sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Alfredo Claudino ALves, ROTARIANO


Faz duas semanas o nosso companheiro Rotariano Alfredo Alves foi a enterrar. 

O Alfredo Alves era Rotariano e viveu a sua curta vida também segundo os princípios desta nossa grande organização. É tão só nessa vertente que quero homenageá-lo, como Rotariano dedicado que foi.

Começo pela maneira como se apresentava nas nossas reuniões e encontros com outros clubes estrangeiros (para quem não sabe, o Rotary tem como tradição a “apresentação”, que basicamente é - em determinadas ocasiões - em poucas palavras os membros dizerem o nome, a formação académica, as funções que desempenham no Clube no momento e aquelas que desempenharam antes): Alfredo Claudino Alves, Medico, Ginecologista e Obstetra e seguido dos cargos que desempenhou no passado e no presente no Clube.


Só a profissão / especialidade que escolheu diz muito dele e da sua abnegação (a obstetrícia é o ramo da medicina que estuda a reprodução na mulher. Investiga a gestação, o parto e o puerpério nos seus aspetos fisiológicos e patológicos. O obstetra é o médico especialista que cuida do desenvolvimento do feto, além de prestar assistência à mulher nos períodos da gravidez e pós-parto (puerpério). Mas cingir-me-ei a sua contribuição para fazer um mundo melhor através da sua dedicação ao Rotary Clube de Bissau. Aqui o “mundo” é a sua amada Guiné.

O Rotary Internacional produz, a cada ano, um lema para a inspiração dos Rotarianos do mundo inteiro. Um dos lemas que caracterizavam o Féfé, como era carinhosamente tratado por todos, é: "Dar de Si Antes de Pensar Em Si" e ele o fazia “sendo a inspiração” como diz outro lema. E através do Rotary quis “fazer a Diferença” e se pôr “A Serviço da Humanidade” e assim vir a ser o que foi nesta vida: “Um Presente para o Mundo”.

A sua maneira “Fez o Rotary Brilhar” ao “Criar Consciência e ser Atuante” agindo com “Coerência, Confiança e Continuidade” durante muitos anos da sua vida.

Fazia jus a todos esses nossos lemas que acabei de citar “entre aspas” e poderia continuar, pois quando nos recomendam a “Agir com Integridade” a “Servir com Amor” e a “Ser Amigo e Trabalhar pela Paz”, “Dar a Mão ao Próximo”, “Plantar Sementes do Amor” então acreditamos que “A verdadeira felicidade está em ajudar o próximo”. Ele acreditava nisso, à sua maneira, da maneira como era, da maneira como actuava.

Não sei quem o conhecia melhor de todos com quem privou; uns o tomavam por teimoso, outros aclamavam a sua retidão, tinha suas ideias próprias sobre o seu País, sobre a política, sobre aquilo em que nos tornamos como povo, malgrado termos entre nós pessoas como ele, que deram tudo para que esta terra fosse melhor. Mas uma coisa é certa, tinha ainda muito para dar e muito para ensinar as novas gerações.

As nossas vidas são efémeras e passam rápidas, mas o que deixamos para trás não. As vezes perduram e passam de gerações para gerações deixando uma marca. Os lugares comuns e a sabedoria popular nos dizem que não importa o que temos ou acumulamos nesta vida pois aqui deixamos tudo e vamos como viemos, sem nada. Os que só pensam em roubar e acumular riquezas nada deixam apenas o nosso eterno desprezo.

Não sendo da minha geração, era sete anos mais velho, conheci-o cedo no Chão de papel, na casa do seu Pai, na famosa escola do saudoso Tio Bernal, que marcou a existência de várias gerações (meu pai levou-me lá numas férias de primeira classe para segunda, ainda aluno da escola Marques de Palmeirim; para Introduzirem alguma disciplina na minha estouvada cabeça de 8 anos. Penso que aí o conheci (e seus irmãos), mas vizinhos que eramos não poderia deixar de o conhecer. Era outro Chão de Papel, eram outros tempos, tempos em que a retidão, honestidade, o sentimento de dever e honra ainda valiam alguma coisa, eram cultuados e os pais queriam que os filhos se tornassem homens honrados.

Essa foi a sua educação, feita de princípios, de deveres, e não apenas de direitos. E com essa educação atravessou a vida até o dia da sua morte.

Com o passar dos anos a “vida se nos perdeu” e só vim a vê-lo na Rússia, na cidade de Rostov-sobre-o-Don,  no ano em que cheguei ele tinha terminado a preparatória e estava a partir para outra cidade onde iria cursar a medicina. Deixou imensas saudades nos amigos e naqueles que com ele privaram, mas voltou ainda umas vezes a nossa cidade para encontrar os colegas que tinha deixado na Faculdade de Medicina como os médicos Inácio Alvarenga, Victor Gomes, João Carlos, etc.  e outros de Portugal, Angola e vários outros países.

E de novo, anos depoi, vim a encontra-lo em Bissau quando voltei dos meus estudos. Não eramos colegas nem amigos e por isso não acompanhei o seu percurso profissional e pessoal como gostaria. E com o advento da Guerra e a minha ida para Portugal, só o vim a encontrar e trabalhar com ele muitos e muitos anos depois no Rotari Club de Bissau.

O meu testemunho não é, portanto, de um “amigo”, mas de um “companheiro” do Rotary. E ali no Clube o vi ajudando as mulheres da cintura verde de Bissau a terem uma vida melhor com um novo sistema de irrigação, ajudando as mulheres da zona  de Bigene a não mais morrerem por falta de maternidade (antes tinham que ir de moto e de bicicleta ou a pé uma trintena de quilómetros para dar luz), a ajudar a clinica Madrugada a ter um poço e deposito de água para os doentes, a ajudar a vila de Blom a ter nova escola e a melhorara as bolanhas para a agricultura, etc., etc. muitas ações que pouca gente conhece. Participante activo, deu o seu sólido contributo, naquilo que podia para melhorar a vida do homem nesta terra.

Muitos de nós que tivemos o privilégio de o conhecer, e cada um, por ventura teve o seu momento de “magia” e de partilha íntima com ele. Eu tive algumas conversas, alguns momentos que vou guardar para sempre.

Há muitos testemunhos de como era este homem: Frontal e direto, obstinado, teimoso como só sabem ser pessoas honestas e despidas de interesse material, mas a um tempo tímido e bondoso, como só sabem ser os que amam o seu próximo e se importam com a sua sorte.

Por isto tudo, como posso homenagear o Dr. Alfredo, o Rotariano de alma e coração, sem falar de suas outras dimensões como ser humano, patriota e amigo? Alfredo era a soma de tudo o que disse e não soube dizer. Homens como ele não lhes interessa só o bem material ou a admiração de seus pares, mas o sentido da vida. Pois por mais ricos que sejamos, por mais mulheres lindas que possuirmos, por mais cultos que possamos ser, chega uma altura das nossas vidas em que, solitários na multidão, a nossa inquietude de homem nos faz pensar que há algo mais, para além do material, que precisa de uma resposta; que precisa ser respondido para se entender o sentido cabal da vida. Pois sem este entendimento último todo o resto não vale nada.

Vou prestar o meu testemunho contando um episódio, ainda presente na minha memória, que se passou comigo e ele. Um dia estávamos a vir de Bigene, onde fomos inaugurar a nova maternidade que fizemos em conjunto com a Rotary Club de uma vila Italiana. Pelo caminho parou (estávamos na viatura dele) e foi me mostrar uma pequena propriedade que tinha, ali, a dezenas e dezenas de quilómetros de Bissau, onde pretendia cultivar algumas hortaliças, criar alguns animais domésticos, etc. Fiquei ouvindo-o e olhando para ele, para o seu entusiasmo e seus planos que me contava e tive pena dele… pois tão longe de Bissau, só o incomodo de ir ate lá tratar da propriedade para um dia dar frutos? Já para não falar da efemeridade das nossas vidas. Mas depois percebi que para ele não era importante o “lucro”, qualquer que fosse, mas a realização; sonhar e fazer… com as suas próprias mãos... o prazer de criar… de ser útil.

Conhecendo tudo isto, procurando palavras certas para escrever em jeito de homenagem a alguém que de certa maneira é um herói nosso, um herói do nosso tempo, um tempo sem heróis, um tempo de comerciantes do poder…  lastimo que como indivíduos e como povo, não tivemos vultos que mudassem esta sociedade ou que não dessemos valor a esses vultos que como o Dr. Alfredo, viveram e trabalharam entre nós, abnegadamente, na pobreza, com sacrifício, e nunca enriqueceram com o património do povo. Fica a sensação de que os “bandidos”, os que só pensam em roubar, desviar e destruir, são a maioria, pois eles é que dominam a boa sociedade e são imitados pelos jovens que não seguem outros exemplos. O Dr. Féfé era o exemplo acabado de quem nunca foi dado o seu verdadeiro valor, nem financeiramente nem profissionalmente, mas também era o exemplo de como esta sociedade trata os seus melhores filhos. Era daqueles que sofria por causa da injustiça instalada no nosso aparelho administrativo em que os que realmente trabalhem, que realmente podem fazer a diferença, estão no fim da escala de vencimentos.

Um dia fui, há anos, com ele visitar a missão católica de Blom, depois de Quinhamel para irmos trabalhar com um Arquiteto Italiano que tinham vindo para em conjunto connosco onstruir uma escola de artes e ofícios. Padres e trabalhadores nos receberam e com os Italianos fizemos as medições e implantação de estacas, para uma nova escola de lindo traço arquitetónico. Na ida e vinda passamos por pequenas aldeias abandonadas a sua sorte como N`Dame, Bor, Tor, Dorse, Quinsana, etc. E assim, discutindo sobre a s nossas desgraças, devagarinho chegamos a Bissau…  na ida e na volta falamos de muitas coisas… vimos como ainda vive o nosso povo em pleno século XXI, sem latrinas, sem hospitais, sem escolas, sem estradas, sem… nada. Por culpa dos que nos governaram.

Creio que o Companheiro Alfredo acreditava num mundo que temos o dever de criar, enquanto formos vivos, na exegese mais profunda das nossas existências. Pois é este o nosso mundo, outro não nos é dado, e temos que viver com ela e nela, de tal modo que ganhemos o Ceu, através da sua criação também. Portanto um mundo que devemos construir, baseado neste preceito Kantiano, onde viveremos segundo um imperativo categórico que nos diz “age de tal modo que possas tratar sempre a humanidade, seja em tua pessoa, seja na do próximo, como um fim; não te sirvas jamais disso como um meio”.

Mas o que eu sei? O que sei dele e de nós? De certa forma ele também era uma incógnita para mim. Em muitas coisas somos parecidos, na nossa obstinação, na nossa teimosia, na nossa franqueza até magoarmos quem menos queremos magoar, sempre a procura de um mundo melhor, de justiça, de algo que faça a diferença, de algo que possa mudar a vida dos homens e deixarmos um mundo melhor do que aquele que encontramos ao chegarmos.

Sim uma incógnita, mas não deixou de causar-me admiração a sua franqueza e seu discernimento e a capacidade de aceitar, com dor o que não podia mudar. Muita boa gente entende que para conhecer um homem basta ler o que ele deixou escrito. Por isso, por exemplo, apressam-se a ler alguma coisa que escreveu Amílcar Cabral, pensando que ali vão descobrir o génio por de trás do homem simples que era. Nada mais errado; um homem é a soma do que fez e não fez quando poderia tê-lo feito. Do que escreveu e deixou de escrever, por não ser popular. Do que realizou e não pode realizar, embora quisesse mais que tudo. As suas perdas e derrotas, o seu sofrimento e suas agonias de alma. Os que amou e não amou, o que amou na terra e não amou, em m suma, como disse Michelet “cada homem é uma humanidade, uma história universal...". O Dr. Alfredo era parte da nossa pequena humanidade, parte pequena da nossa História, mas as páginas que escreveu perdurarão, pois virá um tempo, tempo dos justos, da redenção e do ressurgimento, onde vultos como ele serão valorizados ainda em vida.

Sei que há dezenas de testemunhos de mulheres e crianças, que ajudou, que salvou, que tratou dando cuidados de saúde que poderiam escrever rios de tinta sobre este homem. Sei que os testemunhos delas são muito mais interessantes que as minhas e a minha vivencia com ele não seria, porventura tão dramática e singela como os delas, e penso que outros terão dezenas de outros casos muito mais importantes para contar. Mas é o que eu vivi, é o que me restou da recordação viva dele, da sua urbanidade, sentido de justiça e o amor que tinha por este povo e esta terra é que posso deixar como meu testemunho.

Aqui sentado, pensando nele, não tenho palavras para o descrever… tento lembrar episódios, conversas, viagens que fizemos, discussões, e tudo esta envolto numa nevoa, mas não deixo de pensar que hoje é muito comum afirmar-se que a nossa caótica existência fica muito a dever o facto de não termos vultos de referência. Que somos um povo que tem falta de homens ilustres que pelo seu exemplo de vida deixam legados claros de competência, honestidade e dedicação a causa pública. Que os nossos valores estão totalmente invertidos, que incompetentes sempre dirigiram este Estado desde a independência, analfabetos povoam os órgãos de soberania, os corruptos e venais mandam e ocupam altos postos na hierarquia de Estado. Que os exemplos que se dão e se tomam são de compadrio, de vias criminosas para atingir fins duvidosos. Que os sonhos dos jovens são materialistas, de apego ao dinheiro fácil, mesmo que a custa da prostituição e roubo vulgar. Que o “vale tudo” é filosofia nacional, que o laxismo e o desinteresse que tomou conta das nossas vidas, enaltece, ou é permissivo, com a vil e vulgar “bandidagem”, mesmo que a custa de crimes como a corrupção, compadrio, nepotismo, a delação vergonhosa, narcotráfico ou tráfico de seres humanos...

Estes casos que conto, como exemplo de quem era este homem, resume-o? Não. Mas resume a raiva que tinha do nosso actual descalabro, as centenas de vidas perdidas, centenas de quadros que hoje enriquecem outras nações do mundo, deixando esta nossa de rastos. Não resume milhares de filhos nossos nascidos em outros sítios do mundo que perdemos para sempre, assim como os seus filhos. Não resume a sua profunda insatisfação como povo por estarmos onde estamos ainda por culpa de alguns filhos desta Terra que não escutaram o chamamento da verdade e da retidão.

Fizemos muitas coisas juntos (como as fotografias documentam) por isso lembro-me com saudade dele e alguma perplexidade por ter partido tao de repente (o nosso bom povo diz “sem se despedir”) e por isso resolvi escrever algo que se passou entre nós, para que com o meu testemunho deixe algo escrito (e não apenas contado), mesmo que ínfimo, sobre as suas realizações, mas que ajude de alguma maneira, de facto, na reflexão sobre o seu legado. Gostaria de conhecer outros testemunhos de pessoas que com ele conviveram e quem sabe, um dia, escreveremos junto um ABC comum de testemunhos sobre ele?

Assim termino o meu texto sobre o Dr. Alfredo, tentando transmitir o seu legado, contando sobre o seu agir perante a Deus e perante o próximo. Tudo o que escrevo vem do meu profundo acreditar naquilo que comungávamos com ele, mas por todas imanentes qualidades que tinha, a sua importância no nosso contexto social, as diferentes dimensões que se conjugaram neste ser humano fazem que qualquer tentativa de o definir e enaltecer acabem por ser insuficientes. Só posso dizer: Paz a sua alma.

Fernando J. P. Teixeira

Past Président Rotari Club Bissau

Presidente da Comissão de Projetos

Arquitecto

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