sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Há uma petição para impedir que a "impatriota" Joacine Katar Moreira tome posse como deputada na Assembleia da República. ?

?
Isso mesmo. Há uma petição para impedir que a "impatriota" Joacine Katar Moreira tome posse como deputada na Assembleia da República


Assim, com estas letras todas. E por quê? Porque é mulher? Porque é preta? Porque é gaga? Não. É porque alguém levou uma bandeira da Guiné-Bissau para os festejos da eleição de Joacine. E porquê? Porque, como Joacine nasceu na Guiné e tem família guineense, alguém, possivelmente também guineense, resolveu festejar dessa maneira, o que me parece absolutamente natural e legítimo. 

Mas, pela última contagem, há mais de 13.000 (!) pessoas que acham que isto foi um gesto antipatriótico de Joacine e, invocando artigos na nossa Constituição, apelam para o impedimento da sua tomada de posse como deputada na Assembleia da República.

?
Isso mesmo. É aqui que estamos, neste sítio esquisito em que o racismo sai à rua sem pudor. Abstenho-me de transcrever os comentários obscenos que acompanham a dita petição, mas aconselho a sua leitura para que se perceba que assim como a eleição de André Ventura é um atentado à nossa Democracia, a eleição de Joacine pode ser a sua salvação. Isto porque a nossa Democracia está assente em valores que estão plasmados na nossa Constituição e, os que a invocam para atacar Joacine, são os únicos a desrespeitá-la. Porque ter orgulho nas suas origens não é crime mas ser racista, sim

Joacine 1 / subscritores da Petição 0.
E discriminar, também. Porque é de discriminação que se trata quando vemos Joacine ser atacada diariamente por tudo e mais alguma coisa. Porque a nova deputada do Livre não é só atacada pelas suas origens africanas. O ataque também é feito pelo simples facto de ser mulher. Sim, porque, e não me venham cá com histórias, qualquer comentário que comece com "esta gaja" já é uma forma de discriminação. E a discriminação por género também é, lá está, inconstitucional.

Joacine 2 / subscritores da Petição 0.
Mas a coisa não pára por aqui. Até piora, porque o maior ataque feito a Joacine é pelo facto de ser gaga. Isso mesmo. É aqui que estamos, neste sítio esquisito em que a ausência de respeito pelo próximo sai à rua sem pudor. Sucedem-se as piadas e o gozo escancarado e até se alimentam teorias da conspiração de que é uma falsa gaga. Acontece que, caros subscritores da petição, isto também é inconstitucional. Porque, segundo a nossa / vossa querida Constituição, no seu Artigo 37.º sobre "Liberdade de expressão e informação", a alínea 1 diz o seguinte: "Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações." E, segundo palavras da própria, "eu gaguejo quando falo, não gaguejo quando penso."

Logo, Joacine 3 / subscritores da Petição 0.
Inconstitucionalidades à parte, o desconforto causado pela entrada de Joacine na vida política portuguesa é a maior prova da absoluta necessidade dela ter uma voz no Parlamento. Uma voz contra o racismo, a xenofobia, a discriminação de género e tantos outros problemas que, por não terem o eco que deveriam ter, conduziram a este ponto de situação. Mas acredito que estamos num ponto de viragem, e não necessariamente para um mau caminho. Porque, na mesma semana em que Joacine foi ao “Prós e Contras” da RTP, e tinha atrás de si uma senhora (?) do público a ter um ataque de riso por causa da sua gaguez, a nova deputada do Livre foi ao programa da Cristina, e a apresentadora fez o que tinha a fazer para que a sua convidada fosse olhada com respeito em vez de ser recebida com condescendência ou escárnio. E até serviu para que Joacine pudesse explicar, de forma claríssima, o que é o feminismo. A certa altura da conversa, Joacine adentrou pelos temas sociais que defende e foi interrompida por Cristina que disse: "Calma, que está aqui a vir o feminismo..."

E faço aqui a transcrição do diálogo que se seguiu:
Joacine: "O feminismo é necessário."
Cristina: "Sim, mas não é para ser radical!"
Joacine: "Mas o que é que é isto de feminismo radical?"
Cristina: "Não é erradicar os homens, pois não?"
Joacine: "Os homens são os nosso filhos. Nenhuma mulher no universo, seja feminista radical ou seja ultraconservadora, deseja eliminar os homens. (...) O que é o feminismo é desejar, reivindicar igualdade absoluta. E é este absoluto que é o radical. É: nenhuma mulher vai auferir um ordenado inferior ao homem se estiver na mesma área a efectuar o mesmo trabalho que ele. Isto é que é o radical. Nenhuma. Não é: algumas podem e outras não. O radical diz: nenhuma. O radical diz isto: nenhuma mulher mais vai ser assassinada pelo ex-companheiro ou pelo actual companheiro. Isto é que é ser radical, é dizer: nenhuma! Não é estarmos sucessivamente a ver "mais uma mulher assassinada...", "mais uma mulher não sei quê..." Não! O feminismo radical, a sua radicalidade necessária diz: nenhuma! Não é a eliminação dos homens, não é a subjugação dos homens, não é o afastamento dos homens."
Entendido? E foi uma gaga quem tão bem vos explicou. Foi a Joacine, uma mulher que se apresenta da seguinte forma: "Sou negra, venho de uma família com dificuldades económicas e, como se não bastasse, ainda gaguejo impecavelmente." “Touché”.

JOACINE, por Filipe Vargas, actor

Feministas Em Movimento

Sem comentários:

Enviar um comentário