terça-feira, 8 de maio de 2018

E-GLOBAL: Carros & Narrativa dos factos - Por Lassana Cassama


De forma interessante e apaixonada, tenho seguido, minuciosamente o efervescente debate na Guiné-Bissau em torno das viaturas oferecidas aos deputados, pelo Reino de Marrocos, e que durante meses estiveram acantonadas no quintal do Palácio Presidencial, sob guarda do Chefe de Estado, José Mário Vaz.

O enigmático é que, em todos os exercícios que já li, se não a maioria, é o facto dos ataques sobre a “inconveniência” destas viaturas terem sido, ou, estão a ser direccionados aos pobres deputados, já que podemos aceitar que nem todos eles – os deputados – têm gabarito financeiro e económico suficiente para suportar a pressão social dos seus eleitorados – Tocatchur, Ziaras, assistência aos Doentes, etc – quanto mais dispor de uma viatura para os contactar no terreno, o que, de certa forma, teria movido a tal solicitação do Presidente da ANP ao Rei Mohamed VI que, seja como for, podia, até, ter uma outra opção. Uma opção que, do nosso ponto de vista, seria mais oportuna mesmo não sendo o Parlamento o Executivo ajudar nas necessidades produtivas dos respectivos eleitorados, sobretudo, os do campo. 

Mas, trata-se de uma mera opinião, porquanto as opções diferem em função de quem está em posição de as fazer. 

O certo é que estamos a crucificar os deputados de forma desproporcional, porque receberam viaturas – nem todos eles – pois, diga-se que não trabalharam para as receber. Ok! Concordamos e em pleno. Não há dúvidas que se trata de uma crítica valiosa, congruente e com legitimidade. Mas, a questão que se coloca, e algo evidente, seria: afinal, durante estes anos da crise, quem, da estrutura Estatal, na Guiné-Bissau, trabalhou para merecer casas e viaturas de luxo que nos têm ostentado nas ditas estradas da capital?

O Presidente, José Mário Vaz? Diria que não, pois nada fez, se não criar e alimentar confusões e divisionismo para continuar a ser o locatário do Palácio Presidencial, em conforto absoluto, enquanto crianças morrem por falta de cuidados médicos e enquanto índice de mortalidade materno-infantil não param de subir. Certamente alguém diria que não é o Executivo, à luz da Constituição, para se cuidar disso, tanto assim que não lhe competia também distribuir as viaturas, quanto mais disputar pelas pastas ministeriais e fixar preço da castanha de caju ao quilo;

Do Presidente aos primeiros-ministros, são estes que merecem viaturas que têm? Também, na nossa modesta opinião, não. Não, porque nos seus desempenhos, nada assistimos, se não palhaçadas políticas, e mesmo assim, tiveram e têm carros e vidas de luxo, à custa de povo;

São os partidos políticos, estes, não diria mais que traidores das suas próprias ideologias, imbuídos da falta de sensibilidade para com o sofrimento dos guineenses;

Quanto aos magistrados judiciais e do Ministério Público, comparativamente aos deputados, não concordaríamos em afirmar que as suas produtividades lhes permitiriam ter a vida que têm, porquanto os cidadãos continuam, na longa fileira de espera, a exposição do sol, para o seguimento dos seus processos judiciais, que jamais são concluídos.

O mesmo diríamos relativamente aos agentes alfandegários do Ministério das Finanças, enquanto G7 de Bissau, se não todo o pessoal da Administração Pública que anda a roubar do Estado à vista de todos, possuindo uma vida de pompa e em convivência com a pobreza ao lado (lixo por exemplo).

E, ao que consta, parece que os deputados não têm onde e como roubar do Estado, isso, aliás, explica o facto que variadíssimas vezes deixam o parlamento para serem Ministros ou Secretários de Estado.

Uma outra nota intrigante que nos suscitou análise é o facto de só agora José Mário Vaz decidiu proceder, ele mesmo, à distribuição das viaturas, que seria em estado normal entregue ao Presidente do Parlamento, Cipriano Cassamá, para depois a fazer.

Respondo, dizendo que é, sem dúvidas, o revelar de ranger de dentes entre os actores políticos guineenses, mesmo tendo o Governo “Possível”, ainda que o país mantém-se no “Impossível”, e que muitos deixaram-se arrastar pela simples distribuição de viaturas aos deputados, deixando o essencial desta questão que é o conflito latente, pós o acordo de Lomé. Deve é preocupar-se, pois aí vêm as eleições e tudo aponta para uma direcção de conflitualidade depois do escrutínio, se é que vai ter lugar no dia 18 de Novembro.

Ainda na esteira da saga das viaturas, as contas feitas, resultante do custo total, em Francos CFA (Comunidade Financeira Africana), das 90 viaturas, recebidas das mãos do Presidente da República, lê-se num post do nosso mano Umaro Djau, de 03.05.18 às 23:40, são estimadas em 2.7 bilhões de Fcfa, correspondentes 4 milhões de euros.

Bom, à partida, para ser sincero, diríamos que este número podia ajudar a ultrapassar vários problemas básicos com os quais a Guiné-Bissau está confrontada – medicamentos nos hospitais, melhorais das condições de infra-estruturas face roubalheira dos directores das escolas, mas não seria comparado aos que 1.5 mil milhões de euros obtidos na Mesa Redonda de Bruxelas, poderiam resolver, mas que, no entanto, o nosso egoísmo e falta de sensatez, numa guerra inglória, deixou cair a baixo. E agora estamos a barafustar pelas migalhas, quando tínhamos milhões em projectos concretos.

Todavia, não há como negar a impertinência da distribuição destas viaturas, que podia ser logo em Agosto de 2017, data em que foram trazidas para o país, tendo em vista a carência socioeconómica derivada da falta de visão e muita dose de hipocrisia da nossa classe dirigente, o que, de certa forma, catapultou toda essa ira. Uns com legitimidade, outros não. Evidentemente, assistimos neste país muitas pessoas que hoje parecem que estão a mudar de reduto a atacarem, no passado recente, de forma obstinada um grupo de cidadãos guineenses – MCCI – que apenas reivindicavam e ainda reivindicam os seus direitos, enquanto guineenses, nomeadamente, direitos à saúde, a educação, paz, estabilidade, etc., que hoje, unanimemente estamos a exigir porque os deputados receberam viaturas que não custaram ao Estado um tostão, ou seja, o dinheiro não saiu do Tesouro público guineense. Se tivesse saído, tal como outros milhões, com os quais se alimentam a máquina opressora contra as manifestações, com os quais sustentam comícios e com os quais compram consciências politicas, aí sim, seriamos os primeiros a dizer não, isto, perante a tamanha corrupção e gatunagem que têm afectado o aparelho de Estado nos últimos 4 anos.

Enfim, se os parlamentares não trabalharam para terem direito às referidas viaturas, além de serem caras, o que é verdade e aceitamos, afinal quem trabalhou? O mesmo povo para quem estamos a protestar por melhorias na saúde e educação, o que fez, e o que tem feito, para ter e merecer uma vida condigna? Nada, se não viver no/do conformismo doentio.

Lassana Cassamá

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