Por cnnportugal.iol.pt
Entre promessas de paz e receios de "um novo 24 de fevereiro", a França está a liderar o plano secreto para mobilizar a Europa no pós-guerra. A criação de uma força militar europeia na fronteira da Ucrânia pode não só ser uma forma inteligente de aumentar a dissuasão, mas também ser um primeiro passo para um sonho de longa data de Macron: a criação de um exército comum europeu, composta por militares de várias nacionalidades europeias
Nos corredores das principais capitais europeias, o acordo é discutido dentro de quatro paredes e com grande secretismo. Mas cá fora, todos já ouviram falar dele. O presidente francês, Emmanuel Macron, quer garantir que a Rússia não voltará a invadir a Ucrânia no pós-guerra e, por isso, está a mobilizar uma coligação das principais nações europeias dispostas a enviar, pelo menos, 40 mil militares para manter a paz no país. Os especialistas admitem que os riscos são elevados, mas que esta é a melhor solução para um acordo de paz de longa duração na fronteira da Europa e pode ser uma antecâmara da criação do sonho de muitos: um exército europeu.
“Emmanuel Macron já percebeu que, a partir de 20 de janeiro, quando Trump tomar posse, o problema da Ucrânia vai passar a ser um problema europeu. Zelensky vai ser obrigado a negociar e já compreendeu que, neste momento, a adesão da Ucrânia à NATO é improvável, para não dizer mesmo impossível. Isso faz com que o envio de uma força conjunta europeia para a manutenção da paz seja a única alternativa viável para o fim do conflito na Ucrânia”, diz à CNN Portugal o professor José Filipe Pinto, especialista em Relações Internacionais.
Apesar dos elogios públicos de Volodymyr Zelensky ao presidente eleito dos Estados Unidos, após um encontro informal em Paris organizado por Emmanuel Macron à margem da cerimónia de reabertura da catedral de Notre Dame, os mais recentes desenvolvimentos não fazem antever boas notícias para Kiev com a chegada de Donald Trump à Casa Branca. Ao mesmo tempo que a administração Biden está a tentar encontrar fundos de emergência para enviar para Kiev antes da tomada de posse, o presidente francês encontrou-se com o líder polaco, esta quinta-feira, em Varsóvia, para discutir uma ideia para devolver a paz no continente.
O presidente francês acredita que a entrada da Ucrânia na NATO é um cenário impossível, uma vez que essa será uma das principais reivindicações russas numa futura negociação de paz. No entanto, um acordo para a Ucrânia sem garantias de segurança militares que impeçam uma nova invasão é visto como um perigo ainda maior. Por esse motivo, Macron foi à Polónia apresentar um plano que passa pela criação de uma força militar conjunta composta por unidades de diferentes países europeus. O presidente polaco, Donald Tusk, descartou para já essa hipótese.
“O objetivo é colocá-los na linha da frente para criar uma espécie de zona tampão. A proposta passa pela criação de uma zona desmilitarizada, que seria dividida por setores. Depois, estes militares fariam vigilância e patrulha das zonas que lhe são atribuídas. Nesse sentido, 40 mil militares parece-me suficiente. Só que dificilmente os russos aceitam uma situação transitória que permita à Ucrânia recuperar forças”, afirma o major-general Agostinho Costa.
O plano de Macron já conta com o apoio de algumas nações importantes. O governo de Keir Starmer, no Reino Unido, já fez saber que não descarta a hipótese de enviar militares britânicos para manter a paz na Ucrânia, após a assinatura de um armistício. Outro dos potenciais parceiros é a Alemanha. A ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, disse que Berlim “vai apoiar tudo o que sirva a paz no futuro” com “toda a sua força”, quando questionada acerca do envio de militares alemães para a Ucrânia no pós-guerra.
Só que para o acordo avançar é preciso chegar a um acordo de paz. E, apesar das promessas do presidente eleito norte-americano em acabar com a guerra “em 24 horas”, os dois lados parecem estar ainda muito distantes de um possível acordo, principalmente numa altura em que a Rússia tem conseguido obter os seus maiores ganhos territoriais desde que retirou as tropas de Kiev e de Kherson. Em junho, dias antes da cimeira de paz organizada pela Ucrânia, Vladimir Putin anunciou os seus pressupostos para avançar para uma negociação de paz: a Ucrânia tem de renunciar formalmente à NATO antes do início das conversas e deve retirar dos territórios parcialmente ocupados de Kherson, Zaporizhzhia, Donetsk e Lugansk.
“O primeiro pressuposto para a proposta de Macron funcionar é existir um acordo de paz. Se não houver um acordo de paz, a proposta cai. Putin apresenta soluções que Zelensky não pode aceitar e a Ucrânia prefere perder com honra, do que perder de uma forma servil. É preciso ter cuidado porque um cenário de congelamento da frente vai levar a um novo 24 de fevereiro [data em que a Rússia invadiu a Ucrânia]”, alerta Agostinho Costa.
Pressionado pela eleição de Trump, que quer obrigar os dois lados a negociar, Volodymyr Zelensky sugeriu que está disposto a ceder temporariamente o território ocupado pela Rússia em troca da adesão à NATO. A mudança de posição do líder ucraniano deve-se ao facto de a aliança não aceitar a adesão de países com disputas territoriais em aberto, com receio de que seja arrastada para uma guerra. Só que esta posição não parece ser suficiente para mudar a opinião de Washington e de Berlim, que não veem com bons olhos a Ucrânia na NATO. Meses antes, Zelensky dizia que a Ucrânia tinha apenas duas hipóteses de sobrevivência: entrada na NATO ou armas nucleares.
Na Ucrânia, há quem tema que este acordo se possa tornar “um Minsk-3”. Em 2015, depois de uma série de derrotas no Donbass contra os grupos separatistas apoiados por Moscovo, a Ucrânia foi obrigada a assinar um acordo de cessar-fogo que previa a retirada de armas pesadas da linha da frente, troca de prisioneiros e a presença de observadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) para garantir que as regras do acordo eram respeitadas. Na prática, este acordo apenas serviu para adiar durante alguns anos o que veio a ser a maior invasão de larga escala na Europa, desde a segunda guerra mundial. Emmanuel Macron quer garantir que a força militar europeia tem um cariz que vai além da monitorização.
“Este cenário proposto seria diferente do de 2014 e 2015, com os acordos de Minsk. Nessa altura, a OSCE tinha uma missão que passava pela mera monitorização. A presença de dezenas de milhares de soldados europeus teria um efeito dissuasor. Isto daria à Ucrânia garantias de segurança reais, independentemente de entrar na NATO ou não. O efeito prático seria o mesmo”, explica o professor Francisco Pereira Coutinho, especialista em Direito Internacional.
Em 2023, Macron já tinha aberto as portas ao que apelidou, de “ambiguidade estratégica”. O presidente francês criticava o facto de os líderes ocidentais tornarem público aquilo que não fariam pela Ucrânia, por receio de retaliação russa, dando a Putin certezas do que poderia fazer. Nesse sentido, Macron deixou no ar a possibilidade de enviar instrutores militares franceses para território ucraniano, para cumprir missões de retaguarda, libertando soldados ucranianos para a frente de batalha.
Esta proposta é diferente, mas não é inédita. Em 1953, quando foi assinado o acordo de armistício da Guerra da Coreia, foi estabelecida a criação de uma zona desmilitarizada onde nenhum dos lados podia colocar tropas, armamento ou realizar atividades militares. Esta faixa de terreno é altamente minada e tem vedações e torres de vigia em ambos os lados. Em simultâneo, forças norte-americanas, através do Comando das Nações Unidas, permaneceram no território da Coreia do Sul para garantir a segurança da região. Do outro lado da fronteira, forças chinesas apoiaram o lado do norte, embora esse apoio tenha diminuído ao longo dos anos. Apesar da tensão entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, os especialistas olham para este como um caso de sucesso, uma vez que evita um novo conflito há mais de 71 anos.
Só que, ao contrário do cenário coreano, na guerra entre a Ucrânia e a Rússia, os dois adversários não têm uma dimensão semelhante. Em caso de paz, a Rússia seria capaz de recuperar as suas forças armadas a um ritmo consideravelmente mais rápido do que a Ucrânia. De acordo com um relatório do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), apesar de a Rússia ter um orçamento para a defesa dez vezes inferior ao dos países da NATO, a indústria estatal russa foi capaz de produzir armas de forma mais eficaz do que os países ocidentais. Por outras palavras: a Rússia produziu mais armamento que o Ocidente, gastando menos dinheiro. Apesar dos números esconderem algumas nuances, como a complexidade das armas produzidas, a quantidade continua a ser crucial para os militares no campo de batalha.
Apesar de Donald Trump sugerir que a única forma de conseguir um acordo de paz é "não abandonar a Ucrânia", a desigualdade entre os dois países faz com que vários membros da NATO na Europa temam uma nova invasão russa após alguns anos de recuperação. Vários dos principais líderes dos serviços secretos europeus têm vindo a público apontar isto mesmo no último ano. De acordo com o chefe da espionagem alemã, o Ocidente está "em confronto direto com a Rússia" e um conflito militar pode estar nos planos russos "até 2030". O próprio secretário-geral da NATO, Mark Rutte, alertou que a aliança não está preparada para enfrentar as ameaças russas nos próximos quatro a cinco anos e sugeriu mudar "para uma mentalidade de guerra" e aumentar os gastos na Defesa para "muito mais do que 2% do PIB".
Nesse sentido, a criação de uma força militar europeia na fronteira da Ucrânia pode não só ser uma forma inteligente de aumentar a dissuasão, mas também ser um primeiro passo para um sonho de longa data de Macron: a criação de um exército comum europeu, composta por militares de várias nacionalidades europeias.
“Esta é a única alternativa viável à paz para a guerra na Ucrânia. As hostilidades terão de ser cessadas, terá de haver concessões territoriais de parte a parte e a garantia de uma força de manutenção de paz. Mas, quando a guerra acabar, o mundo não vai estar em paz, vai estar em armistício”, antevê José Filipe Pinto