Por LUSA 24/09/22
A instabilidade política na Guiné-Bissau, que celebra hoje 48 anos de independência e onde nenhum Governo terminou o mandato, está ligada a uma cultura de masculinidade exacerbada, com origens na luta pela independência, defende a historiadora Joacine Katar Moreira.
"Entre os mil motivos [da instabilidade] que os académicos, os consultores, os organismos internacionais, têm sucessivamente identificado, como o tráfico de droga, o tráfico de armas, conflitos ou tensões étnicas, há um elemento que une tudo isto, que é a cultura de masculinidade", disse a investigadora luso-guineense.
Em entrevista à Lusa a propósito do seu livro "Matchundadi: Género, Performance e Violência Política na Guiné-Bissau", cuja segunda edição foi recentemente lançada, a historiadora, ativista e ex-deputada à Assembleia da República Portuguesa defendeu que a "enorme instabilidade política e governativa" guineense está relacionada com a cultura de 'matchundadi'.
O conceito, conhecido de "todos os guineenses", é definido pela autora como "uma masculinidade exacerbada, hiperbolizada, com o objetivo de capturar o poder e manter o poder".
"Captura-se antes, mas imediatamente é necessário encontrar mecanismos de manutenção do poder, porque o mais difícil na política guineense não é uma pessoa aceder ao poder, é manter-se lá", disse, lembrando que nenhum executivo, em 48 anos de independência, conseguiu concluir os quatro anos de mandato.
No livro, que resulta da sua tese de doutoramento, Katar Moreira recupera a história dessa 'matchundadi' e explica-a com a época da luta pela independência, quando foi preciso unir mais de 20 etnias que coabitavam "num espaço pouco maior do que o Alentejo".
"Havia uma grande diversidade étnica que impossibilitava dizer-se 'somos um único Estado, uma única nação'. Mas havia um elemento unificador: a masculinidade".
Perante os ataques que o sistema colonial fazia às masculinidades dos homens africanos, os independentistas diziam: 'Vai admitir que o português ocupe a sua terra, leve as suas filhas, pegue a sua mulher?', exemplificou.
Amílcar Cabral e o seu Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) conseguiram assim "algo único: a união, não apenas das várias etnias, mas das várias classes" sociais do país.
Esta exacerbação das masculinidades étnicas guineenses "originou guerrilheiros implacáveis, violentos" que levou a que a Guiné fosse a única colónia a vencer a guerra colonial e a declarar unilateralmente a independência.
No entanto, esse espírito de guerrilha não terminou com o alcançar da independência e foi transposto para a edificação do Estado independente, mantendo-se até hoje, o que constitui o foco de conflitos, instabilidade e violência, em que impera a lei do mais forte e do mais violento.
Nesse contexto, o adversário é olhado como inimigo, como um obstáculo a abater, porque enquanto ele existir o poder do líder está ameaçado.
E, segundo o conceito de 'matchundadi', a única maneira de um homem recuperar a sua masculinidade é afetar a masculinidade do indivíduo que afetou a sua, o que normalmente se faz "através da eliminação física do outro".
Mas, para Katar Moreira, a origem desta cultura "é a ilusão do sistema de justiça".
"Só existe cultura de 'matchundadi' porque não existe sistema de justiça, porque existe um ambiente de impunidade em que, entre dezenas e dezenas de assassínios de figuras políticas nunca houve um julgamento na Guiné-Bissau. Foi assassinado um Presidente da República, ao mesmo tempo que o chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, foram assassinados ministros, desapareceram governantes e, em 48 anos, nunca houve acusação, muito menos julgamento".
A erosão do sistema de justiça contribui para que, quem tem mais energia, mais capacidade de intimidação e mais força, mais facilmente tem acesso ao poder político.
Enquanto antes no início da construção do Estado independente esse papel era assumido por quem tinha armas, hoje há outra maneira de afirmação das masculinidades: o acesso ao dinheiro.
"Quem tem dinheiro tem capacidade de redistribuição, que é um elemento constituinte da masculinidade", disse a investigadora, sublinhando que esta é uma caraterística, não só da Guiné-Bissau, mas de África, da Europa, do Ocidente...
Para a historiadora luso-guineense, se desaparecesse a 'matchundadi', desapareceria também "o sumo que tem regado a política guineense" e a única forma de quebrar o ciclo de instabilidade no país é reforçando o sistema de justiça, sem o qual não existe "Estado de direito", e investir na Educação, desde a básica à universitária.
FPA // VM. Lusa/Fim
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Por LUSA 24/09/22
A historiadora luso-guineense Joacine Katar Moreira alerta que a Guiné-Bissau vive hoje uma "época perigosíssima", em que a sociedade está dividida "como nunca" por questões políticas.
"Estamos numa época perigosíssima, em que há uma divisão da sociedade guineense como eu nunca assisti", disse a investigadora, em entrevista à Lusa, quando a Guiné-Bissau celebra 48 anos de independência.
Autora do livro "Matchundadi: Género, Performance e Violência Política na Guiné-Bissau", cuja segunda edição foi recentemente lançada, Joacine Katar Moreira diz que os guineenses estão divididos, com famílias desavindas e "irmãos que não conseguem comunicar", independentemente de viverem ou não no país.
"Tenho imenso receio de que entremos num buraco sem saída ou que -- porque sou otimista e não acredito que não haja saída - para sairmos dali vamos magoar-nos uns aos outros como nunca nos magoámos".
Para a historiadora e ativista, ex-deputada na Assembleia da República Portuguesa, vive-se atualmente "um retrocesso politico" na Guiné-Bissau.
"Deveríamos estar com óticas renovadas do século XXI e não com óticas do início do século XX", lamentou Katar Moreira, para quem a atual elite politica guineense "não é refrescante em termos das ideias, da ótica para o país", o que se nota, nomeadamente, na ausência de políticas para a juventude, que corresponde a mais de metade da população.
Recordando as eleições legislativas de 2014 como um período de "muita esperança", em que os guineenses esperavam uma mudança no rumo da política guineense, a historiadora vê o momento atual como "uma decapitação de todos os desejos" e lamenta que o povo guineense ande há antes entre "ilusão e desilusão".
Questionada sobre as eleições legislativas antecipadas marcadas pelo Presidente guineense para 18 de dezembro, Katar Moreira disse que os guineenses "não têm receio de novas eleições", porque vão a votos "de dois em dois anos há mais de 40 anos".
"O que está em causa é saber se essas eleições irão ser eleições transparentes e justas. E isso, eu não sei", afirmou.
A historiadora questionou ainda o papel dos observadores internacionais, que "consideram todas as eleições justas e transparentes".
"Estou a falar das eleições gerais em África, em que a comunidade internacional considera que houve eleições transparentes e justas, o que às vezes impossibilita a exigência de uma recontagem dos votos, limita a reivindicação de algo", alertou.
Katar Moreira alertou ainda ser uma falácia que as eleições sejam uma solução para a instabilidade política.
"A instabilidade política não se resolve com eleições. A violência política não se resolve com eleições. O autoritarismo não se resolve com eleições. Porquê? Porque normalmente é uma época de grande tensão", disse a investigadora, lembrando que isto não acontece só em África, mas também no resto do mundo.
Exemplificou com as campanhas eleitorais nos Estados Unidos, em que "qualquer coisa é usada. Quem tem mais capacidade de meter o outro para baixo, usa a sua capacidade para pôr o outro lá para baixo", seja acusações de corrupção, orientação sexual, casos familiares.
"As épocas de eleições não são épocas de paz em nenhuma parte do mundo".
O caso da Guiné-Bissau "é paradigmático", porque um dos elementos da constituição de um sistema democrático é o multipartidarismo, que existe, outro é a rotatividade política, que não falta.
"Nós correspondemos a todos os preceitos de um sistema democrático, exceto a parte da separação dos poderes, porque oficialmente existe, mas que na prática o poder político sobrepõe-se ao legislativo e ao judicial".
O Presidente guineense, Umaro Sissoco Embaló, dissolveu a Assembleia Nacional Popular no passado mês de maio, formou um Governo de iniciativa presidencial e marcou eleições legislativas antecipadas para 18 de dezembro.
A oposição guineense e organizações não-governamentais têm acusado as autoridades da Guiné-Bissau de perseguição política, detenção, rapto e espancamento de opositores, assim como de ataques à liberdade de imprensa.
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