A Parábola dos Cegos, 1568, Pieter Bruegel (Foto: WikiArte/Domínio Público)
Ignorância como matéria-prima
Ignorância, por definição, é o estado de quemc não tem conhecimento ou cultura: um desconhecimento por falta de estudo, experiência ou prática. Todos nascem ignorantes e, em certo sentido, essa é a nossa identidade original. Mudar esse estado, ou não, sempre foi uma opção política tanto quanto o resultado de um esforço pessoal.
Por muito tempo, havia consenso de que era necessário superar a ignorância para desenvolver as potencialidades de cada indivíduo e fortalecer a sociedade. Mesmo a abstração do “homem econômico”, transformado em modelo do “indivíduo desejável” tanto no liberalismo clássico quanto no neoliberalismo, supõe uma pessoa que superou a ignorância para se tornar capaz de calcular as vantagens pessoais que possa obter a partir de suas decisões e ações. Em apertada síntese, a ignorância, até bem pouco tempo, era vista como uma negatividade. Mesmo as pessoas mais ignorantes procuravam fingir algum tipo de conhecimento diferenciado ou de erudição. Hoje, ao contrário, passou a ser percebida como uma positividade e tratada como uma mercadoria.
A ignorância é um estado que possui valor porque pode ser explorada tanto no plano econômico quanto no plano político. É a matéria prima para um processo de subjetivação que não enfrentará resistência de valores como a “verdade”, a “solidariedade”, a “inteligência”, a “lógica” etc. A partir da ignorância é possível potencializar tanto o mercado quanto a adesão acrítica a um regime político. Manter a ignorância tornou-se, então, uma das principais metas da “arte de governar”.
Diante da valorização econômica da ignorância, o “homem ignorante” é ressignificado e passa a ser percebido como o tipo-ideal de cidadão: aquela pessoa que se caracteriza pela simplicidade com que todos podem se identificar. A “educação” e a “cultura”, por sua vez, começam a ser tratadas como ameaças que precisam ser afastadas. Instaura-se, assim, um novo modo de governo, mais eficaz e barato: o governo para e pela ignorância.
Com a demonização da educação e da cultura (percebidas como atividades degeneradas e “ideológicas”), aparece o indivíduo com orgulho de ser ignorante, como demonstra a adesão sem reflexão às posturas anti-intelectualistas em voga na sociedade. Em uma curiosa inversão valorativa (e, com toda manifestação ideológica, não percebida enquanto tal), o intelectual (aquele que se diferencia por um saber específico) torna-se objeto de reprovação social, enquanto aumenta a ode à ignorância e a espetacularização do desconhecimento.
Diante desse quadro, cada vez mais pessoas buscam se expressar a partir de uma linguagem empobrecida, com o recurso a slogans, frases feitas, chavões, jargões e construções gramaticalmente pobres, com o objetivo de serem compreendidas e contarem com a simpatia de interlocutores que eles supõem serem ignorantes. A orientação para os governantes, a oposição, os jornalistas, os gerentes e diretores de grandes empresas é a de se limitar a formulações simples (sujeito-verbo-complemento) e utilizar um vocabulário pobre para conseguir a atenção de um auditório que eles acreditam (e agem para tornar) cada vez mais inculto.
Revisitar um discurso ou uma conferência de imprensa dos principais políticos do século passado, e compará-los com os eleitos de hoje, gera profundo incômodo. A questão ultrapassa limites territoriais ou ideológicos: para não falar do Brasil, basta comparar as manifestações públicas do General De Gaulle ou de François Mitterand com as de Nicolas Sarkosy e François Hollande. A redução dos standards de conhecimento e educação necessários para chegar ao poder são evidentes (como demonstram as manifestações do presidente brasileiro Jair Bolsonaro sobre a mulher do presidente francês Emmanuel Macron e o “boicote” à marca de canetas Bic).
Hoje, as referências culturais da grande maioria dos políticos não ultrapassam citações a Chaves (não o político venezuelano, mas o personagem infantil mexicano) ou, na melhor das hipóteses, a Valdemort (da saga Harry Poter). Os déficits culturais são evidentes tanto entre os eleitos quanto entre os eleitores: O desconhecimento de Jean Valjean e dos irmãos Karamazov é proporcional ao crescimento do capital político de atores pornôs fracassados, cantores de qualidade duvidosa e jovens dirigentes de milícias virtuais especializados em ofender e divulgar fake news. As mesmas pessoas que desconhecem a Ilíada de Homero são os que gritam “mito” e “herói” para defensores da tortura, de ilegalidades e das ditaduras militares latino-americanas.
Em um clima de indigência intelectual, qualquer personagem saído de um circo de horrores ou de um programa de auditório brasileiro (igualmente horroroso, por explorar a pobreza e a desgraça) pode chegar à presidência da República. Basta pensar que a cada campanha eleitoral diminuem o número de palavras e verbos utilizados nos debates e nos programas de governo. Os debates televisivos entre os candidatos, com suas regras que inviabilizam a formulação de ideias e a exposição de argumentos com alguma profundidade, são outros exemplos que sinalizam a desimportância do conhecimento, tanto à direita quanto à esquerda, no campo político.
Nas grandes empresas, não é diferente. Métodos de “gerência” importados dos Estados Unidos buscam bloquear a reflexão e otimizar a alienação para fazer dos trabalhadores meros autômatos. Alguns sintomas desse incentivo à ignorância no ambiente das grandes empresas são facilmente percebidos, tais como o abuso do PowerPoint para orientar as formas de atuação dos empregados a partir de imagens pensadas para pessoas incapazes de interpretar um texto; a contratação de consultores externos, diante do reconhecimento da incapacidade do pensamento no ambiente da empresa etc.
Também no campo do jornalismo a perda da qualidade intelectual é perceptível. Não é uma obra do acaso: para a manutenção da ignorância é necessário atacar tanto a educação quanto a liberdade de expressão. A stardardização e a uniformização dos conteúdos jornalísticos somadas à precarização da profissão de jornalista e à concentração de poder nos blocos midiáticos (dominados por empresários sem preocupações filantrópicas), fenômenos típicos a partir da racionalidade neoliberal, são o retrato da derrocada do jornalismo em todo o mundo.
A necessidade de manter o emprego e o desejo de atender aos detentores do poder econômico comprometem a qualidade da informação e impossibilitam que determinados assuntos, notícias ou reflexões que não interessem aos patrões sejam veiculados. Cada vez mais são “fabricados” jornalistas ignorantes para produzir desinformação e, assim, divulgar/produzir ignorância. A opção por oferecer informações e discursos simplificados, de priorizar o fútil e o insignificante em lugar da informação e da reflexão, também são uma opção política tanto dos empresários que controlam os meios de comunicação quanto da pequena casta de jornalistas que exercem postos chaves no mercado de produção de notícias.
O exemplo do tratamento jornalístico dado pelo Grupo Globo à chamada Vaza Jato, conteúdo informativo que atinge a imagem de “herói” do atual Ministro da Justiça brasileiro, é um exemplo bem evidente de como opções políticas e econômicas das empresas apostam na ignorância da população e comprometem a qualidade da atividade jornalística. Trata-se de uma questão exclusivamente econômica: notícias de evidente interesse público não são divulgadas (ou são desqualificadas) para que não se perca o investimento na construção midiática do herói Moro.
A hipótese deste pequeno artigo é a de que é preciso reconhecer a vitória da ignorância. O reconhecimento da derrota da inteligência e a identificação dos mecanismos e funcionalidades da gestão da ignorância são os antecedentes lógicos da reflexão e da criação de estratégias que recuperem a importância da educação e da cultura na construção de uma sociedade menos injusta (e, portanto, mais inteligente).
Ignorância e identidade
A ignorância é um dado natural. Basta não educar ou educar precariamente para conseguir essa matéria-prima. Mantê-la, incentivá-la e explorá-la passam a ser objetivos estratégicos (e biopolíticos) tanto de governantes quanto de empresários. Isso porque a ignorância permite uma nova e mais produtiva forma de reificação, uma radical impossibilidade de “reconhecimento” (que não se resume à mera identificação): o desconhecimento a respeito dos outros seres humanos, dos mecanismos de exclusão, das técnicas e dispositivos de opressão e do como se interage com outras pessoas.
O valor político da “ignorância”, que facilita a introjeção de uma normatividade adequada aos interesses dos detentores do poder político e do poder econômico, está ligado à ideia de identidade. É a ignorância que permite uma identificação direta com ampla parcela da população, uma identificação a partir da falta de conhecimento/informação e da miséria intelectual.
A identificação é um processo através do qual tanto a identidade pessoal quanto as relações sociais são construídas. Todavia, em um quadro de empobrecimento da linguagem e de pobreza intelectual, a “identificação” leva à formação de indivíduos que se submetem aos mandamentos daqueles com os quais se identifica e, ao mesmo tempo, à exclusão de todos os que não se adaptam a eles, em um fenômeno tendencialmente violento. Essa violência, não raro, adquire uma forma institucionalizada na medida em que é organizada e passa a contar com o apoio tanto do governo quanto dos grupos de interesse que controlam as máquinas de produção de subjetividades (televisão, smartphones, redes sociais, etc.). A divisão da sociedade entre os “desejáveis” e os “indesejáveis” é uma opção política facilitada pela ignorância que permite fazer com que criminosos recebam o tratamento de “heróis”, ao mesmo tempo em que todos aqueles que não interessam aos detentores do poder são criminalizados/demonizados.
Note-se que a identidade pela ignorância é um fenômeno correlato ao da ascensão de ignorantes ao poder econômico e ao poder político, ou mesmo à tentativa de parecer cada vez mais ignorante para conseguir enganar e explorar pessoas rotuladas como ignorantes. Há uma espécie de captação simbólica e o surgimento de uma nova figura de autoridade que se caracteriza tanto pela ignorância quanto pelo sucesso político e/ou econômico. A mensagem do detentor do poder poderia ser traduzida nos seguintes termos: “sou tão ignorante quanto você, mas cheguei ao poder, você também consegue, basta me seguir e/ou copiar”.
Hoje, ao detentor do poder político ou do poder econômico basta repetir fórmulas prontas, slogans, piadas preconceituosas e outras manifestações associadas à ignorância, ao preconceito ou à burrice para angariar o apoio e a simpatia de pessoas que foram levadas a acreditar que o desconhecimento não é um obstáculo à realização pessoal. Políticos, empresários, jornalistas e funcionários públicos disputam a imagem do ignorante para retirar proveito e lucrar.
Ignorância e autoritarismo
Não há como manter um regime autoritário sem “investir” na ignorância. Um povo ignorante pode não só ficar apático diante do autoritarismo como verdadeiramente desejá-lo, na tentativa de suprir o medo que deriva do desconhecimento sobre fenômenos e valores democráticos como a liberdade e a verdade.
A ignorância adquire assim um caráter funcional para o autoritarismo. É o elemento que, ao mesmo tempo, faz a ligação entre o governante e grande parcela da população, bem como permite a manipulação da opinião pública na construção de consensos antidemocráticos. É a ignorância que fomenta a base social que naturaliza o absurdo.
O indivíduo ignorante acredita que ele e suas limitações são o retrato do mundo. Incapaz de operar a distinção entre discurso e realidade, entre o essencial e o superficial, torna-se facilmente massa de manobra. Não por acaso, a ignorância é a matéria prima para as mais variadas formas de populismo, nas quais a emoção e os sentimentos manipulados substituem a reflexão crítica, os argumentos racionais e as demonstrações empíricas. O desconhecimento da complexidade da sociedade, e a insegurança gerada por essa ignorância, favorecem o surgimento de tendências psicopolíticas e movimentos de massa reacionários, que buscam em um passado idealizado a segurança perdida e o sentido da vida.
No lugar do convencimento por argumentos racionais, o governo pela ignorância atua a partir do reforço de preconceitos, da exploração das confusões conceituais e do preenchimento dos vazios cognitivos com as “certezas” do governante, visto como um igual (ignorante) que deu certo (e aqui reside uma contradição performática que a cegueira da ignorância impede que seja percebida).
A exploração da ignorância por regimes autoritários não é uma novidade. Theodor Adorno, nos anos 1940 e 1950, durante suas pesquisas sobre a personalidade autoritária, já apontava que “todos os movimentos fascistas modernos, inclusive os praticados por demagogos americanos contemporâneos, tem visado os ignorantes”. O que mudou, hoje, é que a ignorância deixou de ser velada para se tornar celebrada.
Festival de besteiras que assolam o Brasil e o mundo
Em todo mundo, o uso político da ignorância (naquilo que Marcia Tiburi, ainda em 2017, chamou de “ridículo político”) se faz cada vez mais frequente.
Na França, o país das “Luzes”, não é diferente. Em 2011, Fréderic Lefebvre, secretário de Estado do governo Sarkozy, disse que o livro que mais o marcou foi “Zadig &Voltaire”, confundindo a obra “Zadig” de Voltaire com a famosa marca de prêt-à-porter de luxo quase homônima. O próprio Nicolas Sarkozy, também em 2011, confundiu o nome do filosofo Roland Barthes com o do campeão de futebol Fabien Barthez e acabou homenageando o pensador “Roland Barthesse”. Por sua vez, a ministra de Emmanuel Macron, Muriel Pénicaud, por ocasião da morte da escritora Toni Morrison, declarou que foi a partir dessa autora afro-americana que os negros finamente entraram para os “grandes nomes da literatura”, ignorando a existência de Aimé Césarie, Léopold Sedar Senghor e vários outros brilhantes e conceituados escritores negros que surgiram antes de 1970.
A era Trump também é famosa pela instrumentalização da ignorância. O próprio Trump chegou a declarar que o conceito de aquecimento global “foi criado por chineses para as fábricas americanas não conseguirem competir”. O Brasil, porém, encontra-se em um outro patamar na arte de governar pela ignorância. Apenas nos últimos seis meses, os exemplos do “festivas de besteiras que assola o país” comprovam que a ignorância virou tanto método quanto objetivo de governo. Dentre os muitos exemplos que poderiam ser citados, vale mencionar a declaração do chanceler brasileiro Ernesto Araújo associando o aumento da temperatura global com o “asfalto quente”. Também não podem ser esquecidas tanto a afirmação da ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento de que as pessoas não passam fome no Brasil “porque tem mangas nas cidades” quanto as “denúncias” da ministra Damares Alves de que a violação sexual de meninas estaria ligada à “falta de calcinhas” em determinadas localidades. Ou de que a personagem Elza do filme Frozen, dos Estúdios Disney, seria lésbica. Também não poderiam ficar de fora o ministro da Educação, Abraham Weintraub, que tentou explicar o corte de verbas nas universidades públicas usando “chocolates” para simbolizar os valores e errou o cálculo (com o presidente da República se aproveitando da “demonstração” para comer um dos chocolates), e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que disse que a nuvem de fumaça que cobriu o céu brasileiro em razão dos incêndios na Amazônia (vale lembrar que só os desmatamento em agosto deste ano subiram 222% em relação a agosto de 2018) era uma fake news.
Ignorância: uma história de sucesso
Para encerrar, e comprovar a hipótese de que a ignorância no Brasil faz sucesso, vale lembrar de duas pérolas de Olavo de Carvalho, o guru intelectual do governo de Jair Bolsonaro, de muitos militantes de direita e de parcela das forças armadas brasileiras (que ainda acredita estar em meio a uma guerra contra o “marxismo cultural” e a ameaça comunista). Para ele (e seus seguidores), é crível a tese de que as músicas dos Beatles teriam sido compostas pelo filósofo alemão Theodor Adorno, como parte de uma grande conspiração para destruir a sociedade, bem como muito provável a ligação entre o Papa Francisco, a KGB e George Soros em uma espécie de “plano infalível” para dominar o mundo da esquerda mundial.
O fato de Olavo de Carvalho ocupar o espaço de “intelectual” da extrema-direita precisa ser objeto de atenção. Trata-se de um filósofo que divulga certezas delirantes enquanto projeta uma “revolução cultural obscurantista” a partir da tese de que se deve lutar contra a “revolução cultural marxista” (em um interessante caso de apropriação das lições de Gramsci). Pessoas como Olavo de Carvalho costumam ser desprezadas pela “inteligência” brasileira: não deveriam. Vale lembrar que ele foi capaz de construir uma obra (escreveu mais do que muitos “intelectuais” de esquerda que se mantém escondidos do debate público) a partir de teses que propagam a desinformação e contam com a ignorância (a “cabeça vazia”) dos leitores. Pode-se dizer que com ele nasce o “intelectual orgânico” da ignorância. No lugar do “marxismo cultural”, Olavo faz surgir o oxímoro “ignorância cultural”.
RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano
Fonte: revistacult.uol.com.br
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