Jorge Herbert
Face a publicação de alguns documentos supostamente de entidades oficiais, mal redigidos em Português e opiniões de alguns iluminados e iletrados funcionais, senti necessidade de vir desmistificar alguns complexos guineenses…
Sendo as línguas ou dialetos, para a população geral de qualquer parte do mundo (com exceção dos linguistas), simples instrumentos de comunicação, portanto de entendimento entre as pessoas, não pode nem deve ser assumido como um barómetro de inteligência ou intelectualidade.
Há um facto inegável. Apesar de ser falado apenas por cerca de 20% da população guineense, o Português continua a ser a língua oficial da Guiné-Bissau, a língua que herdamos dos cinco séculos de colonização portuguesa. Desses 20%, arrisco empiricamente a afirmar que menos de 5% falam e escrevem corretamente a língua de Camões. Os guineenses na sua maioria optam pelo uso do crioulo como meio de comunicação nas suas rotinas diárias, sendo esse o dialecto transversal à uma grande maioria dos guineenses, seja ele Balanta, Fula, Papel, Mandinga ou outra tribo, sendo o português usado apenas nas salas de aula e nas reuniões oficiais.
A realidade sociolinguística guineense tem algumas peculiaridades, que importa aqui realçar.
A primeira peculiaridade é que a nossa língua oficial é uma língua herdada do colono que, durante a colonização, limitou o seu acesso a uns poucos que eram permitidos acederem aos empregos na administração pública e aos seus descendentes. Em suma, era permitido o acesso à língua de Camões, apenas aos “Assimilados” e, entre esses, havia uns mais e outros menos assimilados, sendo que os primeiros exigiam o uso da língua do colono, mesmo nas rotinas familiares, enquanto outros, preferiam que a família se entendesse em crioulo no seu quotidiano. O que quer dizer que, mesmo entre os “Assimilados”, existiam uns mais assimilados que outros, permitindo a alguns terem melhor domínio da língua que outros.
Aqueles cujos pais não tiveram a sorte de “atravessar a porta” da administração colonial, eram excluídos desse acesso escolar e consequentemente linguístico, independentemente de reunirem capacidades para virem a ser excelentes quadros técnicos ou superiores.
Portanto, penso ser consensual que o critério usado pelo colono no acesso `nossa atual língua oficial, não foi propriamente o mérito e a capacidade dos pais nem dos filhos dos nativos, pelo que incutiram na sociedade a ideia que, aqueles que tinham aprendido melhor os seus hábitos e costumes, principalmente a língua, eram os mais civilizados e, portanto, os superiores ou privilegiados da sociedade.
Tugas n’barca é bai, é leba alguns tugas di terra, é dissa utrus, ku bin n’contra ku santchundadi di PAIGC.
O PAIGC, o partido libertador do país e da sociedade, na sua assunção do poder, não respeitou os valores e princípios ensinados por Cabral, que a luta era para libertar todos os guineenses e que todos os guineenses teriam os mesmos direitos perante o partido e o Estado guineense. Enveredaram pela política de marginalização dos “tugas di terra ku fica”, que até essa altura eram os que asseguravam o funcionamento da máquina administrativa do país e que até seriam útil num período de transição, até o Partido/Estado conseguisse formar mais quadros. Pelo contrário, não houve qualquer política, método ou critério justo para a formação de quadros médios ou superiores, com o objetivo de ter a médio prazo uma sociedade formada e informada. Houve de facto filhos de António ou de N’Bana, mas também houve uma clara discriminação indiscriminada dos Assimilados por, segundo teoria PAIGCista, “terem comido com os tugas e não terem o direito de voltar a comer com o PAIGC”.
Face a atribuição de bolsas de estudo pelos países amigos, que resolveram apoiar a rápidae necessária formação de quadros para a Guiné-Bissau, o PAIGC, na sua saga discriminatória, selecionou os melhores destinos para atribuição das bolsas de estudo, aos filhos dos dirigentes políticos e militares (portanto, filhos do PAIGC), aos jovens da fileira da JAAC (também previamente selecionados pelo PAIGC) e aqueles que estudaram ou lecionaram na Escola-Piloto. Depois de atribuídos esses destinos aos seus selecionados, sobravam alguns destinos menos apetecíveis, para alguns alunos, “filhos de N’Bana”…
Não tendo priorizado os melhores alunos para os melhores destinos de estudo ou melhores Universidades do mundo ocidental, num período fulcral da necessidade de rápida formação de quadros competentes para o país, o PAIGC cometeu o erro estratégico, o que faz com que o partido libertador seja o único responsável pela deriva formativa do nosso país e por alguns complexos e complexados que ainda hoje digladiam na nossa sociedade.
A sociedade guineense ainda tem outra peculiaridade, que é o fato do país encontrar-se “encravado” entre países francófonos, sofrendo portanto forte influência linguística desses países, principalmente no que concerne ao comércio transfronteiriço. Essa peculiaridade é agravada pelo facto de os nossos ex-colonizadores nunca se terem preocupado em ter uma política séria de imposição e desenvolvimento da nossa língua comum, o que faz com que a língua francesa também vá marcando a sua posição na nossa sociedade….
Voltando aos critérios de seleção dos estudantes para a atribuição das Bolsas de Estudo, os descendentes PAIGCistas escolhidos para a pátria de D. Afonso Henriques muito passearam, frequentaram discotecas, comeram bacalhau e ouviram fados, sendo que muitos até tiveram direito à mais que uma bolsa de estudo, até para destinos diferentes, face às consecutivas reprovações. A maioria deles não conseguiu adquirir um diploma de qualquer das Universidades frequentadas, mas voltaram à Guiné-Bissau e tiveram a facilidade de emprego, até em lugares de destaque no aparelho do Estado, não só por serem filhos ou sobrinhos de “Djintons” como também, pelo facto de tanto comerem bacalhau, ouvirem fados e namorarem umas portuguesas, conseguiram adquirir a necessária fluência na língua de Camões que, para eles e seus progenitores que, por sinal, ate correram com os colonos, bastava para intrujar uma sociedade deficitária de quadros técnicos e superiores.
Contrariamente, houve aqueles que, tendo tido uma formação de base deficitária da língua oficial do país, tiveram que ir estudar para um país de leste ou francófono e por conseguinte não comeram tantos bacalhaus nem ouviram tantos fados e as brancas com que trocaram secreções eram russas, ucranianas, francesas ou de outras nacionalidades que não lusas. Esses quadros, mesmo tendo terminado brilhantemente os seus cursos universitários, regressaram o país e são menosprezados por aqueles novos “tugas di terra”, que acham que o domínio da língua de Camões é suficiente para se sentirem superiores e são eles que se apressam em encher a boca e afirmar que se trata da nossa língua oficial, por isso é obrigatório o seu domínio! Podem até terem sido umas nódoas nas faculdades portuguesas e europeias por onde passaram, mas porque até são fluentes no uso da língua oficial, sentem-se melhores ou até superiores a muitos que passaram pelo crivo da Universidade por onde estudaram e terminaram os seus cursos com êxito!
Reactivamente, esses quadros que se formaram nos países não lusófonos, também têm os seus complexos e reservas em relação a todos “os que vêm” de Portugal, seja ele um bom ou mau quadro.
E volto a repetir que o único culpado pela existência dessa divisão social entre os quadros guineenses, foi e continua a ser o PAIGC.
Para terminar, reforço a ideia que, a fluência numa língua, mesmo sendo ela a nossa língua oficial, nunca deve ser o principal critério para validar o conhecimento e a capacidade de um quadro, Podemos ter quadros excelentes nas suas áreas de formação, mas não serem fluentes na língua oficial, da mesma forma que podemos ter quadros paupérrimos nas suas áreas de formação mas com facilidade na articulação verbal e escrita da nossa língua oficial.
Quem não percebe isso, percebe pouco da realidade social e formativa da Guiné-Bissau.
Djitu ka tem, mas i tem k tem gora dê!
Fonte: Jorge Herbert
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