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POR LUSA 19/10/23
A forma como a UE e o Ocidente reagirem à contraofensiva israelita em Gaza depois do ataque do Hamas no dia 07 ameaçam "comprometer as relações entre a Europa e a União Africana", consideram analistas contactados pela Lusa.
"Se a União Europeia (UE) continuar a apoiar Israel, independentemente da situação, criará uma espécie de ferrugem, aumentando as tensões já existentes com a União Africana (UA) -- que tem uma posição forte [sobre a questão de apoio à causa palestiniana]", afirmou em declarações à Lusa a analista do International Crisis Group (ICG), Liesl Louw-Vaudran, conselheira sénior da organização para as questões relacionadas com a UA.
"Espero que isto não influencie as relações fortes entre a UA e a UE", afirmou, acrescentando que, no processo de tomada de decisões relativas à invasão da Ucrânia pela Rússia, "isto foi claro, porque nem todos os países africanos apoiaram a posição europeia".
Se, no caso da guerra na Ucrânia, o continente se dividiu sensivelmente pela metade, no caso do conflito no Médio Oriente, "é diferente", disse ainda Louw-Voudran, apontando os factos de, não só Israel não ser um país europeu, como o de que "a situação está a evoluir muito rapidamente e muitas pessoas sentem que os direitos dos civis em Gaza estão a ser violados".
A forma como a situação no terreno evoluir determinará também uma maior clarificação sobre os alinhamentos no continente de apoio ou rejeição a cada um dos lados no conflito, ainda que, à partida, como sublinha a analista do Crisis Group, a UA e a grande maioria dos seus 55 estados membros "sempre apoiaram muito claramente a Autoridade Palestiniana de Mahmoud Abbas, e a solução de dois Estados".
"Em todas as cimeiras da UA, nos últimos anos, Mahmoud Abbas foi convidado a falar à organização. Nenhum outro chefe de Estado estrangeiro teve esse privilégio", sublinhou Louw-Voudran.
Esse apoio especial da UA à causa palestiniana foi expresso pela tomada de posição do presidente da comissão da organização pan-africana, Moussa Faki Mahamat, logo no dia 07, associando o ataque do Hamas à "negação dos direitos fundamentais do povo palestiniano, em particular de um Estado independente e soberano", apontando-a como "a principal causa da atual tensão israelo-palestiniana".
"Não sei até que ponto ele [Faki Mahamat] tinha realmente um mandato para fazer [aquela declaração]", disse a analista, mas esta "sempre foi uma posição da UA, que afirma que a causa principal do problema é a negação dos direitos dos palestinianos".
Peter Fabricius, consultor do "think tank" sul-africano Institute for Security Studies (ISS) em Pretória, prevê também que "a forma como o conflito se desenrolar, se Israel invadir Gaza e causar um número ainda maior de vítimas palestinianas, poderá ter impacto" no alinhamento dos Estados africanos em eventuais tomadas de posição no seio das instituições multilaterais.
Israel tem, nos últimos anos, protagonizado feitos diplomáticos expressivos tanto no continente africano como no chamado mundo árabe, sobretudo desde os Acordos de Abraão, assinados com os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein em setembro de 2020.
No continente africano, Chade, Marrocos e Sudão representam igualmente grandes vitórias recentes para Telavive, reconhecida hoje como a capital de um estado por 46 países africanos e onde quase três dezenas têm instaladas representações diplomáticas.
Mas "as relações diplomáticas não significam necessariamente apoio político mútuo", sublinhou Fabricius, e, dependendo de como a guerra evoluir, "as pessoas tomam as suas próprias posições sobre estas questões".
Por exemplo, segundo Fabricius, "a África do Sul tem relações diplomáticas com Israel, mas há anos a sua embaixada em Telavive foi retirada como forma de protesto contra a ocupação da Palestina por Israel".
Pretória e Argel foram também as principais opositoras ao estatuto de observador diplomático na UA oferecido por Mahamat em fevereiro de 2021 a Israel e assumem-se como as suas vozes mais críticas em África.
A África do Sul pós-apartheid tem-se mantido como apoiante firme da causa palestiniana no continente nas últimas quatro décadas. Nelson Mandela comparou a luta dos palestinianos e a ocupação israelita com a dos negros sul-africanos contra o domínio branco e afirmou como "incompleta" a liberdade dos sul-africanos "sem a liberdade dos palestinianos". O Congresso Nacional Africano mantém-se fiel a este mantra e foi através do partido no poder que Pretória considerou "a nova conflagração" como "consequência da continuação da ocupação ilegal e da colonização da Palestina".
Os governos africanos herdeiros dos movimentos de libertação africanos, na sua generalidade, mas em particular os 16 estados-membros da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC, na sigla em inglês, de que fazem parte Angola e Moçambique), afinam pelo diapasão tocado por Mandela relativamente à questão palestiniana.
Entre estes, os membros lusófonos da SADC "estão a tentar equilibrar os seus interesses económicos e estratégicos, pondo de lado o conflito israelo-árabe, e estão muito enredados em tentar ser neutros e não parecer demasiado próximos de um lado em detrimento do outro", considerou David O. Monda, professor de ciências políticas na City University em Nova Iorque.
"Mas penso que o sentimento mais alargado em Maputo e em Luanda será de simpatia pelos palestinianos, simplesmente devido à relação historicamente próxima entre estas administrações e o movimento de libertação palestiniano", acrescentou o investigador queniano.
Maputo não tomou posição até agora sobre o ataque do Hamas e a contraofensiva israelita em Gaza, mas Luanda não teve como "escolher o silêncio", na expressão de Monda, até porque foi provocada pelo embaixador israelita em Luanda, que lamentou a não-condenação expressa do ataque do Hamas na posição assumida pela SADC no passado dia 10, assinada pelo Presidente João Lourenço, na qualidade de líder em exercício da organização.
O chefe da diplomacia angolana, Téte António, chamou o embaixador israelita ao Ministério, acabando por dizer a Shimon Solomon que, não apenas Luanda "condena todo e qualquer tipo de ato violento que venha a perigar a paz e estabilidade da região", como a "solução para o conflito passa, necessariamente, pelo cumprimento das resoluções das Nações Unidas sobre a existência de dois Estados coabitando pacificamente".
No seu discurso sobre o estado da nação, segunda-feira, João Lourenço, embora tenha considerado que Israel tem direito a defender-se e proteger a vida dos seus cidadãos, frisou "que esse mesmo direito tem igualmente o povo palestino, que vive há décadas uma situação de contínua ocupação e anexação de partes do seu território, situação inaceitável em pleno século XXI".