domingo, 21 de julho de 2024

Menstruação: "Tal como eu, homens também menstruam". A explicação por detrás do inédito questionário da DGS sobre menstruação dirigido a "todas as pessoas" e não só a mulheres

 CNN Portugal,  21/07/2024
O
estudo da DGS tem gerado controvérsia nas redes sociais, mas os especialistas garantem que a menstruação não é exclusiva do sexo feminino e adiantam que até a OMS já mudou os conceitos

O novo e inédito questionário lançado pela Direção Geral de Saúde (DGS) dirigido a “todas as pessoas que menstruam” e não se restringindo às mulheres tem gerado um aceso debate nas redes sociais, em especial no X. Para uns não faz sentido, havendo quem escreva “pessoas que menstruam = mulheres” ou que é uma forma de “rebaixar as mulheres”. Para outros é uma iniciativa normal para não excluir ninguém como “homens intersexo ou homens trans que menstruam, por não terem feiro a transição por completo” – nota a internauta e jovem Catarina Ferreira.

Noah Jesus, de 21 anos, é um desses casos. É um homem transgénero para quem esta iniciativa da DGS pode ser fundamental para as pessoas começarem a perceber o que se passa. “Tal como eu, homens também menstruam”, refere, explicando que está no processo de transição hormonal e que, por isso, ainda possui o órgão sexual feminino e a menstruação. “Os homens podem ter ovários e não é por isso que somos menos homens”, acrescenta.

Este questionário da DGS foi lançado dia 9 de julho, e a ideia é “perceber como está a saúde menstrual em Portugal e melhorar a resposta dos serviços públicos de saúde”, segundo é explicado no site da instituição.Para o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública Gustavo Tato Borges, esta opção da DGS faz todo o sentido, uma vez que a menstruação não é exclusiva do sexo feminino: “Há pessoas que têm o genótipo XX e passam por uma mudança de sexo, tomam hormonas para adaptar realidade física à imagem que pretendem ter e durante esse período existe diminuição do fluxo menstrual e da quantidade de dias que se tem”. Ou seja, de acordo com o médico, apesar da diminuição, os homens transgéneros continuam a ter menstruação durante algum tempo.

“Merecemos também a inclusão” nesse questionário, alega, por isso Noah Jesus. “E não só nas questões da menstruação visto que muitos de nós menstruamos tal e qual como as mulheres, como nas questões da gravidez visto que também não são só as mulheres que engravidam”, argumenta, lembrando que “homens com útero também podem engravidar se assim o quiserem”.

Aliás, Gustavo Borges esclarece que a expressão “todas as pessoas que menstruam” utilizada no questionário da DGS, "até já é usada há vários anos pela Organização Mundial de Saúde (OMS)". Por isso, o médico diz que é fundamental explicar os conceitos às pessoas uma vez que, o que aconteceu, foi a utilização de uma "linguagem correta e inclusiva para chegar a todas as pessoas que passam por este fenómeno". A socióloga Maria do Mar Pereira tem a mesma opinião, considerando que a decisão da DGS que não restringir o questionário ao termo mulheres é "uma modificação muito simples", que “não retira direitos a ninguém”, podendo até “trazer grandes benefícios em termos de qualidade dos serviços de saúde e da vida das pessoas”.

"Sugeriu-me um tampão, daqueles para a menstruação como método contracetivo"

Para Noah Jesus a informação que este tipo de iniciativas pode dar as pessoas, nomeadamente às que trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS), é uma das mais valias que daqui podem resultar. O jovem não esquece alguns momentos que teve de superar. Quando, depois de iniciar transição hormonal, decidiu ir ao médico de família para “perceber se existia algum método contracetivo sem hormonas femininas, para que não interferisse com a hormonização". E, nessa altura, deparou-se com várias incertezas por parte do centro de saúde.

“Após muitas voltas e de um longo questionário, o médico não fazia a mínima ideia de que eu era uma pessoa trans. E mesmo assim, depois de eu ter explicado, no final ele disse: ‘Então queres ser uma menina certo?'”, recorda. Noah contou que estava a tomar testosterona, que os seus pronomes eram masculinos e chegou a dizer “mil vezes” que tinha uma vagina e não um pénis, mas o médico não entendia e insistia na ideia de que “o único método contracetivo que existia para pénis era o preservativo”.

Só com mais insistência de Noah, o clínico entendeu que o jovem ainda tinha o órgão sexual feminino. E aí a solução dada pelo médico para a contraceção, foi o uso de um tampão: "Sim, sugeriu-me um tampão, daqueles para a menstruação como método contracetivo. Sim, isto aconteceu no SNS em pleno século XXI”.

As pessoas "acham que incluir homens trans é uma coisa chocante e que não é natural"

A falta de informação sobre o tema que existe, incluindo na área da Saúde, tem sido difícil para o jovem. “Sofri um bocado, como todas as pessoas trans, no Serviço Nacional de Saúde, pois tinha que ser eu a ensinar aos profissionais o que é uma pessoa trans”.

Segundo a socióloga Maria do Mar Pereira, a sociedade portuguesa não aceita este tipo de alteração feita pela DGS porque tem ideias que assentam na "crença de que o género está associado à biologia e que isso é uma coisa muito simples e que todas as pessoas do mesmo sexo têm a mesma biologia”.  “Isso não é verdade", diz, considerando que uma das principais razões para a controvérsia gerada nas redes sociais por causa do questionário é a visão que as pessoas têm do mundo. Está "tão presa a um estereótipo e é tão simplista que quando as pessoas são convidadas a pensar, sentem-se afrontadas e chocadas".

Outra das razões, que de acordo com a especialista, contribui para a discussão acesa nas redes, é a transfobia, pois muitas pessoas "acham que incluir homens trans é uma coisa chocante e que não é natural".

Ao longo do processo, Noah Jesus sentiu essa pressão social. Foi, aliás, a causa, para ter desistido de uma primeira tentativa de terapia hormonal, da qual acabou por desistir há três anos. “Não aguentei”, assume. “Diziam-me que ia ficar mais agressivo, que ia ter barba, que horror, que eu iria ser sempre menina, que estava a tentar alterar a natureza”.

Mais recentemente, há nove meses, iniciou novo processo. “Está a correr bem”. Atualmente já tem barba, o fluxo menstrual é muito pouco e já tem “uma voz minimamente masculina”, mas sabe que ainda há um longo caminho a percorrer. Ainda se lembra bem que quando lhe apareceu, pela primeira vez, a menstruação viveu o que diz ter sido uma “tormenta”. Chorava todos os dias e recusava-se a usar pensos e tampões.

Por isso, para ele esta alteração de linguagem por parte da DGS deve ser alargada a outras iniciativas, nomeadamente no que diz respeito à questão da gravidez, defendendo que passe a ser usado o termo "pessoas que engravidam em vez de grávidas".

Novo termo impede marginalização de algumas mulheres, diz socióloga

Além de incluir outras pessoas que não mulheres, o termo usado pela DGS no questionário vem também resolver o problema das que, mesmo do sexo feminino, não têm menstruação, explicam os especialistas.

"Se pedíssemos a todas as mulheres que falassem sobre saúde menstrual íamos ter algumas a dizer 'eu não tenho menstruação", explica o médico Gustavo Borges. Ou seja, este termo “pessoas que menstruam” acaba por dirigir o questionário só mesmo a quem tem menstruação e não a todas as mulheres. Segundo a socióloga Maria do Mar Pereira, esta são “mulheres  cisgénero” que se identificam com o género feminino que foi designado ao nascer, mas não menstruam seja porque têm uma doença, fizeram uma operação ou outros motivos. "Há mulheres que não menstruam porque não têm útero", exemplifica.

"Isto acontecia desde sempre, mas como achávamos que todas as mulheres tinham que ter essa capacidade de menstruar, amamentar e ter dois seios, quando não podiam fazer isso, seja por que razão fosse, sentiam que não eram mulheres a sério", frisa, garantindo que existiam várias mulheres "marginalizadas".

Através do uso da expressão “todas as pessoas que menstruam”, defende a socióloga, “engloba-se qualquer pessoa que tenha útero e ciclo menstrual”. Ou seja, “mulheres cisgénero, homens trasgéneros ou até mesmo pessoas que se identificam com outro género, mas que mantêm os seus órgãos genitais femininos", afirma.

A mudança permite assim, segundo Maria do Mar Pereira, que "as mulheres que não menstruam não se sintam mal e inclui pessoas que menstruam que não são mulheres, mas homens trans e intersexo que ainda podem ter partes do sistema reprodutivo que levam à menstruação".

A DGS não explicou à CNN Portugal o motivo da alteração de linguagem, remetendo-se ao silêncio.

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