AGRICE RECLAMA MAIOR E MELHOR ATENÇÃO ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
O presidente de Associação Guineense de Reabilitação e Integração dos Cegos (AGRICE), Pedro Cabral, apelou à sociedade guineense a dar maior e melhor atenção às pessoas com deficiência, tendo em conta a vulnerabilidade desta camada. Agrice é uma organização sem fins lucrativos que desde 1996 promove a inclusão social de pessoas com deficiência visual. De acordo com dados revelados pelo presidente de Agrice à repórter de O Democrata, atualmente a organização tem registadas e sob sua responsabilidade cerca de setecentas (700) pessoas com deficiência visual.
O ativista sublinhou que o dia Internacional de Pessoas com Deficiência deveria servir como dia de reflexão para todos, para que todos compreendam que a deficiência é um fenómeno que a sociedade guineense deve encarar com certa naturalidade e exigência. Afirmou neste particular que a sua organização depara-se com enormes dificuldades, sobretudo na deslocação de crianças dos seus lares para a escola, o que constituí um custo “enormíssimo” à organização.
“Deparamo-nos com a falta de combustível. As viaturas já estão velhas e muitas vezes criam enormes transtornos às crianças”, disse. De acordo com a explicação de Pedro Cabral, a Agrice tem uma escola especial para deficientes visuais composta por três polos, com o polo principal situado em Bissaquel, para acolher crianças cegas (Bissau: Cuntum Madina/Bissaquel) e uma no leste, concretamente em Gabú e que “todas as despesas são assumidas pela Agrice desde alimentação, saúde e educação.
“A Agrice não dispõe de nenhuma fonte de rendimento a não ser a cooperação portuguesa que tem financiado as nossas atividades e algumas rubricas em função do valor orçado”, referiu e assinalou que quando as despesas ultrapassam a capacidade de reposta, a organização é obrigada a improvisar.
“Agrice leciona de primeiro ao nono ano e depois alunos são transferidos para liceu Samora Moisés Machel”, disse. Segundo Pedro Cabral, a maior dificuldade reside no lar de acolhimento de Gabú, porque está contemplado no orçamento de Cooperação Portuguesa e quando enfrenta dificuldades, a Agrice intervém para cobrir o défice.
Afirmou que único apoio que a sua organização recebe do governo é afetação de professores à escola por parte do Ministério de Educação que depois são subsidiados pela Agrice, indicou.
Questionado pelo O Democrata sobre os apoios recebidos no âmbito de Covid-19, Pedro notou que algumas organizações e a Federação de Pessoas com deficiência apoiaram Agrice em géneros alimentícios, higiénicos e materiais de proteção, tendo realçado que recentemente recebeu uma ajuda de uma senhora portuguesa, que mobilizou fundos, para construir um “Forno à lenha” para garantir o pequeno-almoço e lanches para as crianças do lar.
Por: Carolina Djemé
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