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Notícias ao Minuto 17/02/23
Carlos Gaspar, investigador no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-Nova), é o convidado desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.
Se ao longo das últimas décadas, desde o final da Guerra Fria, a possibilidade da ocorrência de uma nova guerra em território europeu parecia bastante longínqua, o dia 24 de fevereiro de 2022 alterou essas perspetivas. Tudo isso devido à invasão russa da Ucrânia, que começou há praticamente um ano e que continua sem um fim à vista.
“A invasão russa da Ucrânia foi uma espécie de ‘11 de Setembro’ europeu”, o momento em que os cidadãos deste extenso continente “perceberam que a guerra tinha voltado à Europa”. Quem o diz é Carlos Gaspar, investigador no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-Nova) e, também, antigo conselheiro de vários chefes de Estado portugueses, como Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio.
Na ótica do especialista, os “países aliados” de Kyiv, nomeadamente os pertencentes à União Europeia e à NATO, “irão até onde for necessário para garantir que a Ucrânia não é derrotada”. Isto numa altura em que, defende ainda, tal já aconteceu, “de certa maneira”, com a Rússia, que foi “obrigada a rever em baixa os seus objetivos” para esta missão de expansão territorial.
No Vozes ao Minuto desta quinta-feira, Carlos Gaspar explica ainda que o eventual uso de armas nucleares táticas, por parte de Moscovo, em solo ucraniano motivaria uma “resposta ocidental” imediata, que “passaria pela intervenção da NATO”.
O presidente Putin cometeu um erro dramático para a realização do seu projeto de expansão
O conflito na Ucrânia conta já com (quase) um ano de duração. Podemos dizer que as expetativas do presidente russo, Vladimir Putin, para esta invasão saíram frustradas? Em que sentido?
O presidente Putin cometeu um erro dramático para a realização do seu projeto de expansão. Ele publicou, em agosto de 2022, um ensaio em que explicava que, na sua visão, a nação ucraniana não existia como entidade separada do império russo. E foi, aparentemente, nesse pressuposto que ele programou a invasão da Ucrânia, que tanto quanto nós julgamos saber devia ser como outras operações que a União Soviética tinha feito no passado - como a Primavera de Praga, em 1968, ou a intervenção no Afeganistão, em 1979. Ou seja, devia ser um golpe de mão: que passa por decapitar o regime e as forças armadas, e instalar de seguida novos dirigentes.
Mas não foi isso que aconteceu na Ucrânia.
Pois não. O golpe de mão falhou imediatamente, nos primeiros dias da invasão. Aparentemente, as autoridades ucranianas estavam à espera que tal acontecesse - pois partilham de uma cultura soviética que é comum, já viram situações semelhantes noutros tempos. Eliminaram a quinta-coluna ucraniana, prenderam centenas de pessoas em Kyiv nos primeiros dias, e depois conseguiram parar as duas colunas blindadas russas, dezenas de milhares de soldados que se dirigiram para Kyiv - uma a partir da Bielorrússia, num eixo norte-sul, e a outra a partir da Rússia propriamente dita, num eixo este-oeste. Conseguiram travar essas duas colunas com uma estratégia notável e com meios mínimos e, ao fim de um mês, as autoridades russas tiveram de recuar: desistiram da invasão a Kyiv, e reconcentraram-se no Donbass e no sul.
Foram então, nesse momento, repensado os objetivos militares russos?
A partir desse momento, os objetivos deixaram de ser, pelo menos expressamente, a conquista da Ucrânia na totalidade e a instalação de um regime subordinado ao Kremlin em Kyiv, e passou a ser conquistar o Donbass e os outros territórios que fazem parte de uma velha província do império russo, que se chamava Nova Rússia e que vai desde o Donbass até Odessa. E, numa terceira fase, a partir de setembro, mesmo esses objetivos tiveram de ser revistos, porque, mais uma vez contra as expectativas, os ucranianos conseguiram fazer recuar as forças russas, quer em Kharkiv, na parte leste da Ucrânia, quer em Kherson, no sul. Nesse momento, as forças russas tiveram de abdicar dos territórios que tinham conquistado nesses locais. Por essa altura, seis meses depois do início da invasão, já todos tinham percebido, e certamente em Moscovo também, que afinal a nação ucraniana existia.
Ucranianos gastam, numa semana, uma quantidade de munições equivalente àquilo que França produz num ano inteiro
Têm aumentado, numa altura em que o conflito completa o seu primeiro ano de duração, os receios acerca da possibilidade de ocorrência de uma renovada investida russa em larga escala, possivelmente na primavera. Os factos apontam nesse sentido? O que podemos esperar que aconteça?
Esses ataques estão em curso, já há vários dias que existe essa ofensiva. É uma ofensiva, de momento, com uma progressão muito lenta, e com baixas muito elevadas. As análises de que nós dispomos falam de mais de 800 baixas russas por dia, em média, que é um número que nunca existiu neste conflito até à data. E claro que até ao dia 24, em que se assinala o primeiro ano de invasão, a estratégia russa passa por ter alguma coisa para mostrar, sobretudo no Donbass e, eventualmente, também no sul, no distrito de Kherson. As autoridades russas reconcentraram os seus meios no Donbass e, sobretudo, duplicaram o número de soldados que lá estão. Aparentemente, estão agora mais de 200 mil soldados só na região. Em algumas estimativas, os valores apontam até 300 mil. De recordar que para a invasão foram empenhados 190 mil soldados, que esse número reduziu dramaticamente para 150 mil, e agora, aparentemente, há um esforço para duplicar esse número, concentrado na reconquista dos territórios do Donbass. Os ucranianos têm, assim, de conseguir absorver essa pressão militar e, de momento, estão com problemas sérios, sobretudo de munições.
Isto porque os ucranianos gastam, numa semana, uma quantidade de munições equivalente àquilo que França produz num ano inteiro. É uma guerra de alta intensidade e nem os teóricos da guerra, nem os estabelecimentos militares ocidentais pensavam que voltasse a haver uma guerra de alta intensidade com esta escala. A doutrina militar ocidental é uma doutrina voltada para uma guerra tecnológica, mas esta guerra é muito parecida, de uma forma trágica, com a I Guerra Mundial. São guerras de posições em que o número de soldados é mais importante do que a tecnologia - e daí a mobilização russa -, em que as barragens de artilharia voltaram a ser decisivas para manter e conquistar posições, e em que a tecnologia tem, com certeza, uma função importante, mas que não substitui as duas outras dimensões.
Há já alguns países e decisores que dizem que é indispensável que a Rússia seja derrotada - o que, de certa maneira, já aconteceu. Foi obrigada a rever em baixa os seus objetivos, sucessivamente, e sobretudo foi derrotada porque a intervenção russa criou a nação ucraniana
Essas ameaças russas têm levado Kyiv a pressionar os parceiros ocidentais para fornecerem armamento ofensivo, para robustecer a sua capacidade militar. Tais países já cederam no fornecimento de tanques de combate, fala-se agora na questão dos caças… Até onde é que um apoio militar dos países da NATO e da UE, nomeadamente, pode ir?
Sobre este tema, é importante sublinhar que o apoio militar é prestado pelos Estados bilateralmente. São os próprios países, como Portugal, a Polónia, a Alemanha e, sobretudo, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, que prestam ajuda e treino militar, e partilham informações com as autoridades ucranianas. Tem havido sempre um grande cuidado para se evitar uma intervenção, mesmo indireta, da NATO. Esta não é uma guerra entre a NATO e a Rússia, e a estratégia ocidental passa por manter esse conflito limitado ao território da Ucrânia.
Dito isto, os países aliados da Ucrânia irão até onde for necessário para garantir que a Ucrânia não é derrotada. Claro que podemos discutir o que isso significa, e a resposta não vai ser igual em Berlim, em Washington ou em Lisboa. Mas, apesar de tudo, há um consenso mínimo nesse sentido. Há já alguns países e decisores que dizem que é indispensável que a Rússia seja derrotada - o que, de certa maneira, já aconteceu. Foi obrigada a rever em baixa os seus objetivos, sucessivamente, e sobretudo foi derrotada porque a intervenção russa criou a nação ucraniana. E a partir do momento em que os ucranianos decidiram que querem ter um Estado separado da Rússia e que estavam dispostos a combater para garantirem a independência da Ucrânia, a Rússia nunca pode ganhar esta guerra. Sim, pode consolidar posições no Donbass, ou em Kherson, ou na Crimeia, mas não poderá ocupar duradouramente nenhum território ucraniano.
E é preciso lembrar que, sobretudo no sul, há uma deportação massiva das populações ucranianas em direção à Rússia. Isto porque, para manterem as suas posições, os russos não podem ocupar territórios onde estejam ucranianos. E a verdade é que há 40 milhões de ucranianos, pois em causa está o maior país da Europa.
A ameaça nuclear existiu desde antes da própria invasão (...). Se a ameaça, por parte da Rússia, é eficaz ou não, depende de nós [ocidentais]
E que resposta pode a Ucrânia esperar de uma Rússia que, para além de não estar a cumprir os objetivos militares a que se tem proposto, vê do outro lado um adversário que tem sido constantemente apoiado pelos seus parceiros ocidentais? Onde se insere aqui a questão da ameaça nuclear?
A ameaça nuclear existiu desde antes da própria invasão, uma vez que na retaguarda deste exército de 190 mil soldados estavam unidades com mísseis nucleares, incluindo armas nucleares estratégicas, e não apenas armas nucleares táticas. Isso existe desde o primeiro dia porque tal faz parte da doutrina militar russa, que existia já antes da invasão e na qual a intimidação nuclear é um instrumento de guerra. Isso não acontece do lado de França, da Grã-Bretanha ou dos Estados Unidos, que também são potências nucleares, mas que não têm essa doutrina de intimidação nuclear, de ameaçar recorrer às armas nucleares.
Se a ameaça, por parte da Rússia, é eficaz ou não, depende de nós [ocidentais]. Os ucranianos, aparentemente, não estão intimidados, pois lutam pela sua independência. Se os aliados dos ucranianos se sentem intimidados, podemos dizer que essa doutrina de intimidação é eficaz. Se não se sentirem, não é eficaz.
Mas poderá a Rússia, efetivamente, optar por recorrer ao armamento nuclear no terreno de batalha para levar a sua avante, ou tal não passa de uma postura de ‘bluff’ por parte do Kremlin?
O que nós sabemos é que a doutrina militar russa defende a intimidação nuclear e que, nos últimos 12 meses, temos sido repetidamente ameaçados com o recurso a armas nucleares. Até porque também sabemos que, até agora, todas as supostas ‘linhas vermelhas’ impostas pela Rússia foram ultrapassadas e não aconteceu mais nada. O que nos pode levar a concluir que o recurso a armas nucleares, incluindo armas nucleares táticas, ditas de combate, é improvável. Mas não é impossível. O recurso a essas armas não teria, por exemplo, o objetivo de destruir Kyiv ou de atacar um país da NATO, mas as mesmas seriam utilizadas no terreno, como artilharia.
Mas isso teria consequências. Mesmo a esse nível, a resposta ocidental passaria pela intervenção da NATO. Essa posição não é excessivamente explícita na praça pública, porque não é essa a forma de atuar da Aliança Atlântica nem dos Estados Unidos, mas em Moscovo sabem que é essa a consequência do recurso a armas nucleares táticas.
Nós lutamos contra um inimigo brutal, mas não irracional. A brutalidade é muito própria da arte operacional russa, da sua maneira de fazer guerra, vimos isso nos últimos 100 anos. Mas isso não significa que sejam decisores irracionais, porque não o são
Acontecendo isso, seria então expectável que a guerra se estendesse para além das fronteiras da Ucrânia? Por outras palavras, poderia assim este conflito desencadear uma hipotética III Guerra Mundial?
O recurso a armas nucleares, mesmo a armas nucleares táticas, é uma escalada. É passar de um nível de guerra convencional, para um nível nuclear. E a essa escalada vertical os países ocidentais, e os Estados Unidos, respondem com uma escalada horizontal. Ou seja, intervêm no conflito. Isso não significa necessariamente uma III Guerra Mundial, mas significa a derrota da Rússia. E há um argumento razoável que diz que quem sabe isso melhor do que ninguém é o Estado-Maior-General da Rússia, pois sabe que existe uma assimetria - que já existia antes da invasão, mas que é ainda maior depois da mesma, que provocou baixas pesadas do lado russo e perdas de material muito significativas.
As forças armadas russas são mais fracas agora do que eram no dia 23 de fevereiro de 2022. Nesse sentido, não é um ato racional por parte do Estado-Maior-General russo fazer uma escalada vertical e passar a usar armas nucleares táticas. Nós lutamos contra um inimigo brutal, mas não irracional. A brutalidade é muito própria da arte operacional russa, da sua maneira de fazer guerra, vimos isso nos últimos 100 anos. Mas isso não significa que sejam decisores irracionais, porque não o são. E a decisão nuclear, no caso da Rússia, envolve não só o presidente, mas também o ministro da Defesa e o chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas da Federação Russa. São precisos três decisores para haver uma decisão nuclear e, também nesse contexto, parece-me improvável que haja essa escalada nuclear.
Do ponto de vista financeiro, Portugal presta mais apoio à Ucrânia do que a Alemanha, em termos proporcionais (...). Portugal tem prestado mais apoio à Ucrânia do que aquilo que é a perceção geral
Por outro lado, como analisa o apoio que tem sido oferecido por Portugal à Ucrânia neste que é um momento de guerra?
O apoio de Portugal, ao contrário do que parece ser a opinião generalizada, não é pequeno. Do ponto de vista financeiro, Portugal presta mais apoio à Ucrânia do que a Alemanha, em termos proporcionais. No âmbito humanitário, também temos uma posição significativa, um pouco acima da média dos países da União Europeia. Já na parte militar, as nossas capacidades são, efetivamente, mais limitadas, mas existiu o envio de veículos blindados, de helicópteros e de vários tipos de material - e agora, também, de carros de combate pesados. É um facto que, do ponto de vista político, há um forte apoio da opinião pública, mas há uma posição discreta por parte das autoridades oficiais portuguesas. Mas essa discrição não corresponde a uma falta de apoio material.
Também vale a pena sublinhar que houve, desde a primeira hora, uma mobilização da sociedade portuguesa para receber refugiados ucranianos, para ir à Polónia e à Ucrânia prestar assistência aos ucranianos. Há uma comunidade ucraniana importante em Portugal, são a segunda maior comunidade de imigrantes no nosso país. Além disso, Portugal é membro da União Europeia e, por isso, condenou a invasão em conjunto com a União Europeia - que foi a primeira a fazê-lo, mesmo antes da NATO. Também os pacotes de sanções sucessivos foram, todos eles, aprovados por Portugal. Já no quadro da NATO, no Grupo de Contacto para a Defesa da Ucrânia, Portugal tem igualmente feito sempre a sua parte.
A posição de Portugal é, portanto, a posição de um país aliado da NATO, de um país parceiro da União Europeia e, também, de uma democracia solidária com um país que foi objeto de uma agressão e que é, também, membro das Nações Unidas. A Carta das Nações Unidas obriga todos os Estados-membros a prestarem assistência a um Estado que foi vítima de uma agressão. Portanto, em todos esses patamares sucessivos, Portugal tem feito aquilo que devia fazer e tem, até, prestado mais apoio do que aquilo que é a perceção geral.
Quase um ano depois do início da guerra, que análise podemos fazer do impacto que a mesma teve em entidades como a NATO e a UE? Foram mais os aspetos negativos ou os positivos?
A invasão da Ucrânia pela Rússia destruiu a arquitetura de segurança criada a seguir ao fim da Guerra Fria, que procurava incluir a Rússia e as antigas repúblicas soviéticas numa esfera alargada de uma comunidade Euro-Atlântica que tinha as suas próprias instituições - quer na Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), quer na Parceria Euro-Atlântica no quadro da própria NATO. E isso é irreversível, essa arquitetura de segurança deixou de existir. E isso torna a necessidade de consolidar a NATO e a União Europeia tanto mais forte. É preciso estabelecer uma linha de demarcação estratégica mais vincada entre a NATO e a União Europeia, por um lado, e a Rússia, por outro lado. É nesse sentido que a União Europeia reconheceu a Ucrânia e a Moldova como países candidatos à integração europeia, e que no quadro da nova comunidade política europeia, por iniciativa de França, a Rússia está excluída e a Ucrânia tem o seu lugar enquanto país europeu. Não foi apenas a nação ucraniana que se revelou com esta guerra, mas foi também a identidade europeia da Ucrânia que foi reconhecida pelos parceiros europeus e ocidentais. A próxima fase da construção europeia é, efetivamente, integrar a Ucrânia neste espaço de segurança coletiva. Da NATO, ‘idem’ aspas.
A invasão russa da Ucrânia foi uma espécie de '11 de Setembro' europeu
Pegando precisamente neste ponto, é mais consensual que a Ucrânia venha efetivamente a fazer, no futuro, parte da União Europeia do que da NATO. Porém, até que ponto uma integração europeia do país liderado por Volodymyr Zelensky pode conduzir o país para o seio da Aliança Atlântica?
As posições estão divididas relativamente à adesão da Ucrânia à NATO. A Alemanha continua a ter uma objeção a que a Ucrânia entre na NATO, mas a cada dia que passa de invasão russa, essa posição torna-se mais fraca e mais difícil de sustentar - no sentido em que se nós vamos ter a Ucrânia dentro da União Europeia, temos de garantir a segurança desse país. E a segurança europeia, seja de Portugal, seja da Ucrânia, é garantida pela NATO, portanto essa questão vai voltar a pôr-se sucessivamente ao longo deste período. A NATO era, dizia o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, “obsoleta”. E o presidente francês, Emmanuel Macron, dizia no passado que a mesma estava “em morte cerebral”. Outros queriam, por sua vez, fazer um exército europeu na União Europeia. Tudo isso acabou.
A União Europeia reforçou-se, também, em domínios relevantes para a sua autonomia estratégica - a indústria de Defesa europeia passou a ser, e tem de ser, uma prioridade, desde logo para sustentar o esforço de guerra ucraniano -, e a NATO voltou a ser reconhecida por todos como o garante da Defesa europeia. A guerra voltou à Europa, e isso é qualquer coisa que nós não acreditávamos que voltasse a acontecer no pós-Guerra Fria, mas houve uma resposta dos ocidentais e, sobretudo, dos europeus. A invasão russa da Ucrânia foi uma espécie de ‘11 de Setembro’ europeu. Todos os europeus, independentemente das hesitações das elites, perceberam: que a guerra tinha voltado à Europa; que a Rússia de Putin tem um programa expansionista e que está disposta a recorrer às armas para levar as suas fronteiras tão longe quanto possível; e que era preciso travar essa mesma expansão. E as elites têm ido atrás deste choque que foi a invasão russa da Ucrânia.
Europeus têm de fazer mais para apoiar a Ucrânia do que seria o caso se a China não fosse um aliado da Rússia
A invasão decorre, também, num momento de crescentes tensões entre a China e os Estados Unidos, um dos parceiros mais ativos de Kyiv no contexto desta guerra. Que influência pode essa realidade ter sobre o desenrolar do conflito?
Essa realidade tem consequências a vários níveis. Desde logo, houve uma crise em Taiwan em agosto de 2022. O exército chinês, pela primeira vez, cercou a Ilha Formosa, cercou a república de Taiwan, e isso é equivalente a um ato de guerra do ponto de vista do Direito Internacional. E é óbvio que a questão de Taiwan é inseparável da questão da Ucrânia - da mesma maneira que ninguém acreditava que a guerra voltasse à Europa, e eis que ela voltou, as pessoas também não acreditavam que a China pudesse invadir Taiwan, e agora têm a posição contrária e acham que uma invasão de Taiwan é provável. Se os russos fizeram, os chineses podem fazer também. E, mais uma vez, é preciso travar isso. Para os Estados Unidos, a questão de Taiwan, a segurança na Ásia e a contenção da China continua a ser a prioridade das prioridades da sua estratégia. E isso significa, portanto, que os europeus têm de fazer mais para apoiar a Ucrânia do que seria o caso se a China não fosse um aliado da Rússia de Putin.
A guerra na Ucrânia pode ainda prolongar-se (...). Basta um para fazer a guerra, mas são precisos dois para fazer a paz. E, de momento, nenhuma das partes está preparada para ceder
É possível dizer, então, que este conflito da Ucrânia está também a ter a sua influência nas relações entre as principais potências mundiais?
Exatamente. Não só ao nível das tensões entre os Estados Unidos e a Rússia, ou entre os Estados Unidos e a China, e na confirmação de uma aliança entre a Rússia e a China, mas também de uma transformação da natureza da política internacional. Até à invasão da Ucrânia, era razoável pensar que a competição entre as grandes potências se realizava dentro do quadro da ordem internacional. A partir do momento em que uma grande potência como a Rússia recorre ao uso da força numa larga escala, numa guerra de alta intensidade e em que pode contar com outra grande potência, a China, como a sua retaguarda estratégica, a partir daí o quadro da ordem internacional está posto em causa. A Rússia violou todos os artigos relevantes da Carta das Nações Unidas, de uma forma grosseira e brutal como não houve, até agora, outro caso. Isso não impressionou a China, que continuou a fazer a retaguarda estratégica e a apoiar a posição da Rússia de Putin - e isso significa que, a partir desse momento, o que está em causa não é apenas a invasão da Ucrânia pela Rússia, mas também a própria ordem internacional.
Perante este cenário que fomos aqui descrevendo, é expectável que este conflito seja muito mais prolongado no tempo? O que é preciso para que uma guerra desta natureza chegue, efetivamente, ao fim?
A guerra na Ucrânia pode ainda prolongar-se, visto que nenhuma das partes está preparada para negociar os termos da paz e, sobretudo, porque são precisos dois para fazer o Tratado de Paz. Basta um para fazer a guerra, mas são precisos dois para fazer a paz. E, de momento, nenhuma das partes está preparada para ceder.