quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

PORTUGAL E A GUINÉ-BISSAU: A Necessidade de Separar Análise Diplomática de Manipulação Política

Nas últimas semanas, surgiram textos que tentam reinterpretar a situação política na Guiné-Bissau à luz de categorias simplistas, distorcidas e, nalguns casos, deliberadamente manipuladoras. Um desses textos, assinado por um indivíduo identificado como Manuel Vicente, procura enquadrar a prudência diplomática de Portugal como se se tratasse de uma legitimação tácita da crise interna guineense. Mas, ao fazê-lo, incorre em três erros fundamentais: ignora o contexto real, desconhece a evolução histórica da política externa portuguesa, e branqueia as responsabilidades políticas de quem desencadeou a mais grave instigação étnica desde 1998.

Este artigo visa esclarecer os factos, recentrar o debate e repor a verdade.

1. Portugal não é hoje o mediador de 1998 — e isso é natural

Portugal deixou de ser uma potência colonial há meio século. A sua relação com a Guiné-Bissau evoluiu para uma parceria de cooperação baseada no respeito mútuo e na não-ingerência. Comparar o papel de Lisboa em 1998–1999 ao presente é um erro analítico evidente.

Em 1998, tratava-se de uma guerra fratricida aberta, com confrontos militares diários, bombardeamentos urbanos e um colapso total da autoridade civil. A mediação externa — de Portugal, da CEDEAO e de outros atores — impunha-se por razões de ordem humanitária e de contenção regional.

Em 2025, a situação é radicalmente distinta. O país enfrentou uma tentativa coordenada de captura do Estado por redes políticas apoiadas em financiamento ilícito, associada à instrumentalização explícita de uma identidade étnica para mobilização eleitoral.

O que ocorreu não foi uma guerra civil, mas uma intervenção preventiva das Forças Armadas para travar riscos concretos de fragmentação interna, instabilidade nos quartéis e confronto social, alimentados por um discurso perigoso e irresponsável.

Pretender que Portugal “deveria agir como em 1998” revela profundo desconhecimento das mutações políticas, institucionais e diplomáticas de ambos os países nas últimas décadas.

2. A narrativa de Manuel Vicente é politicamente interessada e intelectualmente desonesta

Ao acusar Portugal de "silêncio conveniente", o autor omite — porque lhe convém — o essencial: Portugal não tomou posição porque não está perante um golpe militar clássico, mas perante uma intervenção constitucionalmente atípica motivada por uma ameaça real à ordem pública e à coesão nacional.

Não é ético, nem intelectualmente honesto, exigir que Portugal condene aquilo que ainda está a ser verificado e investigado no terreno.

Mais grave ainda é a tentativa de ocultar a verdadeira causa da instabilidade:

o estigma étnico da “balantização”, utilizado por determinados dirigentes para pressionar comunidades inteiras a votar, criando tensões internas graves num país com mais de 24 grupos étnicos e tradições distintas.

A irresponsabilidade política atingiu o seu auge quando:

se escolheu um candidato presidencial com base na etnia e não na competência;

se disseminaram mensagens de que “o poder será balantizado”, colocando comunidades umas contra as outras;

se anunciaram vitórias eleitorais dentro de quartéis antes da contagem oficial dos votos, ameaçando a disciplina militar;

se preparou um movimento de contestação pública mesmo antes de existir qualquer proclamação da CNE.

Nenhum país sério, nenhuma diplomacia responsável, legitima ou apoia um discurso com este potencial destrutivo.

3. O silêncio diplomático não é cumplicidade — é prudência

Portugal conhece bem o historial de crises guineenses. Sabe que declarações precipitadas podem transformar tensões administráveis em confrontos abertos.

Por isso, age segundo o princípio fundamental da política externa moderna: não agravar conflitos internos nem interferir antes de avaliar completamente os factos.

É falso e simplista sugerir que Portugal se cala por conveniência económica.

Se existissem interesses obscuros ou cumplicidades politicamente motivadas, Portugal teria reagido de modo muito diferente durante os últimos cinco anos de degradação institucional, quando jornalistas eram perseguidos, opositores detidos e o Estado cada vez mais capturado por redes ilícitas.

Não reagiu porque — e isto é fundamental — nenhum país intervém precipitadamente quando percebe que uma crise interna está a ser manipulada politicamente para fins eleitorais e pessoais.

A prudência diplomática não é cobardia: é responsabilidade.

4. Quem fala de democracia deve começar por respeitar o tecido social e étnico do país

Os mesmos que hoje clamam por “liberdade” e exigem libertações imediatas esquecem — ou fingem esquecer — que foram eles os primeiros a violar princípios básicos do republicanismo ao convocar um voto étnico massificado, conduzido com irracionalidade e oportunismo.

Foi Domingos Simões Pereira quem levou Fernando Dias a um jogo para o qual este não estava preparado, utilizando-o como instrumento político para mobilizar o voto de um grupo étnico sob a falsa narrativa da “exclusão histórica”.

Este tipo de manipulação, em qualquer país, seria considerado uma ameaça direta à unidade nacional.

Na Guiné-Bissau, onde as Forças Armadas têm uma composição marcada por uma pluralidade étnica, mas com forte presença balanta, a irresponsabilidade política atingiu níveis intoleráveis.

O Alto Comando Militar não actuou para tomar o poder — actuou para evitar que o país regressasse ao abismo.

5. A verdade que Manuel Vicente evita

Enquanto o autor tenta transformar Portugal no protagonista, oculta que:

foram dirigentes políticos guineenses que introduziram tensões étnicas no processo eleitoral;

foram grupos politicamente motivados que anunciaram vitórias fictícias para provocar confrontação social;

foram elites com acesso a capitais ilícitos que financiaram campanhas de manipulação e desinformação;

foi a irresponsabilidade civil, e não a ação militar, que colocou o país em risco iminente.

Quem exige que Portugal condene os militares deveria, antes, condenar aqueles que criaram as condições objetivas da intervenção.

6. Portugal não precisa de escolher lado — precisa de manter a serenidade

A Guiné-Bissau atravessa um processo de transição sensível.  A prioridade é restabelecer a ordem, assegurar a verdade eleitoral, apurar responsabilidades e definir um quadro de governação que evite futuros abusos.

Portugal deve manter a sua postura:

prudente;

técnica;

institucional;

não interferente;

orientada para a cooperação, não para a ingerência.

A Guiné-Bissau não precisa de paternalismos.  Precisa de parceiros que compreendam a complexidade do momento e saibam distinguir manipulação política de responsabilidades reais.

Em conclusão, o texto de Manuel Vicente falha porque parte de uma premissa falsa: a de que existe um “golpe” clássico e que Portugal está moralmente obrigado a reagir. Nada disto corresponde à realidade.

A verdade é outra:  o que ocorreu foi uma intervenção preventiva motivada pela necessidade de travar consequências imprevisíveis de um discurso étnico inflamado e de uma tentativa de captura do Estado por interesses particulares.

Portugal, conhecedor da sensibilidade da situação, age com cautela.  E essa cautela é, neste momento, a forma mais responsável de cooperação.

A Guiné-Bissau precisa de verdade, não de retóricas alarmistas.  Precisa de estabilidade, não de narrativas incendiárias.  Precisa de parceiros que compreendam que a pior diplomacia é a que fala antes de saber — e a melhor é a que contribui para a paz sem alimentar a instabilidade.

Duma cidadã guineense e patriota.

L. G. da Silva N'Tunguê.

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