© Getty ImagesNotícias ao Minuto 25/10/23
Várias entidades israelitas atacaram o secretário-geral da ONU e, numa exigência algo invulgar no contexto das Nações Unidas, o embaixador de Israel na ONU exigiu a sua demissão.
As posições da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a ocupação da Palestina não são recentes. Há dezenas de resoluções da Assembleia Geral da ONU sobre a autodeterminação do povo palestiniano, a autonomia do seu governo, a soberania sobre recursos naturais, a ilegalidade da ocupação e de colonatos na Cisjordânia, tudo fatores que são reconhecidamente restringidos pelo governo e pelas forças de segurança israelita.
No entanto, apesar de não existirem surpresas sobre a posição da ONU, nem sobre a posição de António Guterres como mediador neutro e objetivo em qualquer conflito mundial, as declarações do secretário-geral da ONU causaram grande revolta na missão diplomática israelita, indignada com um discurso moderado, em 'horário nobre', que escrutinou a ocupação e os ataques contra civis (de ambos os lados).
"É importante reconhecer que os ataques do Hamas não surgiram do nada. Os palestinianos têm sido sujeitos a 56 anos de ocupação sufocante. Viram as suas terras serem continuamente devoradas por colonatos e assoladas pela violência; a sua economia foi sufocada; as suas pessoas foram deslocadas e as suas casas demolidas. As suas esperanças de uma solução política para a sua situação têm vindo a desaparecer", disse Guterres, numa reunião do Conselho de Segurança da ONU.
O diplomata fez questão de vincar que "as queixas do povo palestiniano não podem justificar os terríveis ataques do Hamas", da mesma forma que os ataques do Hamas "não podem justificar a punição coletiva do povo palestiniano".
Para Israel, porém, condenar ataques contra civis de ambos os lados foi, de alguma forma, a gota de água. Logo a seguir, o embaixador israelita nas Nações Unidas, Gilad Erdan, fez uma exigência algo invulgar no seio da organização sediada em Nova Iorque: a demissão do secretário-geral da ONU.
"O secretário-geral da ONU, que demonstra compreensão pela campanha de assassínio em massa de crianças, mulheres e idosos, não está apto para liderar a ONU. Peço-lhe que renuncie imediatamente", disse Erdan, interpretando a condenação clara de Guterres contra o Hamas como uma "compaixão pelas terríveis atrocidades" contra Israel.
O embaixador também questionou as críticas que Guterres fez à organização do Conselho de Segurança, que considerou como desatualizada após ter sido criado no final da Segunda Guerra Mundial, e admitiu que Israel irá "reavaliar as relações com a ONU e os seus funcionários que estão estacionados na nossa região".
Em Telavive, o ministério dos Negócios Estrangeiros israelita juntou-se ao pedido de demissão do seu embaixador, e o ministro, Eli Cohen, afirmou mesmo que "não há espaço para uma abordagem equilibrada" no que diz respeito à situação na Faixa de Gaza. Cohen também confirmou que, devido ao discurso, cancelou uma reunião com o líder da ONU.
Também houve revolta pelas famílias dos reféns israelitas do Hamas, que Guterres defendeu convictamente. Mas a indignação do português sobre a existência de reféns em Gaza não foi suficiente e, em comunicado, o grupo que representa as famílias disse ser "uma vergonha dar legitimidade a crimes contra a humanidade quando se trata de judeus!" "As declarações do secretário-geral da ONU são escandalosas!", reiteraram.
O posicionamento de Israel contra o líder da organização humanitária internacional manifestou-se, na prática, numa recusa de entrada a um dos seus principais representantes. Esta manhã, Martin Griffiths, o chefe de assuntos humanitários da ONU, viu o seu visto de entrada no país ser recusado, e Gilad Erdan avisou que Israel ia continuar a recusar vistos a oficiais das Nações Unidas. "Está na altura de lhes darmos uma lição", disse o embaixador.
"Assédio" e críticas "preocupantes". Guterres defendido em Lisboa e Ramallah
Apesar das críticas infindáveis de autoridades israelitas, o discurso de António Guterres também foi muito elogiado, especialmente por lados internacionais que sempre se manifestaram a favor da autodeterminação palestiniana e da condenação da violência de Israel e do Hamas.
Em Portugal, Mariana Mortágua (BE) e Rui Tavares (Livre) demonstraram o seu apoio ao secretário-geral da ONU, com a primeira a explicar que "bastou dizer o óbvio para que António Guterres ficasse sob assédio do regime israelita" e o segundo a considerar "preocupante" a tentativa de "confundir e minar a credibilidade" do português.
Na Palestina, o ministério dos Negócios Estrangeiros palestiniano defendeu Guterres e considerou que este teve toda a razão em apontar as décadas de ocupação e repressão, e disse que a posição de Israel é de "desrespeito e falta de compromisso" com as Nações Unidas, as suas convenções e as resoluções sobre os palestinianos.
E, na América Latina, onde o apoio à Palestina é uma política muito comum entre os vários países (nomeadamente no Brasil, através de Lula da Silva), o presidente colombiano também colocou-se do lado de António Guterres, garantindo que este "conta com todo o apoio e solidariedade" da Colômbia.
"Dizer a verdade não é razão de demissão. Israel deve cumprir com as resoluções das Nações Unidas", declarou Gustavo Petro.
Os ataques do Hamas contra Israel, que arrancaram no dia 7 de outubro, causaram cerca de 1.400 mortos do lado israelita, com o exército a declarar que encontram-se em Gaza cerca de 220 reféns. Mas a resposta de Telavive tem causado grande consternação por todo o mundo, devido à enorme escala da devastação e ao impacto sobre a população civil palestiniana no pequeno enclave.
Os bombardeamentos israelitas já provocaram pelo menos 5.700 mortos (mais de 700 nas últimas 24 horas), entre os quais se encontram mais de 2.300 crianças. Há dezenas de milhares de feridos que, alertam os profissionais de saúde no local, não vão sobreviver devido ao colapso do sistema de saúde, que tenta operar sem fornecimento de eletricidade, de combustível ou de água potável - um fornecimento que foi completamente cortado por Israel, que controla o que entra na Faixa de Gaza.