segunda-feira, 6 de maio de 2024

Ilha das Cobras, o paraíso proibido para os humanos

SHUTTERSTOCK Aparentemente um paraíso, esta ilha é considerada um dos lugares mais perigosos do mundo.
Paula Mateu  Nationalgeographic.pt
Esta região é o único habitat de uma das espécies de serpentes mais perigosas do planeta, actualmente em vias de extinção.

A brincadeira "O que levaria para uma ilha deserta?" torna-se complicada quando a ilha em questão é a Queimada Grande, também conhecida como Ilha das Cobras. Localizada a cerca de 35 quilómetros da costa do Brasil (no estado de São Paulo), esta ilha é, vista de longe, o sonho de um náufrago; mas depois de alguns minutos lá, esse náufrago perceberia que se algum tipo de sorte o tivesse trazido para a ilha, teria sido azar.

A Queimada Grande é um dos locais mais perigosos do mundo, devido à elevada densidade de cobras venenosas no território. A mais perigosa de todas, a Bothrops insularis, é a espécie que domina a ilha. É endémica da Queimada Grande e é considerada uma das cobras mais mortíferas do planeta.

Tanto que a Ilha das Cobras está interdita aos humanos: apenas cientistas e investigadores com autorização podem entrar. Mas... será que os humanos são mais perigosos para a ilha do que as cobras são para nós? É o que procuramos responder neste artigo.

A ILHA TEM UMA COBRA VENENOSA POR METRO QUADRADO

A Queimada Grande é uma ilha de 23 hectares que deve o seu nome às fogueiras que os antigos pescadores acendiam quando desembarcavam na ilha para afugentar as cobras. Este pequeno pedaço de terra é um dos locais com maior densidade de cobras venenosas do mundo: estima-se que exista uma por metro quadrado.

Uma lenda local diz que estes répteis foram libertados por piratas que tinham escondido o seu tesouro na ilha e que queriam ter a certeza de que ninguém poderia ter acesso a ele, mas sabemos que isto é apenas uma lenda.

A comunidade científica acredita que a origem do grande número de serpentes venenosas no território remonta a cerca de 11.000 anos. A teoria mais aceite é a de que, originalmente, a ilha da Queimada Grande – e a sua irmã de 10 hectares, Queimada Pequena – fazia parte do continente, mas que, após uma subida do nível do mar, esse pedaço de terra ficou isolado.

Suspeita-se que quando a ilha se formou, os seus principais habitantes já eram serpentes e que, na ausência de predadores que reduzissem as suas populações, os répteis puderam proliferar em abundância.

No entanto, já vimos que não são apenas muitas cobras, mas também muito venenosas. Sabe porquê?

ESTIMA-SE QUE O VENENO DESTAS SERPENTES SEJA CINCO VEZES MAIS POTENTE DO QUE O DAS SERPENTES CONTINENTAIS.
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Os investigadores acreditam que as cobras se tornaram mais venenosas como resultado de um processo evolutivo.

Quando a Queimada Grande ficou isolada do continente, as espécies que habitavam a ilha evoluíram de forma diferente das do continente. Adaptaram-se às condições do seu pequeno reino; e se não havia predadores, também não havia mamíferos predadores para se alimentarem, como os roedores.

A isto juntou-se a elevada competição por alimento causada pelo grande número de serpentes que partilhavam o habitat e, consequentemente, os répteis tiveram de melhorar o seu acesso a outras presas. Neste sentido, acredita-se que a potência do seu veneno responde a uma adaptação evolutiva para poderem caçar aves migratórias, cujo tamanho é muito superior ao das serpentes.

Assim, embora a maioria das aves tenha inicialmente conseguido escapar aos ataques destas serpentes, à medida que estas evoluíram, tornaram-se cada vez mais mortíferas para as suas presas: estima-se que o seu veneno seja cinco vezes mais potente do que o das serpentes continentais.

A Bothrops insularis, uma das serpentes mais mortíferas do planeta, é talvez o caso mais ilustrativo deste processo.

É O ÚNICO HABITAT DE UMA DAS COBRAS MAIS MORTÍFERAS DO MUNDO
A jararaca-ilhoa ou Bothrops insularis pertence à família Viperidae e é endémica da Queimada Grande, não habitando em mais nenhum outro local para além desta ilha.

Tanto a sua cor amarelada como a sua cabeça triangular são características do seu género (Bothrops), no entanto, devido às diferenças no seu processo evolutivo em relação às serpentes continentais, esta espécie apresenta algumas particularidades que não se verificam noutros parentes próximos.

A Bothrops insularis tornou-se uma grande trepadora de árvores, o que lhe deu acesso às aves migratórias e aos seus ninhos. Esta espécie também desenvolveu uma cauda mais longa, que, em princípio, a ajudaria a manobrar durante a subida.

Ao mesmo tempo, estas serpentes adquiriram a capacidade de se confundir com a vegetação da ilha, reforçando os seus hábitos diurnos e aumentando a potência do seu veneno. Além disso, ao contrário de outras serpentes que mordem a presa e depois a soltam, esta serpente mantém a presa na boca depois de a ter mordido, enquanto espera que o veneno actue. Para a ave, a fuga nunca foi tão difícil.

Os efeitos do seu veneno no ser humano incluem dores fortes, náuseas, vómitos, bolhas de sangue, hemorragias internas (no intestino, no cérebro, etc.), sangue no vómito e na urina, necrose e problemas renais. Estima-se que seja a serpente com o veneno que mata mais rapidamente do seu género, com uma taxa de letalidade de cerca de 93%.

UMA SERPENTE TEMÍVEL MAS EM VIAS DE EXTINÇÃO
Bothrops insularis

ISTOCK
Por ser o único habitat da Bothrops insularis, a espécie é muito sensível à degradação ambiental.

Em 2019, segundo estimativas do governo brasileiro, cerca de 2.000 jararacas-ilhoas habitavam a Queimada Grande, embora dados da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) estendam um pouco mais esse número e assumam que existam entre 2.000 e 2.500 Bothrops insularis.

E se o número pode parecer elevado para uma região de apenas 23 hectares (estima-se que existam entre 60 a 80 serpentes por hectare), convém lembrar que este é o único habitat da Bothrops insularis, pelo que o número que se segue não será uma grande surpresa. A espécie está em vias de extinção de acordo com a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da UICN.

A UICN identificou duas ameaças principais às populações desta serpente: a desflorestação e a caça furtiva. A particularidade da jararaca-ilhoa torna-a um espécime atractivo não só para os biólogos, mas também para os caçadores furtivos. No passado, alguns desembarcavam na ilha para se apoderarem destes répteis e depois vendê-los no mercado negro, onde os lucros podiam atingir os 30.000 dólares por exemplar.

QUEM PODE FAZER MAIS MAL? AS COBRAS AOS HUMANOS OU NÓS A ELAS?
Para além do perigo comprovado que esta ilha pode representar para qualquer pessoa que lá ponha os pés, na realidade, o decreto que levou à proibição de acesso não se referia a isso, mas sim à ameaça que a nossa espécie representa para a conservação da ilha.

No dia 5 de Novembro de 1985, o governo brasileiro declarou as ilhas da Queimada Pequena e Queimada Grande como Área de Relevante Interesse Ecológico – ARIE com o objectivo de proteger os recursos ambientais e biológicos destas ilhas.

A Bothrops insularis foi assim salvaguardada, mas também outros habitantes da Ilha das Cobras, como insectos, lagartos, aranhas, aves e outras espécies de serpentes.

Embora este decreto não proibisse per se o acesso humano a este território, estabelecia que a Secretaria Especial de Meio Ambiente poderia tomar as medidas necessárias para assegurar esta protecção e, além disso, que a destruição da biota na área constituiria uma degradação da qualidade ambiental sancionada por lei.

A EXTINÇÃO DE TODAS AS ESPÉCIES CONTA (E ISSO INCLUI AQUELAS DE QUE TEMOS MEDO)
A extinção de todas as espécies conta, pois representa uma perda insubstituível na biodiversidade do nosso planeta; e esta afirmação inclui também as espécies que nos assustam, e ainda mais se forem seres endémicos e únicos como os que habitam as ilhas.

Mas isto não é tudo. Para além disso, as serpentes venenosas têm um valor acrescentado: o potencial escondido no seu veneno para a investigação farmacológica. Diz-se frequentemente que existe um antídoto para o veneno das cobras? E é verdade! Para obter os soros, os cientistas têm tradicionalmente injectado pequenas quantidades de veneno em animais, que desenvolvem então anticorpos contra ele. E a partir de extracções nestes animais, o soro é obtido em seres humanos.

Descobriu-se também que os venenos de serpentes contêm componentes com efeitos analgésicos, anticoagulantes e anti-inflamatórios promissores, o que levou ao desenvolvimento de medicamentos. O primeiro a ser aprovado para utilização em seres humanos foi o captopril, criado a partir de compostos presentes no veneno da Bothrops jararaca, do mesmo género da lanceta dourada.

Quem sabe o que ainda temos para aprender com eles?

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