sábado, 19 de abril de 2025

Opinião. Estratégia de Trump dificilmente funcionará perante uma China que mede o tempo em décadas e não em ciclos noticiosos

Por Manuel Serrano cnnportugal.iol.pt  19/04/2025

Se a miopia estratégica a nível económico é séria, a cegueira geopolítica poderá ser dramática. Sem a credibilidade dissuasora dos Estados Unidos e com a abordagem errática de Trump à política externa, a possibilidade de Taiwan ser abandonado ou trocado por vantagens comerciais não é impensável

No teatro que é a política americana, Donald Trump nunca desempenha o papel de estadista. Assume, antes, o de entertainer. E em poucos palcos essa sua inclinação para o espetáculo é tão visível como na sua confrontação errática com a China. Sob o manto do nacionalismo económico e do slogan America First, a escalada de tarifas contra Pequim transformou-se num ciclo vicioso de medidas improvisadas, sem bússola nem cálculos minimamente consequentes. A retórica beligerante não esconde o facto de que os Estados Unidos estão a perder influência – já terão perdido o rumo – enquanto a China se reposiciona com a habitual paciência.

O que começou como uma promessa de corrigir desequilíbrios comerciais, com os instrumentos menos adequados para o fazer, depressa resvalou para um braço-de-ferro inútil, em que Washington dispara primeiro e pensa depois. As chamadas tarifas recíprocas chegaram aos 145%, não como parte de um plano articulado, mas como uma exibição de força. A consequência será uma perturbação das cadeias de abastecimento globais e um encarecimento dos bens essenciais, prejudicando exatamente aqueles que o Presidente jurou proteger.

No centro desta estratégia está a ilusão de que os Estados Unidos terão sempre vantagem por importar mais da China do que o inverso. Mas o comércio não é uma esmola. É uma relação de dependência mútua. Muitos países não importam bens dos Estados Unidos devido a limitações económicas, geográficas ou simplesmente falta de interesse. Os americanos consomem produtos chineses porque precisam deles. Quando escasseiam ou se tornam proibitivamente caros, quem sofre mais são os consumidores americanos, não os dirigentes em Pequim.

A isenção, à última hora e explicada de forma desastrada, de produtos eletrónicos, como smartphones e computadores, não é mais do que uma assunção tácita de que as tarifas exerceram pressão sobre as empresas americanas. Gigantes tecnológicos como a Apple, cujos CEO fizeram fila para assistir à tomada de posse de Trump, enfrentariam dificuldades em manter os custos competitivos enquanto pequenas e médias empresas sofrerão com margens reduzidas. Este impacto não só enfraquecerá a capacidade dos EUA de competir, como comprometerá a inovação, dificultando o acesso a matérias-primas e tecnologias fundamentais.

Enquanto Trump tropeçava nos seus próprios anúncios, a China, fiel à sua fama de negociadora calma e perseverante, aguardava. A volatilidade de Washington, aliada ao desprezo pelo multilateralismo e intenção de esvaziar as organizações internacionais, ofereceu a Xi Jinping uma oportunidade estratégica. Apesar de retaliar, Pequim projetou-se novamente como um ator responsável e empenhado na estabilidade global, em contraste com os Estados Unidos, que coloca em causa os pilares de uma ordem internacional que foi construída à sua imagem.

Adversários regionais da China, incluindo o Japão e a Coreia do Sul, apesar da disputa territorial pelas Ilhas Senkaku ou do irritante provocado pela implementação do sistema antimíssil norte-americano THAAD na Coreia do Sul, começaram a aproximar-se de Pequim, procurando laços económicos ainda mais estreitos com o intuito de reduzir a dependência face aos Estados Unidos. Exemplo disso mesmo é o caso recente da Malásia, num sinal de que esta aproximação dificilmente se circunscreverá ao campo económico e poderá ter implicações estratégicas profundas na arquitetura de segurança da região, especialmente no contexto da crescente militarização do Mar do Sul da China. Caso Pequim consiga fortalecer os laços económicos com os países da região, provavelmente será capaz de diluir a eficácia das alianças militares lideradas pelos EUA – como o QUAD – ou até fragilizar a presença americana no Indo-Pacífico.

A própria União Europeia intensificou a sua aproximação diplomática, procurando conter os efeitos das tarifas e evitar que o mercado europeu seja inundado por produtos chineses. Neste sentido, Ursula von der Leyen e o primeiro-ministro chinês, Li Qiang, vieram sublinhar a importância da estabilidade de um sistema comercial fundamentado em regras. Numa reviravolta impensável há apenas alguns meses, é a China, hábil na mutação como método de permanência, que se apresenta agora como garante da estabilidade e parceiro da Europa para salvaguardar a Organização Mundial do Comércio e as instituições multilaterais.

Numa conferência de imprensa com o Presidente do Governo de Espanha, Xi Jinping apelou mesmo à União Europeia para que se una à China na resistência contra as tarifas unilaterais impostas pelos EUA, sublinhando que “não há vencedores” numa guerra comercial. Pedro Sánchez, durante a sua visita a Pequim, atuando como “porta-voz” daqueles que veem na cooperação com a China uma oportunidade, apesar das persistentes violações dos direitos humanos, criticou a decisão de Washington e apelou ao reforço da cooperação económica. Uma posição que não será consensual entre os vinte e sete, mas que expõe a recalibração estratégica da União Europeia em curso, entre uma “redução de riscos” com a China e necessidade de evitar um agravamento das relações transatlânticas.

Entretanto, Trump continua a viver entre os séculos XIX e XX, obcecado com o Japão e a União Europeia, ignorante perante a transformação tecnológica e científica da China, resultado de décadas de investimento estratégico. Mas seria um erro interpretar que estamos perante medidas de cariz exclusivamente económico: foram desenhadas também para reforçar a sua base popular, glorificando a produção “made in america” e proclamando o ódio à globalização.

Mas se a miopia estratégica a nível económico é séria, a cegueira geopolítica poderá ser dramática. Sem a credibilidade dissuasora dos Estados Unidos e com a abordagem errática de Trump à política externa, a possibilidade de Taiwan ser abandonado ou trocado por vantagens comerciais não é impensável, sobretudo tendo em conta a forma como as negociações com a Rússia e a Ucrânia têm vindo a decorrer.

Trump não negoceia, impõe. Acredita que tudo aquilo que não pode ser convertido em espetáculo deve ser marginalizado. Mas mesmo que vivamos numa época em que o primeiro lugar na escala de valores é ocupado pelo entretenimento, como lamentava Vargas Llosa, este tipo de estratégia dificilmente funcionará perante uma superpotência que mede o tempo em décadas, não em ciclos noticiosos. Reindustrializar a América, como Trump se propõe fazer, repatriando cadeias de abastecimento, exigirá, além de anos de investimento, capacidade para pensar a longo prazo e paciência, duas virtudes que Trump não possui.

A resposta da China revela uma abordagem radicalmente oposta. Paralelamente à ofensiva diplomática, adotou uma mentalidade de economia de guerra, reforçou os departamentos encarregues das relações com os EUA e intensificou a propaganda, com slogans nacionalistas e referências a líderes históricos, numa tentativa de transformar a guerra comercial numa questão de orgulho nacional. Mas a realidade é que desde há alguns anos que tinha vindo a diversificar exportações, relocalizando cadeias de produção e garantindo acesso a matérias-primas críticas, promovendo o consumo interno como motor económico e acelerando a autonomia tecnológica.

Ignorar que a China desta vez está preparada para uma guerra comercial de atrito é um risco. Apesar das fragilidades internas, a elite chinesa vê na turbulência política dos EUA uma oportunidade para reafirmar a superioridade do seu modelo autocrático. A desorganização americana, com políticas comerciais erráticas, alimenta a confiança na resiliência do sistema chinês. Contudo, a tragédia da política de Trump não é apenas a incoerência dos seus objetivos, mas o facto de desperdiçar uma oportunidade estratégica para conter a China. Em vez do protecionismo e duma retórica beligerante, outro Presidente poderia ter liderado um esforço multilateral para limitar as práticas comerciais desleais da China, reforçado uma ordem que favorecesse valores democráticos e regras comerciais justas, reduzindo o espaço para que Pequim molde a ordem geopolítica asiática – e talvez não só – à sua imagem.   

Trump optou pelo caminho oposto, preferindo associar-se a autocratas e chantagear aliados. Uma guerra comercial não subjugará a China, mas provavelmente isolará os EUA. Não revitalizará a indústria americana, mas certamente agravará o custo de vida. Não reafirmará a hegemonia americana, mas provavelmente acelerará a sua decadência, afastando os seus aliados e aproximando-os do seu verdadeiro rival.

Xi Jinping compreende que o verdadeiro poder não se mede apenas em tanques, mas na arte de moldar o ambiente estratégico: influenciar sem provocar, dissuadir sem mobilizar. Nesse jogo de sombras, não poderia ter-lhe calhado adversário mais conveniente do que Donald Trump, com a sua imprevisibilidade, o seus isolacionismo e hostilidade ao próprio sistema que sustentou a hegemonia americana. Já os líderes europeus terão de aprender a lidar com o facto de o seu maior aliado ser também o seu maior – e mais imprevisível – risco.

@CNN Brasil Money   Estratégia de Trump não funcionou com a China, diz especialista | Abertura de Mercado☝

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