segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Cobras há muitas e veneno também, mas guineenses não têm antídotos

Nas aldeias da Guiné-Bissau, sobretudo nas ilhas, é comum os habitantes serem mordidos por cobras, mas é raro haver antídotos para o veneno que pode provocar inchaço, paralisia e até a morte.


“Estava no campo e nem senti a picada. Só depois de o pé começar a inchar é que reparei nas marcas e no sangue”, conta Zinha Pacana, 47 anos, residente da ilha de Jeta onde o dia-a-dia se faz na rua e a biodiversidade reina.

“Ainda hoje sinto dores na perna”, apesar de já terem passado dois anos.

Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) indicam que todos os anos cerca de cinco milhões de pessoas em todo o mundo são mordidas por cobras, das quais 100 mil morrem e 400 mil ficam permanentemente incapacitadas ou desfiguradas.

Só na região subsaariana em que se encontra a Guiné-Bissau, onde os espaços rurais dominam, 30 mil pessoas morrem picadas anualmente e a ameaça cresce com o fim de ‘stocks’ vitais de antídotos previsto pela organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) para este ano – o que diminui a esperança de os fazer chegar onde sempre faltaram, como a ilha de Jeta.

Mesmo quem escapa às tarefas da agricultura de subsistência, ora atravessa o caminho das cobras, porque as ruas são caminhos no meio do mato, ora vive ao lado delas, porque as mangueiras e palmeiras preenchem todo o espaço entre as casas.

É de maio a novembro, na época das chuvas, que alimenta os ecossistemas, que a enfermeira Zeneida Camalá, 28 anos, tem mais trabalho no centro de saúde da ilha com as mordidelas de cobra – um trabalho incompleto porque pouco mais pode fazer do que ministrar analgésicos e esperar que a maré suba para enviar os pacientes para o continente numa piroga.

Chegar a Caió é uma aventura de uma hora (ir e voltar), sem cais, nem sinalização por entre os canais de tarrafe, vegetação densa que forma uma barreira entre a ilha e a vila que fornece tudo o que chega a Jeta, mas onde também não há antídotos.

“Não há. Nunca houve. Também não podíamos ter geleiras para os guardar porque o centro de saúde não tem eletricidade”, relata Joaquim da Silva, 56 anos, enfermeiro chefe que tratou Zeneida entre muitos outros e que já viu alguns habitantes morrer.

Estatísticas são uma miragem, guias para identificação das cobras venenosas (a maioria não o são) também, por isso pouco espanta que haja quem recorra aos curandeiros tradicionais e suas mezinhas para tentar obter a cura.

Pitágoras Gomes, 24 anos, acredita que foi isso que o curou: foi atacado a caminho de casa e sofreu de paralisia numa perna, que depois inchou, tendo sido tratado no centro de saúde de Caió com paliativos.
“Depois fui a um curandeiro que tratou da mordidela e foi aí que fiquei bom”, assegura, mas sem conseguir explicar que tratamento recebeu.

É assim nas ilhas e no interior, mas também na capital: a ausência de antídotos é a regra no Hospital Simão Mendes, principal unidade de saúde do país, em Bissau, apesar de a Organização Mundial de Saúde (OMS) os indicar na lista de bens essenciais nos serviços de saúde.

“Se o doente aparecer com uma reação anafilática [reação alérgica] fazemos questão de pôr hidrocortisona e se tiver dores damos analgésicos”, responde Kumba Bispo Yala, diretor clínico do hospital.

A Lusa tentou obter informações junto da delegação da OMS em Bissau, mas sem resposta.

O ano de 2016 está a chegar ao fim e com ele também os ‘stocks’ de Fav-África, o único soro antiveneno “certificado, garantido e seguro” mesmo sendo otimista em relação à previsão dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), que alertaram apontaram junho como limite.

"Dezenas de milhares de pessoas vão continuar a morrer de mordeduras de cobras, a menos que a comunidade mundial da saúde tome medidas imediatas para garantir a produção de um tratamento e de um soro antiveneno", advertiu a MSF num comunicado difundido em setembro de 2015.

O laboratório francês Sanofi Pasteur decidiu em 2010 suspender a produção do antiveneno devido aos preços dos produtos concorrentes fabricados na Ásia, América Latina e África, e com os quais a “Sanofi Pasteur não pode alinhar”, anunciou na altura.

Organizações como os MSF e OMS dizem ser necessárias melhores dados estatísticos - os países precisam de mais antídotos do que pensam - e queixam-se de falta de regulação que permite a entrada de produtos falsificados no mercado.

Uma união de esforços global é apontada como o caminho urgente, porque “nenhum outro produto de substituição estará disponível durante pelo menos dois anos”, concluem os MSF.

Fonte: Lusa

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