terça-feira, 19 de agosto de 2025

Trump admitiu ir contra uma "linha vermelha do Kremlin" e a Ucrânia propõe pagar para que ele faça isso (ou algo parecido)

Por João Guerreiro Rodrigues   cnnportugal.iol.pt

Trump muda o tom e abriu a porta a dar aquilo que muitos europeus sempre quiseram: um "backstop"

A sombra da emboscada na Sala Oval, em fevereiro, pairava sobre o encontro em Washington desta segunda-feira. O presidente ucraniano, visivelmente tenso, preparava-se para enfrentar um Donald Trump que tinha acabado de estender o tapete vermelho para Vladimir Putin, no Alasca, dias antes. Mas, desta vez, Zelensky vestiu um fato, disse "thank you" várias vezes e o resultado foi diferente. O presidente americano não descartou a hipótese de enviar soldados americanos para o terreno como forma de dar garantias de segurança à Ucrânia, algo que os líderes europeus referiam que pode ser "histórico". Os especialistas ouvidos pela CNN admitem que a presença americana daria algo que os europeus não podem dar mas que pode ultrapassar "uma linha vermelha" do Kremlin.

"Tropas no terreno é uma linha vermelha. A proposta do presidente americano significa que a Ucrânia não entra na NATO, mas a NATO entra na Ucrânia. Isso é uma linha vermelha dos russos, que querem fazer com que a Ucrânia tenha o seu exército reduzido a uma guarda nacional. Se o vão conseguir ou não, é outra questão", explica o major-general Agostinho Costa. 

No passado, vários líderes europeus admitiram a possibilidade de enviar militares para a Ucrânia para apoiar um esforço de paz, particularmente França, Reino Unido e os Estados bálticos. Seria uma coligação liderada por Paris e Londres e incluía até 50 mil soldados para dissuasão em áreas estratégicas, como proteção do espaço aéreo e do Mar Negro. Só que este projeto nunca conseguiu ganhar forma por não ter força dissuasiva suficiente para travar um futuro ataque russo contra a Ucrânia. "Não é a presença de 30 mil europeus que vai dissuadir a Rússia", defende o tenente-general Marco Serronha. 

Em parte, essa intenção europeia recuou devido à relutância de outras potências em participar, principalmente a Alemanha e a Polónia, que levantavam sérias dúvidas em relação à capacidade de defesa europeia sem um "backstop" americano. Mas tanto Trump como o seu antecessor, Joe Biden, sempre recusaram esta possibilidade. Até agora. Esta segunda-feira, em declarações aos jornalistas, Trump admitiu que está disposto a "ajudar muito" os países europeus, que serão "a primeira linha de defesa" contra a Rússia no continente. Questionado acerca da possibilidade de enviar militares para o terreno para ajudar os europeus, Trump diz que está disposto "trabalhar com toda a gente" para garantir que a paz "seja de longa duração". E avançou que "talvez" ao fim do dia se soubesse se as tropas iam ou não ser enviadas: Trump não se comprometeu com nada, mas também não descartou a opção.

A mudança de tom de Trump, ao não descartar tropas americanas no terreno, marca uma viragem. “Garantias de segurança têm de ter alguma presença de soldados no terreno e isto pode não ser uma boa coisa”, considera Marco Serronha, apontando o risco de escalada. A possibilidade de uma força americana, mesmo que limitada a apoio logístico ou defesa aérea, oferece à Ucrânia uma dissuasão que a Europa não pode igualar, especialmente em termos de garantias nucleares, vistas como “o principal objetivo de dissuasão” por Kiev. Apesar de o Reino Unido e França terem o seu próprio arsenal nuclear, este não tem nem a dimensão do arsenal americano tem está apoiado pela tríade nuclear: a capacidade de lançar mísseis de terra, ar e mar.

"Garantias nucleares, esse é o principal objetivo de dissuasão que a Ucrânia quer. Quem dá garantias de segurança compromete-se a levar ao limite. Se não houver a garantia de que os EUA participam de forma positiva, a Rússia pode pensar que é um ataque", sugere o tenente-general Marco Serronha. 

Esta capacidade da presença dos EUA é crucial para Kiev, que ainda olha com remorso para a assinatura do Memorando de Budapeste, que levou à entrega do seu arsenal nuclear em troca de garantias de segurança de vários países, incluindo dos Estados Unidos. Por esse motivo, Zelensky e a sua equipa foram preparados para o encontro na Casa Branca. Não foi só o fato: a equipa ucraniana foi "munida" de uma oferta de compra de 100 mil milhões de dólares de armamento norte-americano em troca de garantias de segurança, de acordo com um documento revelado pelo Financial Times

Esse acordo prevê ainda um outro acordo, de 50 mil milhões de dólares, para produção de drones com empresas ucranianas que aperfeiçoaram esta tecnologia desde 2022 e que permitiram à Ucrânia travar os avanços de Moscovo no terreno. Ainda assim, o documento não especifica quais as armas em concreto que os ucranianos se comprometem a comprar, apesar de terem expressado publicamente a intenção de comprar 10 baterias antiaéreas Patriot.

Ainda assim, os especialistas acreditam que as negociações de paz - Donald Trump voltou a afastar a ideia de cessar-fogo inicialmente proposta por si próprio - enfrentam objetivos inconciliáveis. "No limite, a Rússia quer uma Ucrânia subordinada, o território é só um instrumento”, explica Marco Serronha, enquanto a Ucrânia exige a retirada russa e garantias de soberania. Num cenário minimalista, Kiev pode aceitar a ocupação temporária de territórios como a Crimeia e o Donbass, mas apenas com garantias realistas. A Rússia, por sua vez, insiste em limitar as forças ucranianas, rejeitando qualquer presença ocidental. 

O Kremlin reagiu rapidamente às declarações do presidente americano, com a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros a rejeitar a "presença na Ucrânia de um contingente militar com a participação de países da NATO". Mas continua sem se saber se a garantia de segurança sugerida por Donald Trump esta segunda-feira na Casa Branca foi discutida no Alasca com Vladimir Putin. Para o tenente-general Marco Serronha, pode ser perigoso para o Ocidente ter uma garantia de segurança acordada entre os EUA e a Rússia.

"Trump está a tentar arranjar uma espécie de meio termo que dê conforto À Rússia, mas garantias de segurança propostas pelos americanos aceites pela Rússia são sempre de desconfiar. Os russos só aceitarão um acordo que poderão explorar", considera o tenente-general. 

A abertura de Trump para tropas americanas no terreno é um divisor de águas, mas arriscado. A Rússia, que vê qualquer presença ocidental como uma “ameaça direta,” pode responder com escalada, enquanto a Europa, relegada a “primeira linha de defesa,” enfrenta o desafio de atuar sem clareza sobre o apoio dos EUA. “As garantias têm de ser dadas pela NATO. Tudo isto está preso por arames”, alerta Marco Serronha, para quem a paz na Ucrânia é um jogo de alto risco e a promessa de paz de Trump soa mais como uma aposta incerta, que corre o risco de acabar esmagada entre as exigências russas, as ambições ucranianas e uma Europa incapaz de se impor.

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