O debate em torno do racismo em Portugal tem vindo a ganhar visibilidade no espaço público, muito devido ao contributo do ativismo negro. No passado dia 27 de julho, depois de 27 mulheres negras, de diversas áreas de formação e de vários setores da sociedade, se terem unido para lutar pela maior visibilidade e pelo reconhecimento das mulheres negras na sociedade portuguesa, nasceu uma organização “feminista interseccional e antirracista”, o Instituto da Mulher Negra em Portugal (INMUNE).
A direção do INUME é constituída pela presidenta* Joacine Katar Moreira, doutorada na área das Ciências Sociais, pela vice-presidenta Zia Soares, atriz e diretora artística, e pela vogal Carla Costa, bióloga e empreendedora. “Apenas dei o primeiro passo para a sua criação [do INMUNE] porque uma entidade deste tipo fazia muita falta e era desejada por todas as mulheres que abraçaram de imediato o projeto”, começa por dizer Joacine Katar Moreira numa entrevista por e-mail ao Notícias ao Minuto.
Esta vontade em comum, continua a presidenta da INMUNE, traduziu-se na vontade de “poder pensar e induzir mudanças que possam beneficiar a nossa categoria que é historicamente a mais desprotegida”.
Joacine Katar Moreira refere que “as mulheres negras são as grandes sobreviventes da História”, porque “sobreviveram ao colonialismo, ao racismo, à escravatura”, mas há ainda muitas batalhas a travar, como o combate ao machismo e ao sexismo, ou a luta para garantir que os direitos que têm sido conquistados não lhes são retirados. Por isso, a missão do INMUNE passa por “trabalhar para pôr fim à normalização da violência contra todas as mulheres, jovens e meninas”.
Todas nós já sentimos os efeitos do racismo nas nossas vidas, seja de forma mais velada, seja de forma mais diretaAssumindo-se como uma entidade feminista e antirracista, porque “sermos feministas e sermos antirracistas são dois lados da mesma moeda”, uma vez que “a luta antirracista só faz sentido se for feminista, e vice-versa”, o INMUNE reitera que é uma entidade apartidária, mas não apolítica, que defende uma maior representação das mulheres negras na sociedade portuguesa. “Queremos incentivar as mulheres negras a terem uma maior participação na vida política nacional, quer através da sua integração nas estruturas partidárias, quer como candidatas independentes, [assim como] através de um incremento da sua participação eleitoral e cívica”, sublinha a presidenta do INMUNE.
Feministas interseccionais
Joacine Katar Moreira faz questão de realçar que as mulheres do INMUNE definem-se como “feministas interseccionais”, isto é, uma corrente feminista que considera que o racismo ou o colonialismo não podem ser excluídos das reivindicações feministas. No entanto, sublinha, “aquilo que mais afeta as nossas vidas, antes até da questão de género, de sermos mulheres, é a nossa cor de pele”.
“Todas nós já sentimos os efeitos do racismo nas nossas vidas, seja de forma mais velada, seja de forma mais direta, e isso faz com que seja imperativo lutar por uma maior justiça social”, remata.
Devido ao facto de as suas fundadores serem mulheres de diversas áreas de formação, desde realizadoras a professoras, de estudantes a contabilistas, de empresárias a mulheres que, neste momento, se encontram desempregadas, o INMUNE pretende atuar em áreas transversais, que, como adianta Joacine Katar Moreira, podem passar pela escrita de artigos, pela edição de livros, por entrevistas e materiais audiovisuais, sempre com o objetivo de estimular o debate.
Joacine Katar Moreira é a presidenta do INMUNE - Instituto da Mulher Negra em Portugal
© Marlene Nobre
Para tal, a entidade possui oito departamentos para intervir junto das mulheres negras e da comunidade, que vão desde o departamento da sororidade e entreajuda ao departamento da cultura, artes e espetáculos, passando pelo departamento de género, feminismos e questões LGBTQI+ ou pelo departamento da infância e juventude.
Não incluir as nossas perspetivas e ignorar as nossas vozes em questões como a existência de um museu denominado ‘da descoberta’ ou ‘da viagem’ é excluir-nos numa sociedade de que somos parteO INMUNE está a preparar o plano de atividades anual, que será apresentado durante o próximo mês de setembro, mas a organização adianta que está em curso a preparação de duas conferências, uma sobre feminismo negro e afrocentrado, e outra sobre as identidades negras em Portugal, contando sempre com a ajuda do Facebook para provocar debates e reflexões.
"Faltava no debate público o posicionamento coletivo das negras e negros"
Antes de o INMUNE estar registado oficialmente, as fundadoras da organização propuseram e enviaram uma carta contra a criação de um futuro museu “da descoberta” ou “da viagem”, um projeto do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, que tem gerado uma grande discussão em torno do nome do museu, e que levou a uma primeira carta, assinada por historiadores e cientistas sociais que contestam a designação do futuro museu.
Portugal precisa de lidar com o seu passado colonial pautando pela verdadeEm junho, numa carta intitulada “Não a um museu contra nós”, 100 pessoas negras, incluindo as fundadoras do INMUNE, manifestaram a sua oposição a um “museu construído sobre os ombros do silenciamento da nossa História, com o dinheiro dos impostos de negras e negros deste país”.
“Não incluir as nossas perspetivas e ignorar as nossas vozes em questões como a existência de um museu denominado ‘da descoberta’ ou ‘da viagem’ é excluir-nos numa sociedade de que somos parte importante e para a qual contribuímos todos os dias”, explica Joacine Katar Moreira.
Considerando que “Portugal é um país estruturalmente racista” e que “é importante reconhecermos este facto para que se operem mudanças”, a presidenta do INMUNE nota que “faltava no debate público o posicionamento coletivo das negras e negros sobre esta matéria”.
Esta ausência de debate em torno do passado colonial português, visível, por exemplo, no facto de “um livro 6.º ano de 2016 continuar a considerar ‘escravos’ ‘produtos de grande valor’, e dos mitos criados em torno deste passado, atenuado por teses lusotropicalistas ou de negação da violência do tráfico de pessoas escravizadas, leva o INMUNE a agir.
“É importante explicar que ‘escravos’ são ‘pessoas escravizadas’ e que o serem ‘produtos’ naquela época histórica adveio de ideias racistas e da desumanização dos africanos”, reitera Joacine Katar Moreira. É preciso “mudar a forma como as instituições do Estado e a sociedade em geral lidam com os descendentes destes africanos colonizados”.
Por isso, “Portugal precisa de lidar com o seu passado colonial pautando pela verdade”. Essa é uma das grandes missões do INMUNE: questionar esse passado e estimular o debate sobre o presente e o futuro.
*A responsável faz questão que a designação seja presidenta e não presidente.
NAOM
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