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Por Lusa 30/06/24
Willem Els, coordenador do programa de Crime Organizado e Terrorismo no Institute for Security Studies (ISS) sul-africano, considerou, em declarações à Lusa, que a indústria de raptos está a "tornar-se uma pandemia na África do Sul".
O investigador admitiu não ter informações específicas sobre o sequestro de um pequeno empresário português no início da semana nos arredores de Joanesburgo, mas sublinhou não apenas o "forte crescimento" desta atividade criminosa na África do Sul, onde "está realmente a ficar fora de controlo", como as suas fortes ligações a Moçambique.
A prática de raptos para obtenção de resgates "está realmente a ficar fora de controlo na África do Sul, que tem já, de longe, a maior taxa de raptos entre os países africanos" sublinhou, e é uma das mais elevadas do mundo, com cerca de 9,57 raptos por cada 100.000 habitantes, de acordo com o relatório de 2024 da organização World Population Review.
"Não verifiquei pormenores sobre este último cidadão português raptado, mas demos já conta [no ISS] de uma ligação bastante forte entre o rapto de pessoas falantes de língua portuguesa na África do Sul e Moçambique", acrescentou o especialista do instituto de análise sul-africano.
"A máfia em Moçambique é muito forte, rapta pessoas falantes de português aqui na África do Sul, e por isso defendemos recentemente a necessidade de cooperação transfronteiriça para travar os raptos em ambos os países", afirmou Willem Els.
Borges Nhamirre, antigo jornalista da Bloomberg e atualmente colaborador do ISS em Maputo, especialista em questões relacionadas com o crime organizado e terrorismo, foi o autor do estudo referido por Els, publicado pelo instituto sul-africano em março de 2023.
Segundo este investigador, os sindicatos de crime organizado a operar no eixo Maputo-Gauteng-KwaZulu Natal - as duas maiores províncias sul-africanas -- reclamam a grande maior parte do volume financeiro obtido pela indústria dos raptos nos dois países.
"Em termos de volume financeiro, os raptos associados ao eixo Maputo-Gauteng -- que podem incluir a participação de atores paquistaneses e indianos -- são responsáveis pela maior soma de dinheiro resultante dos resgates", afirmou à Lusa.
A África do Sul registou mais de 16.000 sequestros em 2023, começou por ilustrar o especialista moçambicano, "mas menos de 20 raptos movimentaram a maior parte do dinheiro, porque os alvos são empresários".
A escala e visibilidade destes raptos têm vindo a "inspirar pequenos grupos criminosos, num efeito dominó", acrescentou Nhamirre, levando à atual situação de "descontrolo", descrita por Els.
"A situação é muito complicada na África do Sul, porque já não são só estes sindicatos de crime organizado a atuar, começamos agora a ter gangues imitadores, porque este crime é muito lucrativo", disse o analista sul-africano.
De acordo com os dois investigadores, esta prática "transfronteiriça", que começou por afirmar-se em Moçambique há mais de uma década -- Nhamirre recordou a "grande manifestação contra os raptos em outubro de 2013, que quase paralisou a cidade de Maputo" -- tem como principais mandantes cidadãos moçambicanos de origem asiática e pertencentes a essa comunidade em Moçambique, e conta com participação decisiva de agentes das polícias de ambos os países.
"Para ser bem-sucedido, o que qualquer sindicato de crime organizado tem primeiro de fazer é comprometer um ator estatal, e o primeiro ator estatal que normalmente é comprometido é a polícia", disse Els.
Nhamirre descreve a organização destas redes criminosas em três níveis: "o dos que mandam, que são empresários que gozam de grande influência e impunidade, têm muito dinheiro, conseguem movimentar-se facilmente, e vivem entre Maputo, África do Sul e Dubai - ou seja, podem estar baseados em Maputo ou na África do Sul, mas as suas famílias, esposas e filhos, estão no Dubai ou algures nos Emirados Árabes Unidos".
O segundo nível, o intermédio, faz a ligação entre os mandantes e os operacionais. "Alguns intermediários estão na cadeia e fazem esses trabalhos a partir das prisões, que usam como local seguro para fazer as chamadas telefónicas, movimentar dinheiro e tudo mais", descreve o analista moçambicano.
Os atores do último nível, o dos "operativos", "são normalmente agentes da polícia, no ativo ou desvinculados", concluiu Nhamirre.
Ambos os investigadores apontam a falta de "provas" que permita ligar esta atividade ao financiamento do terrorismo, como em outras regiões do mundo e do continente africano.
Els admitiu que "o nexo entre o terrorismo e o crime organizado transnacional é grande, um alimenta o outro, usam os recursos semelhantes para movimentar dinheiro, etc.".
"Portanto, sim, os grupos terroristas podem estar a usar a indústria de raptos como fonte de financiamento, embora não tenhamos provas disso na África do Sul. Mas é plausível", disse.
Nhamirre, por outro lado, sublinhou que essa tem sido uma narrativa das autoridades moçambicanas para a qual "não há quaisquer provas até agora".
Os dois investigadores apontaram recomendações semelhantes ou complementares para atacar a "pandemia", incluindo uma "efetiva" cooperação transfronteiriça.
Els considera que um dos caminhos -- apresentado recentemente às autoridades sul-africanas, que recorreram ao aconselhamento do ISS para definir as "prioridades" do novo titular das polícias, que deverá ser conhecido em breve - é o da criação de equipas multidisciplinares "na reação ao crime", que envolvam a participação do setor da segurança privada.
A polícia sul-africana, à semelhança da moçambicana, perdeu muito capital humano e competências especializadas para as empresas privadas de segurança e precisa de uma restruturação profunda, sendo que "demorará anos até que a polícia reúna as competências à disposição do setor privado", sublinhou.
"Enquanto estiver a ser restruturada, a polícia, assumindo a liderança, como o impõe a Constituição sul-africana, deve trabalhar com equipas multidisciplinares integrando o setor privado. Neste momento, penso que essa é a única solução para combater este tipo de coisas", concluiu.
Nhamirre apontou igualmente para a necessidade de uma grande reforma, tanto em Moçambique como na África do Sul, nos setores de defesa e segurança", que lhes proporcione uma "inteligência efetiva".
"Precisamos de uma reforma profunda no setor de defesa e segurança com um objetivo final de remover o crime organizado do Estado, que está junto e cresce dentro dele. Dizer que está infiltrado é pouco para a realidade de Moçambique e da África do Sul", disse.
"Por causa desta realidade é que Moçambique e África do Sul estão na lista cinzenta do GAFI" - Grupo de Ação Financeira, organismo intergovernamental que tem como objetivo o combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, com sede na OCDE em Paris, disse.
"Esse branqueamento de capitais, no caso de Moçambique e da África do Sul, relacionam-se com atividades criminosas, que incluem os raptos. Estamos a assistir ao colapso das instituições, com efeitos nefastos para os cidadãos e para os empresários e empresas", afirmou.
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