A Guiné-Bissau atravessa um momento de elevada sensibilidade institucional, marcado pela suspensão do processo eleitoral devido a uma situação absolutamente inédita: a Comissão Nacional de Eleições (CNE) declarou não possuir nenhuma ata de apuramento regional, impossibilitando a consolidação e publicação dos resultados provisórios. Em contextos como este, a prudência não é uma opção — é uma obrigação. A legalidade não é decorativa — é a única âncora possível. Porém, Filipe Nyusi, antigo Presidente de Moçambique e chefe da Missão de Observação Eleitoral da União Africana (UA), escolheu violar essas linhas vermelhas com surpreendente leviandade.
As suas declarações públicas — “as eleições correram bem”, “há um vencedor”, “os resultados devem ser publicados imediatamente” — configuram um ato de irresponsabilidade política grave. Pior: ignoram deliberadamente o ponto central da crise. A CNE, único órgão constitucionalmente legitimado para validar o apuramento, não dispõe das atas devidas e não tem condições legais para anunciar qualquer resultado.
Ao exigir a divulgação imediata de resultados que não existem em forma legalmente válida, Nyusi introduziu no espaço público uma narrativa incendiária. Num país historicamente vulnerável a crispação pós-eleitoral, este tipo de precipitação não acalma — agrava. Não estabiliza — desordena. Não observa — interfere.
O esquecimento conveniente: se Moçambique tivesse tido “outros Nyusis” em 2019…
Mais inquietante ainda é o apagamento seletivo que Nyusi faz da história recente do seu próprio país.
As eleições moçambicanas de 2019 foram marcadas por denúncias amplamente documentadas de irregularidades, contestação interna e críticas de observadores independentes. Se naquela conjuntura tivessem surgido atores externos a exigir a proclamação imediata dos resultados, ignorando suspeitas e impasses, Moçambique ter-se-ia aproximado perigosamente do colapso institucional.
O que então se exigiu — contenção, respeito pelas instâncias nacionais, gestão prudente da crise — é precisamente o que Nyusi hoje recusa reconhecer na Guiné-Bissau.
Como pode, portanto, defender para um país aquilo que jamais toleraria no seu próprio?
Como pode reclamar precipitação alheia quando, em 2019, o seu governo beneficiou da paciência prudente da comunidade internacional?
A coerência, afinal, parece ser um luxo que Nyusi dispensa quando se trata da Guiné-Bissau.
Interferência indevida e narrativa inflamável
As declarações de Nyusi tornam-se ainda mais graves porque:
1. Tentam substituir-se à CNE, insinuando a existência de resultados válidos sem atas válidas.
2. Criam expectativas artificiais de vitória, alimentando tensões entre eleitores.
3. Perturbam a ordem pública, num país que já conhece, de sobra, os custos da instabilidade.
4. Fragilizam a credibilidade da União Africana, cuja missão deveria promover calma, legalidade e imparcialidade — jamais precipitação.
Numa Guiné-Bissau onde qualquer gesto pode acender rastilhos adormecidos, as palavras de Nyusi não são apenas inadequadas. São perigosas.
A responsabilidade de quem conhece o peso das palavras
Com a experiência e o estatuto que possui, Filipe Nyusi deveria ser o primeiro a saber que declarações mal calibradas, emitidas num ambiente político frágil, podem produzir danos irreversíveis. O seu papel exige:
— distanciamento,
— rigor factual,
— respeito pela soberania institucional,
— compromisso inequívoco com a estabilidade.
No entanto, a sua intervenção seguiu o caminho oposto. Nyusi atuou não como observador internacional, mas como agente político. E, ao fazê-lo, expôs a Guiné-Bissau a riscos desnecessários e comprometeu a neutralidade que se exige à UA.
Conclusão: a soberania da Guiné-Bissau não é descartável
A estabilidade de um Estado soberano não pode depender de declarações impulsivas de antigos dirigentes estrangeiros. A Guiné-Bissau exige respeito. Exige rigor. Exige responsabilidade. Não aceitará imposições contrárias à Constituição nem à verdade factual do processo em curso.
Se em 2019 Filipe Nyusi não admitiu ingerência precipitada sobre o processo eleitoral moçambicano, não pode esperar que a Guiné-Bissau aceite hoje sermões que violam a legalidade, afrontam a CNE e colocam em risco a paz social.
A estabilidade não se constrói com declarações inflamadas.
A paz não se preserva com pressão mediática.
E a soberania da Guiné-Bissau não pode ser sacrificada à imprudência verbal de ninguém.
Bissau, 4 de dezembro de 2025
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Fala um ex-Presidente cuja marca política ficou associada ao episódio mais obscuro da história eleitoral de Moçambique - um processo manchado por denúncias sistemáticas de fraude, repressão violenta e um rasto de instabilidade que custou vidas. Cerca de uma centena de manifestantes foram mortos, o país mergulhou no caos institucional e, apesar disso, o poder foi “consolidado” à força, garantindo a vitória de quem jamais teria vencido num escrutínio verdadeiramente livre.
É esse o perfil do homem que hoje pretende ditar o rumo de eleições alheias.
Uma ironia trágica - e uma ousadia que a Guiné-Bissau não deve aceitar.
04/12/2025




























