Fonte: O DEMOCRATA 07/04/2024 [REPORTAGEM] A ilha de Uno é uma das ilhas que faz parte da região de Bolama Bijagós e que, à semelhança das outras ilhas do arquipélago, torna-se a cada dia uma “ilha fantasma” com a sua população abandonada pelo governo e deixada a sua sorte para sobreviver. A ilha enfrenta enormes dificuldades de circulação, de acesso aos produtos da primeira necessidade e com fraco nível de cobertura de serviços das telecomunicações.
As infraestruturas administrativas estatais encontram-se completamente em ruínas. A ilha dispõe de um posto da Polícia da Ordem Pública sem condições, o porto em pedaços e sem iluminação. Conta igualmente com uma estrutura sanitária do tipo C, que cobre toda área sanitária da ilha, mas não tem sequer um único médico.
CRIANÇAS CAMINHAM DIARIAMENTE CERCA DE 30 QUILÓMETROS PARA TER ACESSO A ESCOLA
A agricultura, a pesca artesanal, a exploração florestal e de moluscos são uma das atividades praticadas pela população local, mas a exploração de moluscos é exercida praticamente por mulheres, que agora são contratadas por outras aldeias para explorar estes produtos e vendê-los diretamente a eles (senegaleses, gambianos) principalmente, gandhi.
Uma equipa de reportagem do jornal O Democrata visitou as diferentes comunidades, com destaque para Bruce, situada a 18 quilómetros da zona central da ilha, onde se encontra o liceu e o centro de saúde. O jornal descobriu que os alunos são obrigados a percorrerem diariamente o dobro dessa distância para terem o acesso à escola. As mulheres, para terem acesso à área sanitária local têm que fazer o mesmo, caso contrário não podem ter o acesso aos cuidados médicos. Em caso de emergência, recorrem às pirogas dos pescadores para evacuação para Bubaque, o que torna os pacientes expostos às contaminações.
Apurou o semanário que existe apenas uma piroga (pertença de uma das comunidades religiosas cristãs), que tem ajudado a população de Uno. A piroga faz ligação Uno-Bissau uma vez por semana, e vice-versa. Sai de Uno na sexta e volta na segunda-feira e cada passageiro paga quatro mil (4000) francos CFA. A ligação Uno-Bubaque varia de 2000 a 2500 francos.
Em entrevista ao jornal O Democrata, o comité da aldeia de Bruce, Carlitos Gomes Quelefa, revelou que a tabanca está a deparar-se com muitas dificuldades, nomeadamente na componente de saúde e a distância de 18 quilómetros que percorrem diariamente para terem o acesso ao liceu e ao único centro de saúde localizados na aldeia de AN-Onho é outro dos sacrifícios que têm de enfrentar. Acrescentou que a tabanca não tem nenhuma estrutura sanitária e que os medicamentos são comprados apenas no posto central.
“É preocupante a situação em que nos encontramos. Se tiver uma grávida em trabalho de parto, ou a precisar de uma assistência urgente de uma parteira, somos obrigados a recorrer a motas. Imagina se tiver uma grávida ou um doente em estado grave, só Deus. Não temos na comunidade sequer uma única piroga para as emergências. Às vezes, recorremos às pequenas embarcações dos pescadores, as canoas da pesca artesanal para transportar doentes. As nossas crianças fazem quilómetros e quilómetros para terem acesso à escola. Não temos aqui nenhuma escola e o Estado deveria ter-se preocupado com essa situação. É um direito que nos assiste”, criticou.
Afirmou que a aldeia não tem eletricidade, não tem energia solar para iluminação, nem a presença de forças de segurança ou elementos da Ordem Pública, nem água potável, como também as bolanhas enfrentam a filtração da água salgada, tornando mais difícil a sobrevivência através da produção agrícola.
“Queremos pedir ao Estado que nos ajude com um centro de saúde e que construa furos de água potável. São centro das nossas maiores dificuldades. A sobrevivência aqui é arriscada. A água que bebemos não é boa para a saúde humana e tem criado problemas e dores de barriga, tanto às crianças quanto aos adultos. É urgente resolver essa situação o mais rápido possível”, defendeu.
O comité mostrou-se preocupado com a fuga de jovens para Bubaque e Bissau à procura de conhecimento científico e de melhores condições de vida, porque “estes reúnem condições e têm infraestruturas escolares para continuarem os seus estudos”.
Disse que essa situação cria muitos problemas aos pais, porque fazem um esforço redobrado para poder assegurá-los longe de casa.
Questionado sobre as atividades de fiscalização da pesca atendendo que as ilhas que compõem o setor de Uno fazem parte da Reserva da Biosfera de Bolama Bijagós, o Parque Nacional de Orango (PNO), Carlitos Quelefa afirmou que praticam atividade de pesca sem problemas, porque “conhecem as regras do parque, embora sejam violadas. Por isso quando há fiscalização naquela zona, os pescadores escondem-se das autoridades ou dessas entidades”.
MULHERES DE UNO REFUGIAM-SE À EXPLORAÇÃO DOS MOLUSCOS PARA GARANTIR O SUSTENTO DOS FILHOS
Interpelado pela repórter de O Democrata, a antiga matrona da comunidade de Ossocom, Segunda Paulo Odunte, revelou que as mulheres dessa zona refugiam-se à exploração dos moluscos (lingron, Ostras, Gandi e Combé), bem como à tecelagem de palhas como forma de continuar a garantir o sustento da família e pagar a escola dos filhos, além da atividade agrícola.
O semanário apurou que um quilograma de Combé custa 1.250 franco CFA na época da seca, e na época das chuvas o preço varia de 1500 a 1600 francos CFA por quilograma, o que faz muitas mulheres optarem mais para essa atividade do que a agricultura, que está ameaçada devido a fatores de alteração climática, o acesso atempado às sementes e o transporte para evacuar os produtos da agricultura para a cidade ou outros centros comerciais do país.
Segunda Paulo Odunte explicou que no passado, fazia o papel de parteira tradicional, assistindo as mulheres grávidas, dava conselhos às gravidas durante a gestação e no parto. Revelou que na aldeia havia um posto construído pela própria comunidade onde trabalhava (ela) e mais duas mulheres e um agente de Saúde Comunitária, mas todo o serviço era gratuito. Apenas recebiam de uma organização incentivos de arroz, também formação para assistir a comunidade.
“Estávamos praticamente todo o tempo no pequeno posto, porque era no centro da aldeia. Trabalhávamos com velas, gostávamos do que fazíamos porque éramos reconhecidas pela própria comunidade, mesmo sem dinheiro. Já não fazemos este trabalho, porque não temos formação específica para tal e toda a atividade que fazíamos agora é feita apenas no centro. A distância para o posto é muita coisa e muitas grávidas fazem-na em condições difíceis, algumas acabam dando à luz pelo caminho”, disse.
Alertou para a existência de fome, afirmando que a comunidade está a enfrentar uma crise de fome, por falta de bolanhas em condições que permitam a cada família ter o que comer por alguns meses. Outro fator apontado tem a ver com a falta de transporte que ligue Bissau à ilha de Uno.
“Na ilha de Uno, mesmo tendo dinheiro é difícil conseguir comprar algo para comer, devido à falta de transporte e o comércio nesta localidade é quase nulo. As bolanhas são a nossa única confiança, mas nos últimos tempos estão todas abraços com água salgada e a agricultura não está a ser uma opção, devido a vários fatores, nomeadamente a falta de chuva, de sementes e os animais estragam frequentemente as culturas da população”, indicou.
Segunda Paulo Odunte lamentou a falta de água, o que obriga as mulheres a descerem às bolanhas para conseguirem água, que também passam por vários processos, horas e horas para ser utilizada.
“A nossa água é muito poluída. Parece argila moída na água e não dá, tanto para a cozinha como para beber. Temos que passá-la por vários processos como filtragem para o consumo. Não temos escola, as crianças são obrigadas a percorrer todos os dias uma distância insuportável para terem acesso à escola para estudar. Vivemos no obscurantismo, na escuridão total porque não há energia”, lamentou, assinalando que as mulheres da comunidade têm, nos últimos tempos, recorrido à tecelagem de palhas e apanha de moluscos (ostras, ligron, combé e gandi), que são defumados e depois vendidos em Bissau e noutras ilhas.
“Nos últimos tempos a procura desses moluscos pelos cidadãos dos países vizinhos, nomeadamente Senegal, Gâmbia e Guiné-Conacri tem aumentado e as mulheres preferem vendê-los a cidadãos destes países diretamente no terreno para reduzir os riscos de perda. Também está em causa o tempo de conservação do produto e o custo de transporte para Bissau”, esclareceu.
“A minha neta está numa ilha. Leva consigo panelas e fica por lá muitos dias à procura de Combé e Gandhi para vender aos estrangeiros. Essa nova forma de trabalhar dá-lhes muito dinheiro do que vender seus produtos em Bissau”, contou sem, no entanto, dizer o valor.
Por sua vez, o comité da aldeia de Ossocom, Victor José da Gama, afirmou que a comunidade sob sua jurisdição está a enfrentar dificuldades em quase todos os domínios, nomeadamente saúde, escola e água potável. Recorrem à água de bolanhas para consumir, porque “reúne condições para o consumo humano”.
O responsável da tabanca de Uno informou que a população daquela aldeia vive através de atividade da pesca e de apanha da ostra e do Combé e todo o rendimento que conseguem é canalizado para comprar alimentos e pagar a escola das crianças.
Apesar do Combé ser rentável para as mulheres, a prática tradicional da etnia bijagó exige a sua conservação, porque “o Combé é usado para o casamento, o fanado e noutras atividades tradicionais locais, razão pela qual é aplicado esse método de conservação para a geração vindoura, bem como evitar a sua extinção.
Uno é uma das ilhas onde mais se explora o combé, porque “as ilhas do setor de Uno são as que mais têm este tipo de molusco”.
“Na nossa tabanca, a escola funciona de pré à primeira classe e quando as crianças transitam da primeira para o segundo ano de escolaridade, fazem dois quilómetros todos os dias para ter acesso à escola na tabanca de Anghané ou num posto mais próximo, um quilómetro e meio. O centro de saúde, também a mesma coisa, um quilómetro e meio dia e noite. As grávidas e doentes em estado grave são coletados e transportados em canapés”, lamentou.
No que diz respeito à questão de segurança e conflitos entre as aldeias, informou que são mediados internamente, porque “a maior parte de conflitos deriva-se dos animais que estragam os cultivos”.
“Nos últimos tempos, na qualidade do responsável da tabanca, aconselhamos os donos de gado e outros animais a construírem lugares adequados para colocar os seus animais”, disse, lembrando que a tabanca tinha um posto de atendimento às grávidas, financiado pela ONG Manitese, onde trabalhavam agentes da saúde base.
“Eu e o meu colega trabalhamos no posto como enfermeiros. Tínhamos três mulheres na equipa que desempenhava o papel de parteiras e faziam um trabalho excelente, porque tinham materiais para tal e em contrapartida recebiam arroz, óleo alimentar, carne enlatada e outros produtos que ajudavam muito na manutenção e no funcionamento do posto. O posto deixou de funcionar e as gravidas fazem quilómetros e quilómetros para dar à luz”, narrou, frisando que as doenças mais frequentes naquela tabanca são o paludismo, as diarreias e a gripe.
ÁREA SANITÁRIA DE UNO SEM MÉDICO FORMADO, NEM MEIOS DE EVACUAÇÃO DE DOENTES
O centro de saúde de Uno funciona em condições precárias, embora em relação a outros centros esteja bem conservado e a funcionar com energia solar. O centro de tipo C conta com três técnicos, dois enfermeiros e uma parteira, mas não tem médico. Esta equipa de técnicos cobre 31 aldeias e é apoiada por 13 Agentes de Saúde Comunitária (ASC). Dispõe de um serviço de maternidade, a consulta externa, farmácia e uma mota carro que faz o papel da ambulância para evacuação de doentes e grávidas, mas neste momento está inoperacional devido a uma avaria.
O responsável da Área Sanitária de Uno, Zito Nunes, disse que o centro enfrenta enormes dificuldades, começando pela fraca capacidade da produção de energia solar e as baterias estão esgotadas, não conseguem aguentar.
“O centro não tem água potável. Os técnicos e os doentes recorrem a fontanários como alternativa”, afirmou.
O semanário soube que as análises são realizadas no hospital de Bubaque. São retiradas as amostras e depois enviadas para Bubaque, mas a geladeira de conservação tem funcionado e facilitado a conservação dos medicamentos e das amostras.
As doenças mais frequentes no setor são o paludismo e infecções respiratórias agudas. O centro de saúde tinha um moto-carro que fazia transporte dos pacientes das tabancas para o centro, mas estragou-se e neste momento tem motorizadas simples para fazer trabalhos estratégicos nos postos avançados e a vacinação das crianças, consultas de grávidas e crianças das aldeias mais longínquas, que não têm acesso rápido ao centro de saúde, nomeadamente Cabuno, Bruce, Ancamona, entre outras.
“Recebemos medicamentos de três em três meses do hospital de Bubaque. Realizamos vacinas a cada mês nas tabancas que fazem parte da ilha e neste momento temos um stock de medicamentos”, contou.
No que diz respeito à prevalência de HIV-Sida, informou que a prevalência diminuiu, porque houve a participação e/ou adesão massiva das pessoas ao tratamento, a população tem aderido ao tratamento e planeamento familiar. A prevalência do SIDA é mais na faixa etária dos 25 anos.
Relativamente à despistagem de cancro, Zito disse que fazem a avaliação de cancro de mama que também não é frequente naquela zona insular do país, assegurando que a direção regional de saúde tem feito diligências para fazer chegar a todas as aldeias o direito à saúde, razão pela qual todos meses os técnicos fazem cinco saídas em colaboração com os 13 agentes da Saúde Comunitária. Admitiu que não têm condições para evacuar doentes.
“Havia um projeto que financiava a evacuação das grávidas em estado grave de Uno para Bubaque, mas já terminou o projeto há quase um ano e neste momento se precisarmos de evacuação temos que procurar um transporte ou pedir boleia como aconteceu com a vedeta que trouxe os medicamentos do projeto PIMI III, que nos ajudou a evacuar uma grávida para o Hospital de Bubaque, porque precisava”, contou.
De acordo com os dados do centro de Uno, em 2023 foram registados três óbitos a nível da saúde materno infantil, e neste ano ainda não se registrou nenhum caso e nenhum óbito, uma situação que se deve, em grande medida, à determinação não só dos agentes de saúde comunitária, como também da própria população que se tem mobilizado à procura de tratamento.
O centro de saúde dispõe de uma pessoa de limpeza que é pago com as receitas internas e os 13 agentes de ASC são suportados por um projeto. No que diz respeito às consultas, às crianças de 7 aos 14 anos pagam consultas no valor de 100 franco CFA, dos 15 aos 49 anos pagam 250 franco CFA, a partir dos 50 anos as consultas são gratuitas como também os menores de 0 a 6 anos e as grávidas não pagam.
O técnico lamentou a falta de incentivo do Estado perante a situação dos seus funcionários que trabalham numa zona isolada, sem subsídio de risco sobretudo para pessoas que trabalham nas ilhas, e que auferem um péssimo salário.
Por: Epifania Mendonça