Fodé Mané é um jurista que estudou em Lisboa (mestrado) e em Coimbra (doutoramento).© LEONARDO NEGRÃO/GLOBAL IMAGENS
César Avó DN.pt 20 Fevereiro 2022
Fodé Mané, presidente da rede de defensores dos direitos humanos, não crê que tenha havido uma tentativa de golpe de estado no dia 1 de fevereiro. O antigo reitor da Universidade Amílcar Cabral aponta para o narcotráfico e para o apoio do Senegal no endurecimento do regime.
Qual a sua leitura dos acontecimentos de dia 1?
A minha leitura baseou-se nas declarações de Umaro [Sissoco Embaló, presidente da Guiné-Bissau], quando disse que foi um grupo isolado, ligado ao narcotráfico. Porque se fosse um golpe de estado ia aparecer alguém que ia encabeçar e tentar convencer as pessoas. Eu fazia essa leitura há muito tempo, de que a divergência no seio do partido que apoia Umaro [Madem G-15], principalmente entre ele e Braima Camará, tinha a ver com a luta dos gangues. Esses gangues querem influência e quando têm influência afastam o outro grupo. Cada um quer ter muita influência, com a eliminação dos próximos de Braima e a ascensão dos próximos de Umaro. E o Braima Camará, que agora está em Portugal, foi quem fez este monstro político. Aquando do consulado do Jomav [José Mário Vaz, presidente até 2020] tinha todos os poderes, demitia o governo, nomeava o fulano tal, enviava dinheiro vivo para Lisboa, e perdeu essa influência com o Umaro. Os traficantes quando vão atacar não é para matar à primeira, atacam para fazer terror e conseguir uma exigência. Para mim é difícil falar de golpe de estado, já tivemos aqui, e agora recentes à volta, sabemos como se faz. E as pessoas acusadas são pessoas ligadas ao narcotráfico. Para mim não está em causa a sucessão do poder, está em causa o domínio de uma determinada fação de negócio ilícito. Os traficantes não lutam para ter o poder, mas para terem controlo dos que têm poder. É uma luta para controlar melhor o poder dentro do próprio poder, e que está a ser aproveitada para silenciar outras vozes, na qual o Senegal, devido ao seu próprio interesse, está a patrocinar. Neste momento qual é o interesse da comunidade internacional para ter uma força [militar]? Para fazer a interposição entre quem? Para substituir as nossas forças armadas? Ou para, como algumas pessoas estão a supor, garantir que o acordo de exploração de petróleo seja irreversível? O Senegal teve duas experiências na Guiné de que não saiu bem e tem uma rebelião na parte sul. A estratégia do Senegal é influenciar a CEDEAO e o seu presidente é neste momento líder da União Africana, que na questão da Guiné vai estar silenciada.
Macky Sall é amigo de Umaro Sissoco Embaló.
Não é só amigo, é cônsul, ele é que o dirige. Até acordos para apoios a Umaro foram assinados com o apadrinhamento de Macky Sall, no Senegal. As pessoas dizem que eles têm o sonho de uma aliança polar, de tentar que um grupo étnico, o fula, controle a zona.
Isso é crível?
Tem muitos adeptos, mas não é possível que vá avante, não é possível exercer o poder em nome de um grupo étnico. Mesmo o Umaro conseguiu o apoio dos muçulmanos, não só dos fulas, mas também dos balantas por causa do PRS do Nuno Nabiam. Não é por acaso que só com cinco deputados ficou primeiro-ministro.
Essas dissensões interétnicas não são racismo?
É uma espécie de racismo. Qual é o fundamento? Que uma etnia é superior à outra, só que aí está a sua fragilidade. Dentro dos próprios grupos há hierarquização, há os descendentes de escravos, outros da nobreza. É um aproveitamento político sem pernas para andar no caso da Guiné. Hoje é difícil sermos puros, por assim dizer. Por exemplo, sou da etnia biafada, que é menos de 3% da população. A minha mulher é da etnia nalu. Digo que existe tribalismo e racismo mas não com força para vencer.
Até porque na Guiné-Bissau existem muitas etnias.
Estima-se em cerca de 30. A questão étnica não funciona. E veio a questão religiosa, nós sabemos que à corrente tradicional islâmica surgiram outras e entram em confronto com as formas tradicionais, mas há várias correntes e nenhuma tem o domínio sobre as outras. Essa composição sociológica é garantia de coesão.
"As pessoas dizem que Embaló e Sall têm o sonho de tentar que um grupo étnico, o fula, controle a zona. Mas não é possível exercer o poder em nome de um grupo étnico."
Vê alguma ligação entre o 1 de fevereiro e o ataque à Rádio Capital, dias depois?
Há uma ligação clara: depois de 1 de fevereiro intensificou-se a segurança, mas havia especulação quanto ao que aconteceu. Para o governo era uma tentativa de golpe de estado, para outras pessoas não, e havia uma contradição com o que Umaro Sissoco Embaló tem dito. Então as pessoas estiveram a questionar, estamos perante o quê? Ajuste de contas do narcotráfico, como disse o presidente, se foi um grupo de descontentes que quer assumir o poder, se é uma manobra de tentar endurecer, como aconteceu na Turquia depois daquela tentativa de golpe que Erdogan aproveitou. Era na Rádio Capital que as pessoas tinham voz. Os comentários de Rui Landim tinham muita audiência, especialmente na nossa diáspora. Entendeu-se que enquanto esta rádio mantinha esta linha editorial, que era a de dar o que as autoridades dizem, mas depois ouvir outras pessoas, tinha de ser atacada. Não temos dúvidas. Primeiro, porque antes houve ameaças; segundo, os comentários que fizeram depois; e no dia seguinte, nos comunicados oficiais não se menciona a Rádio Capital. E na comunidade internacional ninguém se solidarizou com a rádio, só com o governo.
Há um ano queixou-se do aumento da violência sobre os defensores dos direitos humanos. Quem são estas pessoas e que violência têm sofrido?
Os defensores fazem parte de instituições como a Liga Guineense dos Direitos Humanos. Depois há as pessoas que são sensíveis às questões de direitos humanos, que constantemente intervêm. E também aqueles que intervêm em áreas setoriais, achamos que estão a defender os direitos humanos. Por exemplo, o direito à educação, direito à saúde, direitos das mulheres, direitos dos trabalhadores. Temos a rede nacional de defesa dos defensores e a partir de 2020, com a instalação do atual regime, que coincidiu com a pandemia mundial, o poder político tinha um problema de legitimação, porque não havia uma decisão sobre as eleições do Supremo Tribunal, e um grande setor das forças armadas estava reticente. Como forma de consolidar o poder decretou-se o estado de emergência, sem que haja condições no país. Depois aumentou-se o recrutamento das forças de segurança de forma desorganizada e começou a haver muitas perseguições. Nós, ativistas, estivemos atentos a denunciar as situações.
Que situações?
Por exemplo, o Estado não fornece máscaras e no início da pandemia custavam entre 750 e 1000 francos CFA. Um quilo de arroz custa 400 francos CFA. Poucos tinham aquela possibilidade e depois havia exército a bater nas pessoas na rua. Mais tarde passou-se para o estado de sítio, em que a partir das 20.00 ninguém podia estar nas ruas. Houve muçulmanos que estavam a rezar na rua e que foram espancados. Outro caso: os professores têm o estatuto da carreira docente aprovado em 2011, que não está a ser aplicado. Em contrapartida, os titulares de órgãos públicos, por ex. Quem ganhava 150 mil francos CFA passou para 2 milhões. Foi aí que começaram os protestos e houve adesão maciça dos professores. Como não são hábeis em lidar com esta situação, cortaram os salários a esses professores que estão a reivindicar legitimamente, porque a nossa lei prevê o direito à greve.
Um mistério com três semanas, três suspeitos e explicações diferentes
A justiça está a fazer o seu trabalho, garante o PM guineense. Até lá continuam as dúvidas.
Ao fim de três semanas do ataque ao Palácio do Governo da Guiné-Bissau, que se saldou na morte de oito pessoas (uma delas atacante), as dúvidas permanecem para lá das vítimas e dos vidros estilhaçados e buracos causados por bazucas. Quem foram os autores do tiroteio que durou cinco horas? Qual o seu objetivo? Quem são os mandantes? E por que razão os militares e a força especial da polícia não interveio, deixando a guarda presidencial a tentar retomar o palácio sozinha?
Segundo o presidente Umaro Sissoco Embaló, que naquele dia presidia ao conselho de ministros, como é seu hábito, quem levou a cabo o ataque foram "assassinos financiados pela máfia da droga", sem ligação às forças armadas, e o móbil era o de matá-lo para impedir a sua luta contra o narcotráfico. Dias depois, o chefe de estado designou três condenados por tráfico de drogas nos Estados Unidos como responsáveis pelo ataque, que considerou também ser uma tentativa de golpe de estado. Os suspeitos são o antigo contra-almirante José Américo Bubo Na Tchuto, Tchamy Yala e Papis Djemé, que já cumpriram pena de prisão e foram deportados para a Guiné. Na semana passada terão sido detidos.
Já o porta-voz do governo apresentou uma versão diferente. Fernando Vaz, que também é ministro do Turismo, responsabilizou um "grupo de militares e paramilitares", o qual teria como objetivo "a decapitação do Estado guineense, com recurso a pessoas envolvidas no narcotráfico e contratação de mercenários, rebeldes de Casamansa".
O primeiro-ministro Nuno Nabiam, que revelou os pormenores da fuga dos ministros em entrevista à Radio France Internacional (RFI) - e que passou por terem de saltar o portão das traseiras do palácio - preferiu não entrar em acusações. "Há muita especulação. Não gosto de me pronunciar sem ter factos. Tudo está sob investigação. Há pessoas que foram detidas porque há uma ligação à volta de tudo isto. Há suspeitas. Estamos à espera que a justiça faça o seu trabalho", disse à RFI. "É verdade que o presidente falou disto, relacionou os factos com a atividade do narcotráfico e também falou-se na possibilidade de ser um golpe orquestrado ou de um ato terrorista", disse ainda.
Dias depois, a Rádio Capital foi alvo de um ataque por pessoas armadas: o equipamento ficou destruído e sete pessoas ficaram feridas, entre elas a jornalista e ativista Maimuna Bari, que devido à gravidade dos ferimentos teve de ser transportada para Lisboa. Também foi atacada a casa do comentador daquela estação Rui Landim.
Por fim, o chefe das Forças Armadas Biagué Na Ntan, regressado ao país depois de tratamento médico em Espanha, deu "diretivas de comando" a todos os militares para iniciarem ações de busca para encontrar os autores do ataque. Perante os comandantes militares, o general considerou "uma vergonha" que os militares "não tenham feito nada, não tenham perseguido" os autores dos ataques ao Palácio do Governo. E disse que iria receber uma delegação da CEDEAO para saber a sua posição sobre o envio de uma força militar.
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