quinta-feira, 14 de junho de 2018

Um Mundial de alto risco... até para Putin

Numa fase de tensão nas relações entre Moscovo e o Ocidente, a Rússia joga neste Campeonato do Mundo a sua imagem internacional

Durante as próximas quatro semanas, a Rússia de Putin vai estar sob os olhares do Mundo

As grandes competições desportivas tiveram desde sempre, dos Jogos da Grécia clássica aos Jogos Olímpicos da era moderna ou aos Mundiais ou Europeus de futebol, uma enorme carga simbólica e uma vincada dimensão política.

Há 38 anos, em plena Guerra Fria, o Ocidente reagiu à intervenção soviética no Afeganistão boicotando os Jogos Olímpicos de 1980 em Moscovo - e roubando assim grande parte do brilho a uma ocasião desportiva e política em que a URSS tanto apostara.

Poucas vezes a realização de uma prova desportiva internacional terá, ainda assim, assumido um peso político tão marcado como este Mundial da Rússia. Numa fase de forte crispação nas relações entre a Rússia e o Ocidente estará muito mais em jogo do que a disputa do título mundial de futebol nas próximas quatro semanas na Rússia. Um Mundial bem-sucedido constituirá um momento de afirmação da Rússia no plano internacional.

Eventuais perturbações no decorrer da competição ou incidentes graves poderão estragar a festa e agravar ainda o clima de tensão nas relações entre a Rússia e o Ocidente.

A Rússia jogou recentemente a sua imagem no Mundo noutra grande competição internacional. Os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, em Sochi, deixaram, nesta perspetiva, um balanço mitigado. A preparação dos Jogos ficou marcada por polémicas envolvendo os elevados custos e acusações de corrupção, e o êxito dos atletas russos seria depois manchado pelas acusações de doping. No plano político, os Jogos de Sochi seriam ensombrados pelas críticas internacionais ao regime de Putin e depois pelas incidências da crise na Ucrânia. A chanceler alemã Angela Merkel, o presidente francês François Hollande e outros líderes europeus recusaram-se a marcar presença em Sochi em reação às alegadas perseguições aos homossexuais na Rússia.

Este Mundial 2018 representa assim um formidável desafio para a Rússia em matéria de organização, de segurança e de grande ocasião mediática. Em termos de organização e segurança a Rússia já passou o primeiro teste coma Taça das Confederações do ano passado, mas desta feita o teste tem outras dimensões, quer no plano desportivo quer, sobretudo, em matéria política.

Ameaças de boicote

A tensão política que envolve este Mundial 2018 esteve logo marcada no momento em que, em Dezembro de 2010, foi anunciada a vitória da candidatura russa à organização da prova. As relações entre a Rússia e o Ocidente atravessaram desde então dias atribulados - da crise ucraniana e da anexação russa da Crimeia, em março de 2014, ao apoio russo a Bashar al-Assad, na Síria, ou, mais recentemente, ao caso Skripal -, e a cada crise a ameaça de boicote aflorou nos discursos políticos no Ocidente.

Já em setembro de 2014, em plena crise da Crimeia, a Al Jazeera referia que o vice-primeiro ministro britânico Nick Clegg falava da hipótese do boicote ao Mundial da Rússia como uma "poderosa sanção política e simbólica". E o El País adiantava que a Comissão Europeia chegou a considerar a hipótese de um boicote do Mundial 2018 no quadro das sanções à Rússia pela crise na Ucrânia.

Mais recentemente o caso Skripal, o misterioso episódio do envenenamento de um ex-espião russo no sul de Inglaterra, envenenou as já difíceis relações entre Londres e Moscovo. O Governo de Theresa May denunciou "mão" do Kremlin no caso, a imprensa britânica anunciou que nenhum membro da família real ou do Executivo britânico honraria com a sua presença o Mundial da Rússia. Dias depois a Islândia anunciava que os responsáveis políticos de Reiquejavique não marcariam presença no Mundial.

De acordo com o Daily Mail responsáveis britânicos discutiram mesmo com os aliados europeus a hipótese de um boicote coordenado ao Mundial e terá sido evocada a hipótese de a própria seleção inglesa se recusar a marcar presença na Rússia. Os apelos ao boicote não tiveram porém eco significativo, mas testemunharam uma vez mais a carga política que rodeia desde há muito este Mundial.

O peso das tensões entre a Rússia e o Ocidente confere a alguns momentos deste torneio da Rússia uma carga simbólica muito especial. Será em particular o caso de Kaliningrado, um enclave russo no Báltico, encravado entre os territórios da Polónia e a Lituânia, ambos membros da NATO e da União Europeia. Uma faixa de território fortemente militarizada, sede da esquadra russa do Báltico, e que tem sido, em particular desde a crise da Ucrânia de 2013-2014, palco de uma alta tensão militar entre a Rússia e a NATO. Ao mesmo tempo, Moscovo tem procurado afirmar a modernidade e o desenvolvimento do enclave, transformando Kaliningrado numa zona económica livre que lhe mereceu o epíteto de "Hong Kong da Rússia". Os quatro encontros do Mundial aprazados para o novíssimo estádio Arena Baltika, construído expressamente para a ocasião, decorrerão a poucos quilómetros da fronteira polaca - e do forte dispositivo militar da NATO.

Os fantasmas de Marselha

Outro dos grandes desafios que se coloca às autoridades russas é o da segurança dos adeptos. A questão coloca-se de forma muito particular em relação aos apoiantes da seleção inglesa. Estão ainda presente na memória os violentos confrontos de há dois anos, no Europeu de França, entre adeptos russos e ingleses antes e depois do encontro entre as duas seleções em Marselha. A venda de bilhetes para este Mundial da Rússia em Inglaterra foi significativamente mais baixa do que em anteriores edições.

A Rússia foi obrigada a um esforço particular na prevenção de incidentes entre claques dentro e fora dos estádios. A má fama deixada pelos hooligans russos em Marselha agravou-se ainda nos últimos meses com a repetição de incidentes graves como as manifestações de racismo visando jogadores franceses de origem africana durante um encontro amigável com a Rússia em São Petersburgo. Os adeptos russos já referenciados pelas autoridades, entre eles muitos dos que participaram nos incidentes de Marselha, têm sido obrigados a apresentar-se regularmente à polícia e advertidos contra quaisquer incidentes violentos e alguns obrigados mesmo a assumir compromissos por escrito.

A fama dos hooligans ingleses nada lhes fica a dever. Ainda num recente amigável Holanda-Inglaterra registaram-se incidentes graves provocados pelos seguidores das cores inglesas. As polícias russa e britânica trocaram informações ao longo dos últimos tempos e estudaram ações coordenadas para prevenir a repetição do cenário de Marselha.

As relações tensas entre Londres e Moscovo - e que se refletem por exemplo numa clara diminuição do turismo britânico na Rússia - pesam também na situação dado o frequente envolvimento de expressões nacionalistas na violência das claques.

Sob os olhares do Mundo

Durante as próximas quatro semanas a Rússia de Putin vai estar sob os olhares do Mundo e os holofotes de uma imprensa internacional que os russos tendem a ver como hostil ao país. A juntar às crises internacionais, o regime de Putin tem sido acusado no Ocidente de deriva autocrática, de desrespeito pelas normas democráticas e pelos direitos humanos, de homofobia, ou de perseguição à comunidade LGTB. Praticamente no início do seu quarto mandato à frente dos destinos do Kremlin, é o próprio regime Putin que estará em jogo neste Mundial.

Palco onde estarão concentradas as atenções de todo o Mundo, não deixa de representar uma ocasião particularmente tentadora para as mais diversas manifestações de ordem política e social ou mesmo para incidentes mais graves.

Desacatos mais sérios entre adeptos, manifestações que levem a uma intervenção policial mais musculada bastariam para manchar gravemente a grande ocasião e transformar o Mundial da Rússia num fracasso humilhante para Moscovo e para gerar uma potencial crise política e diplomática. As autoridades russas tomaram igualmente medidas particulares para prevenir a eventual ameaça de um atentado terrorista em plena competição. Situações de grande tensão como a do leste da Ucrânia ou da Síria não deixam igualmente de pesar como uma ameaça potencial ao bom andamento deste Mundial.

dn.pt

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