O historiador guineense Mário Sissoko defende que a solução para a crise que afecta a Guiné-Bissau há mais de quatro décadas passa pela extinção do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) que, segundo ele, já não tem mais nada para dar aos guineenses. Sissoko falava a “O Democrata” [segunda e última parte da Grande Entrevista] para fazer uma abordagem histórica da criação do partido libertador bem como das causas que originam o conflito interno que tem abalado o partido de Cabral, sustentando ainda que a actual direcção daquela formação política não tem nenhuma ideologia clara para desenvolver o país.
Durante a entrevista, falou das circunstâncias da morte do líder da guerra, Amílcar Cabral. De acordo com as suas pesquisas, Cabral foi o responsável pela sua própria morte. Explicou igualmente a questão do alegado envolvimento do Presidente Sekou Touré na morte de Cabral. Contou ainda que os grandes comandantes do PAIGC sabiam da tentativa do assassinato de Cabral, mas nada fizeram para protegê-lo.
“Vejam só um pormenor muito importante…se nenhum comandante de grande envergadura tomou medidas para proteger Amílcar Cabral é porque, certamente, os guineenses estavam fartos dele e das suas acções, sobretudo, da sua ‘supra murdi’ ao mesmo tempo…”, espelhou o historiador.
OD: Pode explicar as circunstâncias ou as causas que estariam por detrás do assassinato de Amílcar Cabral, segundo as informações de que dispõe?
MS: A morte de Amílcar Cabral para mim é partilhada. Fiz uma abordagem sobre a morte de Cabral no terceiro volume do meu livro, onde apurei pormenores muito interessantes no concernente ao seu assassinato. Cabral tinha enviado uma carta para o Rafael em Bissau, mas a carta foi parar às mãos de um agente da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE).
A grande questão que se coloca até hoje é: porque é que a carta foi parar às mãos de PIDE? Na carta ele dizia que a luta chegara ao ponto que se exigia a tomada de todas as decisões. Portanto, ele estava em condições de tomar as referidas decisões.
O agente de PIDE pediu ao Rafael que respondesse a carta, de forma a poder reenviá-la para Conacri. O Rafael respondeu que se ele [Cabral] estava a dizer aquilo, que tinha poder para fazer aquilo que entendesse, então que saiba também que era ele [Rafael] quem enviava os homens para a luta.
Não eram apenas os “estafetas” que traziam recados ao Rafael que revelavam os segredos sobre as coisas que se preparavam contra ele, mas também havia pessoas que lhe contavam tudo. Havia até pessoas que foram enviadas à Bissau para assassiná-lo, mas eles não concretizaram a missão.
Ficaram com medo de regressar à Conacri, porque seriam todos mortos. Até o próprio Rafael instruiu-os a voltarem à mata, junto da base do comandante Osvaldo Vieira, mas mesmo assim recusaram voltar e ficaram em Bissau. As pessoas que faziam parte daquele grupo eram meninos que foram à escola e sabiam o que estavam a fazer. Lembro-me ainda de um pormenor importante que abordei no livro que vou publicar…
Os cabo-verdianos acusavam o Rafael Barbosa de ser um agente da PIDE, mas o próprio Amílcar nunca o acusou como servidor da PIDE. Uma vez na minha presença, em 1968, quando um grupo de dirigentes criticaram as declarações proferidas por Rafael, depois de ter saído da prisão. Rafael afirmara que se “sentia mais tuga do que próprio tuga”.
A partir dalí algumas pessoas indicaram o camarada Pascoal Alves para substituí-lo como presidente do Comité Central. Quando Amílcar chegou, disse assim em português: Eu conheço o Rafael… o Rafael não é agente da PIDE! Em Bissau falaremos…Citei esta frase textualmente no livro que estou a produzir. A grande questão que se coloca sobre essa situação da acusação contra o Rafael pela ala cabo-verdiana, de ele ser colaborador da PIDE é o silêncio de Amílcar, ou seja, a sua lentidão na resolução daquela situação levou a que o problema se agudizasse e à criação de mais tensão.
Qual era o preço do silêncio de Amílcar Cabral relativamente à acusação feita pela ala cabo-verdiana contra o Rafael? Qual foi a reacção do Rafael, se não acusar o Amílcar de ser um acólito ao serviço da segurança portuguesa, a PIDE, para poderem destruir os seus adversários políticos em Bissau.
Além disso, há outra situação que ocorreu em Conacri e que acabou por transformar-se num conflito. Momo Turé, que desempenhava a função do Comissário Político a nível da direcção superior do partido, beneficiou de uma bolsa para visitar todos os países e as organizações que apoiavam a luta com meios materiais e financeiros.
Ele aproveitou para observar e inteirar-se de todas as documentações de apoios ao partido em termos de materiais e em dinheiro para a luta armada. Foram-lhe facultados documentos sobre os apoios que os respectivos países e organizações disponibilizavam para o partido. Ele aproveitou a oportunidade e reuniu todas as informações sobre bolsas de formações, tratamentos, apoios materiais em armas, géneros alimentícios e apoios financeiros.
Depois do seu regresso, Momo pediu ao Amílcar o extrato de conta do partido, mas este não queria entregar-lhe. Momo exigiu-lhe que apresentasse o extrato da conta na reunião, depois iriam realizar uma conferência nacional do partido para esclarecer algumas coisas.
Cabral não quis entregar este documento que espelhava as contas do partido. Momo queria o esclarecimento porque havia casas que foram compradas na altura, mas os documentos estavam em nome de Amílcar Cabral. Esta era a razão pela qual Momo Turé pediu a convocação de uma conferência nacional, que podia transformar-se em congresso.
OD: Podia explicar de forma sintética as circunstâncias da morte de Amílcar?
MS: Deixa-me terminar esses factos históricos. Essa situação aconteceu no momento em que o Amílcar estava envolvido num outro conflito, entre a ala cabo-verdiana e a guineense. Havia também no seio da ala cabo-verdiana um grupo de pessoas que estava em conflito contra o próprio Cabral, porque não concordava com a forma como as coisas se desenrolavam, sobretudo a questão da divisão racial que se registava no seio de camaradas.
O conflito interno que havia no seio do partido em Conacri, sobretudo a questão da divisão racial, foi a razão principal do abandono da luta por parte de vários cidadãos cabo-verdianos. Um dos casos é o do recém-falecido Presidente de Cabo Verde, António Mascarenhas Monteiro, que decidiu abandonar a luta juntamente com a sua esposa.
OD: Porque é que ele abandonou a luta?
MS: Por causa de uma situação de desigualdade racial que ocorria no internato em Conacri, na Escola Piloto. A maioria dos alunos eram crianças guineenses (pretos) e uma minoria cabo-verdiana (burmedjus). Uma vez, a mulher do Mascarenhas chegou à escola e viu os meninos pretos a comerem tocinhos, couro de porco frito. Dirigiu-se directamente ao frigorífico e viu peixe e carne.
Seguiu para o refeitório dos professores e encontrou crianças cabo-verdianas “burmedjus” a comerem carne. Dirigiu-se para uma das responsáveis, a Lilica, que é mestiça (burmedju), perguntando-lhe o porquê daquela situação de separação, se na verdade as “crianças são flores da nossa luta e razão do nosso combate”.
A esposa de Mascarenhas acabou por discutir com a Lilica e ameaçando que brigaria com ela. As pessoas foram informar ao Amílcar, que se deslocou até ao local. Depois de inteirar-se da situação, voltou ao seu gabinete alegando que iria analisar o ocorrido. Voltou mais tarde e disse que a Lilica tinha a razão, relativamente ao desentendimento com a esposa de António Mascarenhas Monteiro.
Foi a partir dali que Mascarenhas Monteiro e a sua esposa decidiram abandonar a luta, porque entenderam que não podia haver desigualdades nem no seio das crianças e muito menos a nível dos combatentes. Além deles, havia também outras pessoas (cabo-verdianas e mestiças) descontentes com a situação e abandonaram a luta. Tendo em conta as situações anormais que se registavam, começou-se a levantar questões sobre as circunstâncias da morte de várias pessoas bem como dos julgamentos descabidos, o que acabou por criar muita desconfiança.
As circunstâncias da morte de comandante Domingos Ramos continuavam a suscitar interrogações. Amílcar foi visitar os combatentes em Boé, depois acabou por envolver-se em discussão com Domingos Ramos. Os guarda-costas perceberam que estavam a discutir e aproximaram-se do local. Perguntaram ao seu comandante, Domingos Ramos, o que se passava e este respondeu que ele e o Amílcar estavam a discutir alguns assuntos e o Amílcar tinha dito que era o chefe. Mas que ele, o Domingos, respondeu ao Cabral que quem mandava eram os que estavam na frente de combate.
Disse ainda ao Amílcar que puseram-lhe no secretariado para secretariar. Uma semana depois daquela discussão com Amílcar, Domingos Ramos foi ferido em combate.
Diz-se que o Domingos atacou um aquartelamento e que foi aí que ficou ferido por um tiro de obus de bazuca que acertou num tronco. Segundo as minhas pesquisas, se fosse na verdade um tiro do inimigo, não haveria ninguém para socorrê-lo, porque seriam todos abatidos pela tropa portuguesa.
Essa situação que abordei é uma das caudas entre tantas outras, que podem estar por detrás da morte de Cabral, que foi assassinado pelos próprios combatentes do PAIGC. Até hoje, muitas questões se colocam a volta das circunstâncias da morte de Amílcar. Eu mesmo estou a trabalhar nestas questões e nas respostas que poderão ser encontradas no livro que estou a preparar. Testemunhei algumas situações em Conacri, porque trabalhei no secretariado bem como partilhei muitas informações com grandes comandantes.
Estou a trabalhar nesta matéria. Depois da publicação do livro as pessoas poderão encontrar muitas respostas sobre as questões levantadas à volta das situações que ocorreram no período da luta de libertação.
OD: Essa situação que acabou de explicar foi certamente uma das razões que criou fricções e divisões internas no seio do partido. Qual foi a contribuição dada por grandes comandantes para sarar as feridas e consequentemente evitar a morte de Amílcar?
MS: Nenhuma… O Serviço de Segurança do partido tinha informações sobre uma (eventual) tentativa de assassinato de Amílcar. Até os grandes comandantes sabiam disso. Mas porque não tomaram as diligências necessárias para protegê-lo?! Ou seja, porque é que não enviaram homens e porque não activaram um alerta para garantir a segurança ao Cabral, uma vez que todos eles sabiam que ele era um alvo atado para matar?! Porque não fizeram questão de protegê-lo?
Vejam só um pormenor muito importante… Se nenhum comandante de grande envergadura tomou medidas para proteger Cabral, é porque, certamente, os guineenses estavam fartos dele e das suas acções, sobretudo da sua `supra murdi´ ao mesmo tempo. Toda a agente sabia da tentativa do assassinato contra Amílcar Cabral e até nós que estávamos em Moscovo sabíamos disso, mas nenhuma estrutura do partido e, sobretudo, a segurança tomou a iniciativa de protegê-lo.
O grande enigma está aqui… porque não foram tomadas medidas para proteger Cabral, se toda agente sabia que era alvo a abater? A Guiné-Conacri, através do seu serviço secreto, tinha informações, tomou diligências e alertou a direcção superior do partido.
OD: Um historiador cabo-verdiano acusou o Presidente Sekou Touré de ser o mandante do assassinato de Amílcar Cabral. O senhor também chegou à mesma conclusão, segundo as suas pesquisas?
MS: O historiador cabo-verdiano, se calhar, tem informações que o levou a chegar àquela conclusão, a da implicação do Presidente Sekou Touré. Deixa-me só explicar uma coisa sobre isso: outro historiador da própria Guinée-Conacry, Ibrahim Kaba, que também falou do envolvimento das autoridades conacri-guineense, considera o Presidente Ahmed Sekou Touré o mandante do assassinato de Amílcar Cabral.
A grande verdade é que este livro pode ser viciado, ou seja, as informações avançadas pelo escritor carecem de fundamentos, porque ele (escritor) escreveu para agradar o regime do Presidente Lanssana Conté.
O escritor contou no seu livro que um Capitão do exército conacri-guineense, Koiaté, detido na zona do pavilhão dos serviços secretos do Presidente Sekou Touré, disse ao outro preso político Alassan Djop que ele (Koiaté) sabia que ia morrer, porque matara o Amílcar Cabral por ordem de Chefe do Estado, Sekou Touré.
Esta foi a versão que Alassan Djop contou ao historiador Ibrahim Kaba. Outro oficial daquele país confirmou ao historiador que a missão do Capitão Koiaté era de matar aqueles homens todos, se não cumprissem a missão de matar o Amílcar. Significa que se os elementos do PAIGC não conseguissem matar Cabral naquela noite, seriam mortos todos pelo Capitão Koiaté e que iria por sua vez assassinar Cabral. O livro onde constam essas informações foi escrito no momento em que cada qual falava mal do período do Presidente Sekou Touré, para agradar ao novo regime.
OD: Sekou Touré tem uma quota de responsabilidade na morte de Amílcar, de acordo com as suas pesquisas?
MS: A relação entre o Presidente Sekou Touré e Amílcar Cabral não podia ir mais longe, porque os compromissos acordados entre as duas partes, se fossem abandonados, isso criaria problemas, tal como acabou por acontecer. Sekou Touré tinha a intenção de unificar as duas Guiné’s, a Guiné-Bissau e a Guinée-Conacry.
Amílcar falava na unificação da Guiné-Bissau e as Ilhas de Cabo Verde. Mas no princípio era esse acordo (unificar as duas guiné’s). Só que mais tarde Cabral mostrou a sua verdadeira intenção de unificar a Guiné-Bissau e as Ilhas de Cabo Verde. Para o Presidente Sekou Touré, apenas Portugal ficaria a ganhar com isso. Essa situação acabou por criar um mal-estar entre os dois. O Presidente Sekou Touré tinha os seus interesses geoestratégicos e geopolíticos que queria levar a frente.
Depois da independência, o Presidente Sekou Touré visitou a Guiné-Bissau. Durante a visita proferiu uma declaração na qual voltou a mostrar a sua verdadeira intenção. Disse que a República da Guinée-Conacry e a República da Guiné-Bissau são um país de dois portos. Essa declaração teve o seu significado e toda agente sabia disso.
E mais, durante a sua visita a Bafatá, ele pôs o seu dedo no olho de Nino Vieira e este afastou-o. Então, disse ao Nino Vieira que pensava que ele não enxergava bem. Isso aconteceu na presença do próprio Presidente Luís Cabral, irmão de Amílcar Cabral.
Outra coisa que quero lembrar aqui é a questão das duas ilhas, na região de Bolama, que Sekou Touré dizia pertencerem ao seu país. Trata-se das ilhas de Poilão e João Vieira. Ele estava disposto a fazer uma guerra contra a Guiné-Bissau para recuperar aquelas ilhas. E afinal, a verdadeira preocupação do Presidente Sekou Touré era a presença do Presidente Luís Cabral, irmão mais novo de Amílcar Cabral.
Isso demonstra claramente o seu racismo em relação aos mestiços, por causa de ódio que tinha de Amílcar Cabral. Ele sabia que era difícil manter uma boa relação com o irmão de Amílcar que exercia a função do Chefe de Estado na Guiné-Bissau. Depois de golpe de 14 de Novembro de 1980, nunca mais reivindicou aquelas duas ilhas. Sekou Touré nunca ajudou a Guiné-Bissau, porque não chegou de aconselhar o Presidente Nino Vieira. Se tivesse aconselhado Nino Vieira, se calhar toda a sakalata (trapalhada) que aconteceu ou feita por Nino Vieira podia ter sido evitada.
O Presidente Sekou Touré não queria nada ou que ninguém na Guiné-Bissau, naquela altura, fortalecesse o Estado, porque o fortalecimento do Estado guineense não facilitaria a sua intenção geopolítica da unificação das duas Guiné’s.
OD: Quer dizer que o Presidente Sekou Touré pode ter estado por detrás da morte de Amílcar Cabral…
MS: A única coisa que sei, é que as relações entre os dois eram de desconfiança…ninguém acreditava no seu companheiro, porque cada qual tinha o seu projecto ou interesses geoestratégicos e geopolíticos. O que posso dizer sobre a morte de Amílcar Cabral é que o próprio, Amílcar Cabral é o factor da sua morte.
OD: Amílcar é responsável pela sua própria morte, porquê?
MS: Cabral é responsável pela sua própria morte. Porque, quem mata é morto.
OD: Cabral matava pessoas?
MS: Quem mata, é morto. Na Guiné, quem mata, é morto…
OD: Qual foi o envolvimento dos serviços secretos portugueses. É verdade que a PIDE teve uma quota de responsabilidade na morte de Cabral?
MS: Foi imputada à polícia portuguesa ‘PIDE’ essa responsabilidade pelo próprio partido. A grande verdade é que a “PIDE” foi sujada, porque a responsabilidade da morte de Amílcar Cabral é unicamente do próprio PAIGC. As pessoas que estavam naquela missão são combatentes do PAIGC.
OD: Havia guineenses e cabo-verdianos na luta, sob a orientação do partido. Depois da luta, os cabo-verdianos foram para o Cabo Verde. Qual foi o segredo que estaria por detrás do sucesso dos cabo-verdianos que conseguiram organizar-se e hoje tornaram-se em exemplo de democracia, enquanto nós enfrentamos uma crise de mais de quatro décadas com guerras, sobressaltos militares e instabilidades política e governamental. Tem alguma explicação lógica para isso?
MS: A única explicação é que nós, os guineenses, estávamos debaixo do colonialismo cabo-verdiano, que não nos permitiu ter homens preparados para estar na administração do país. Fundamentei esse meu argumento no terceiro volume do livro que estou a preparar, mas também outra razão é que o próprio Nino Vieira, depois de assumir o poder, não conseguiu organizar o país.
É compreensível a situação dele, porque não tinha nenhuma preparação e acabou por levar o país ao abismo. No primeiro tempo da sua governação instaurou um regime de terror e de ditadura, porque tinha grande complexo para que não viesse a ser descoberto como um operacional de Amílcar Cabral no período da luta de libertação, sobretudo implicado no assassinato de alguns comandantes esclarecidos.
OD: Nino Vieira era operacional de Amílcar para matar os seus próprios colegas?
MS: Sim. Nino Vieira é acusado de ser um operacional de Amílcar, sobretudo para eliminar os comandantes que eram considerados de perturbadores.
OD: O senhor é considerado crítico de Amílcar Cabral. Ocorreu alguma coisa no passado na vossa relação em Conacri, que pode ter influenciado negativamente as suas análises relativamente à pessoa do Amílcar Cabral?
MS: Muitas pessoas acham que tenho alguma coisa contra o Amílcar. Quero aproveitar o vosso jornal para esclarecer que eu, Mário Sissoko, não tenho nada contra o Amílcar Cabral. Eu não fui à luta como uma pessoa inocente, que não sabe nada. Sou uma pessoa esclarecida com formação e bem instruída.
Eu trabalhava no secretariado do partido em Conacri, e isso permitiu-me estar a par de várias situações. Vivíamos numa casa de duas moradias e a segunda moradia foi dividida em duas partes. Nós ocupávamos o primeiro, onde estava eu, o Vasco Cabral, o José Araújo e o Rui Cardoso. A outra parte que foi aumentada com um pré-fabricado era ocupada por Amílcar Cabral, Aristides Pereira e pela secretária de Cabral.
Outra moradia constituía os aposentos de Amílcar Cabral, mas ele passava pelo nosso gabinete. Eu era o encarregado de arquivo morto no secretariado do partido em Conacry (Arquivo Morto – armazena documentos de frequente uso, consulta ou referência quase nulas. Embora não sejam significantes, precisam ser guardados).
Havia todas as informações no arquivo morto. Portanto, estou em condições de acompanhar muitas coisas e, aliás, como se sabe, a minha profissão é historiador. Vi muitas coisas que aconteceram em Conacry, Boke, Koundara. Havia uma situação de apartheid no seio de camaradas do partido, sobretudo entre os guineenses (pretos) e os cabo-verdianos (burmedjus).
OD: Então, havia uma separação racial no seio do PAIGC entre cabo-verdianos e guineenses?
MS: Sim, havia separação racial. As pessoas sentiam isso, mas simplesmente ignoravam. Eu vivi isso, mas não havia como. Tudo aquilo que eu disse que aconteceu na luta é verdade. E qualquer pessoa que esteve presente na luta pode confirmar isso, excepto os criminosos que cegamente tentam camuflar a história, mentindo que tudo era maravilha e que Amílcar era santo.
OD: Havia uma ideologia defendida por todos combatentes para libertar a Guiné-Bissau e Cabo Verde, sob a orientação da direcção do PAIGC. Será que a actual direcção do PAIGC tem uma ideologia clara hoje, para desenvolver a Guiné-Bissau?
MS: Um partido político dividido, no meio, entre “meninos bonitos” e “inimigos”, é um partido político? Acha que esse partido tem uma ideologia clara, ou uma mentalidade de lutar para o desenvolvimento do país? A direcção de um partido que tem medo de diferença de opinião e que prioriza apenas os que dizem sim senhor… será que esse partido é democrático?
OD: Falemos da crise que hoje abala o PAIGC e que consequentemente acabou por atingir o país. O que acha que pode ser feito para ultrapassar a crise e unificar o partido, de acordo com a sua experiência?
MS: A única solução para o partido PAIGC é a sua extinção, de forma a dar o sossego aos guineenses.
OD: Porque é que o PAIGC deve ser extinto, um partido histórico…
MS: Porque reproduz apenas ajustes de conta entre camaradas. Já não tem mais nada para dar aos guineenses, portanto é um partido que já está ultrapassado. Pode tirar essa direcção e afastar todos os dirigentes dos seus diferentes órgãos. Eleger novas pessoas para a direcção. Tenho a certeza, que não se vão entender e mergulharão na crise.
É um partido de intrigas e de ódio, por isso, a única solução é a sua extinção e levá-lo ao museu. Sabe que é difícil curar um doente biologicamente acabado. Portanto, nesta fase é difícil curar o doente. Não há cura para o PAIGC e a solução é a sua extinção, como uma solução para a crise constante que se vive no nosso país há mais de quatro décadas.
OD: A CEDEAO enviou recentemente uma missão presidencial para mediar os guineenses. No seu ponto de vista, isso representa um falhanço para a Guiné-Bissau ou o quê?
MS: Qual foi o papel jogado pela CEDEAO para estarmos nesta situação? Eu fiz uma abordagem do papel ou da ingerência da CEDEAO na política interna da Guiné-Bissau num dos meus livros inédito.
OD: Podia explicar um pouco sobre a ingerência da CEDEAO de que está a falar?
MS: Não. Quando o livro for publicado, poderá ler.
OD: Quer culpar a CEDEAO de toda a situação da crise do nosso país?
MS: Não estou a culpar a CEDEAO. Aliás, a geração dos Chefes de Estado é diferente agora. A verdade é que a primeira geração da CEDEAO, depois da independência, não queria a paz na Guiné-Bissau, sobretudo a parte francófona. Tenho provas daquilo que estou a dizer, que são documentos escaneados.
Por: Assana Sambú/Sene Camará
Foto: Marcelo N’Canha Na Ritche
odemocratagb.com
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