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Caso Susan Smith |
Por Cnnportugal.iol.pt,“Quantos homens negros foram detidos, espancados, presos, acusados deste crime com base apenas na palavra dela?”
No interior do carro de Susan Smith, retirado do fundo de um lago da Carolina do Sul, EUA, em 1994, encontravam-se os corpos dos seus dois filhos. Ainda estavam presos nos bancos do carro, juntamente com o vestido de noiva da própria Susan Smith e de um álbum de fotografias.
Tudo o que simbolizava a vida de Smith estava naquele carro, dizem os investigadores, exceto o marido, que esteve ao seu lado nos holofotes nacionais durante nove dias enquanto ela mentia e descrevia um ladrão de carros fictício, ao mesmo tempo que implorava pelo regresso dos seus filhos - Michael, de 3 anos, e Alex, de 14 meses -, que já estavam mortos.
Mais de 30 anos depois, uma Smith emocionada, agora com 53 anos e elegível para liberdade condicional, foi ouvida novamente a implorar, desta vez para que saia da prisão. A liberdade condicional foi unanimemente negada pela comissão depois de o seu ex-marido, David Smith, e 14 outras testemunhas terem prestado declarações emocionadas contra a libertação de Susan Smith, tornando as suas hipóteses de liberdade condicional praticamente impossíveis, segundo dizem os especialistas ouvidos pela CNN.
O caso desencadeou uma tempestade mediática e uma caça ao suspeito que durou dias, depois de Smith, então com 23 anos, ter dito à polícia, em novembro de 1994, que os seus filhos tinham sido levados quando foi assaltada por um homem negro na cidade de Union, na Carolina do Sul, no final de outubro. A falsa acusação ganhou força à medida que pessoas de todo o país procuravam os rapazes, organizando vigílias, pendurando panfletos e telefonando para a polícia com informações.
“Quando o carro é puxado para fora e naqueles dois assentos estão dois preciosos rapazes que estiveram na água durante nove dias... vi homens e mulheres das forças da ordem a chorar”, conta Tommy Pope, o principal procurador do caso, que estava presente quando o carro foi retirado do lago John D. Long.
“A traição foi pior do que se tivesse havido um ladrão de carros e foi isso que fez com que o caso ressoasse ao longo das décadas - as pessoas foram tão atraídas para ajudar e atraídas por Susan”, diz Pope à CNN.
A perda de Michael e Alex e a traição tão profundamente sentida por todos aqueles que se agarraram a todas as esperanças de que os rapazes fossem encontrados - investigadores e familiares - ainda reverbera na comunidade. A descrição genérica de Smith de um homem negro como suspeito enquadra-se no fenómeno racista das mulheres brancas que acusam falsamente os homens negros de serem criminosos - algo que afeta a sociedade há décadas, sublinha Gloria Browne-Marshall, advogada de direitos civis e professora de Direito no John Jay College of Criminal Justice.
“Quantos homens negros foram detidos, espancados, presos, acusados deste crime com base apenas na palavra dela?”, lamenta Browne-Marshall.
Os investigadores mostraram-se céticos em relação à história de Smith desde o início e, por fim, sob interrogatório, ela confessou ter atirado o carro para o lago, matando os filhos.
No seu julgamento por homicídio em 1995, que foi seguido de perto por todo o mundo, a acusação apontou para relatos de que Smith estava a ter um caso com o filho rico do seu patrão - e esse homem com quem estava envolvida tinha acabado de terminar a relação porque não queria ter filhos. Os advogados de Smith argumentaram que ela era suicida e estava deprimida e que tencionava ficar no carro com os filhos, alegando que se tratava de um assassínio-suicídio falhado.
Esse argumento não se confirmou, lembra Pope, porque a polícia testou o carro para determinar se Smith tinha hipótese de mudar de ideias ou de salvar os filhos depois de ter atirado o carro para o lago. Os investigadores determinaram que o carro flutuou durante cerca de seis minutos antes de se afundar abaixo da superfície da água e no fundo do lago com os seus filhos lá dentro.
“Não se tratou de um erro trágico”, disse David Smith numa audiência em tribunal este ano - é recente, foi a 20 de novembro. “Ela quis acabar de propósito com as vidas dos filhos. Nunca senti qualquer remorso da parte dela. Ela nunca me expressou nenhum.”
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Nesta imagem tirada de um vídeo da Court TV, Susan Smith é vista a testemunhar por vídeo a 20 de novembro de 2024, numa audiência de liberdade condicional na Carolina do Sul, EUA foto Walter Ratliff/AP |
"Sei que o que fiz foi horrível"
Pope, um antigo procurador do 16º Circuito Judicial que trabalhou durante anos na polícia antes de se tornar procurador, acredita que Smith estava a tentar apagar todos os vestígios da vida que levava,
Nos anos 90, Smith trabalhava numa fábrica de têxteis local com um homem que se pensava ter sido seu amante, conta Pope. Mas quando Smith recebeu a uma carta a despedi-la do emprego, levou-a a peito.
“Susan Smith tomou uma decisão horrível: de alguma forma, ela achou que se não tivesse filhos acabaria por ficar com aquele homem”, afirma Pope. “Ela tinha-se convencido, com base no que ele escreveu, que de alguma forma, ela ficaria com ele..
“Ela basicamente pegou naquela parte da vida dela que ela achava que estava a travar a relação e colocou-a no fundo daquele lago”, argumenta Pope.
Pope pediu a pena de morte para Smith mas o júri optou por uma sentença de prisão perpétua, acreditando que era a punição mais severa para que ela pudesse refletir sobre suas ações.
Mas Pope não acredita que tenha sido esse o caso, apontando para os problemas disciplinares de Susan Smith nas suas três décadas na prisão.
Smith testemunhou no passado dia 20 de novembro: falou por vídeo perante uma comissão do Departamento de Liberdade Condicional da Carolina do Sul e pediu para ser libertada, dizendo que havia aprendido com os erros.
“Sei que o que fiz foi horrível”, afirmou em lágrimas.
Na audiência, David Smith referiu-se ao historial da sua ex-mulher e disse à comissão que 30 anos não é tempo suficiente para Susan Smith passar na prisão.
“Não estou aqui para falar do que ela fez na prisão... Estou aqui apenas para defender os interesses do Michael e do Alex como pai deles”, afirmou.
O pai disse que se questionou sobre se conseguiria continuar a viver depois de Susan Smith ter assassinado os filhos de ambos.
“Ela esteve muito perto de me fazer acabar com a minha vida devido à dor que me causou”, afirmou David Smith.
O advogado de Susan Smith, Tommy A. Thomas, não respondeu às solicitações da CNN. À comissão, disse que a sua cliente estava “verdadeiramente arrependida”.
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Várias pessoas fotografadas a 9 de julho de 1995 a descerem a rampa onde Alex e Michael Smith se afogaram num carro em 1994 em Union, Carolina do Sul, EUA foto Lou Krasky/AP |
Centenas de pessoas opuseram-se à liberdade condicional de Smith
As hipóteses de Smith obter a liberdade condicional já eram improváveis, uma vez que os estudos mostram que o principal fator que influencia as decisões de liberdade condicional é a presença de uma vítima ou da família da vítima, explica Hayden Smith, professor de Criminologia e Justiça Criminal na Universidade da Carolina do Sul.
O registo disciplinar de Smith e a atenção dos meios de comunicação social envolvidos também têm provavelmente uma influência na decisão final, diz Hayden Smith.
Mas a presença do ex-marido e de 14 testemunhas na audiência - opuseram-se todos à liberdade condicional - tornaram as hipóteses dela “quase nulas”, acrescenta Hayden Smith.
“As vítimas aparecem, fazem declarações - essa é a parte central disto, a dinâmica que acontece na sala. A comissão de liberdade condicional presta muita atenção a isso”, descreve Hayden Smith, que faz investigação para o Departamento Prisional do estado e que entrevistou Susan Smith enquanto esteve presa.
Até à primeira semana de novembro, o Gabinete de Serviços às Vítimas tinha recebido pelo menos 360 cartas, e-mails e mensagens sobre a audiência de liberdade condicional de Susan Smith. Apenas seis é que pedia a liberdade de Susan Smith.
A liberdade condicional é concedida a prisioneiros violentos em apenas 8% dos casos, de acordo com o Departamento de Liberdade Condicional e Serviços de Indulto da Carolina do Sul.
Os delinquentes violentos que são libertados em liberdade condicional exercem pressão sobre um sistema que já tem poucos recursos, considera Hayden Smith.
Hayden Smith lembra um caso de 1988: Willie Horton, um assassino condenado, violou uma mulher e esfaqueou o companheiro desta enquanto estava em liberdade condicional ao abrigo de um programa do Massachusetts.
“É a regra de Willie Horton, ou seja: podem dar-me garantias, enquanto comissão de liberdade condicional, de que esta pessoa não vai fazer mal a ninguém?”, questiona Hayden Smith.
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A diretora de comunicação do Departamento de Liberdade Condicional da Carolina do Sul, Anita Dantzler, fala durante uma conferência de imprensa após a audiência de liberdade condicional de Susan Smith foto David Yeazell/AP |
Um historial de homens negros falsamente acusados
O caso de Susan Smith é a “mistura quintessencial de ingredientes sulistas”, diz Hayden Smith - sublinhando as implicações raciais do caso. “Qual foi o efeito de algumas pessoas da comunidade assumirem instantaneamente que a história dela estava correta e começarem a perseguir e a procurar afro-americanos?”
Gloria Browne-Marshall, advogada de direitos civis e professora de Direito, considera que o caso reflete uma história de mais de 150 anos de mulheres brancas que fazem falsas acusações contra homens negros, partindo do princípio de que a sociedade “acreditará na noção de hostilidade inata que os negros têm no seu ADN, que é um mito, bem como na luxúria que supostamente têm pelas mulheres brancas”.
Gloria Browne-Marshall lembra o trabalho da jornalista negra Ida B. Wells, que investigou os linchamentos nos estados do Sul, dizendo que muitos envolviam mulheres brancas que faziam acusações contra homens negros.
Este fenómeno social, segundo Gloria Browne-Marshall, é uma “posição de poder demonstrada pelas mulheres brancas”. “Portanto, não é uma questão de saber se a acusadora está ou não a mentir, é uma questão de saber qual foi o homem negro que o fez. É um jogo de poder histórico que ainda hoje funciona.”
Após a confissão de Susan Smith, a sua família pediu desculpa à comunidade negra, tendo o seu irmão emitido uma declaração a dizer que “é realmente perturbador pensar que isto seria uma questão racial”, de acordo com um relatório de novembro de 1994 do "Washington Post".
Tommy Pope, o principal procurador do caso, diz que ainda se sente assombrado pela ideia de que um homem negro inocente podia ter ido parar à cadeia por causa da acusação falsa. Se isso tivesse acontecido, Pope diz que se teria demitido.
“A descrição de Susan era tão genérica que, se ela tivesse insistido e tentado identificar alguém... É aterrador pensar que ela teria realmente nomeado alguém”, afirma o procurador. “Se isso tivesse acontecido, eu nunca o teria superado.”
Nos nove dias em que Susan Smith repetiu a sua mentira vezes sem conta, muitas vezes soluçando e parecendo emocionalmente perturbada perante as câmaras, Pope acredita que uma entrevista que ela deu naquela altura aos meios de comunicação social revelou uma verdade provável.
“Ela fala do momento em que o ladrão de carros se afasta com os filhos e as crianças choram por ela. Eu pensei: 'Bem, essa parte provavelmente era verdade. Ela atirou-os para o lago e eles ficaram a flutuar, a gritar pela mãe durante seis minutos”, diz Pope.
“Algumas das melhores mentiras são embrulhadas em verdade.”