Por Cnnportugal.iol.pt, 23/06/2024
Durante cerca de 50 anos, a comunidade científica tem-se debatido com um problema substancial: não existe matéria visível suficiente no universo.
Toda a matéria que conseguimos ver – estrelas, planetas, poeira cósmica e tudo o que existe entre eles – não serve para explicar a razão pela qual o universo se comporta como comporta, e deveria haver cinco vezes mais matéria disponível para dar sentido às observações dos investigadores, de acordo com a NASA. Os cientistas chamam a isso matéria negra, porque não interage com a luz e é invisível.
Nos anos 1970, os astrónomos norte-americanos Vera Rubin e W. Kent Ford confirmaram a existência da matéria negra ao observarem as estrelas que orbitavam nos limites das galáxias em espiral. Repararam que estas estrelas se moviam demasiado depressa para se manterem unidas pela matéria visível da galáxia e a sua gravidade – em vez disso, deveriam estar a afastar-se. A única explicação era uma quantidade grande de matéria não-visível, que mantinha a galáxia unida.
“O que se vê numa galáxia em espiral”, disse Rubin na altura, “não é o que se obtém”. O seu trabalho baseou-se numa hipótese formulada nos anos 1930 pelo astrónomo suíço Fritz Zwicky e deu início à busca pela substância fugidia.
Desde então, os cientistas têm estado a tentar observar diretamente a matéria negra e até construíram enormes aparelhos para a detetar – até agora sem sorte.
Nos primórdios da sua investigação, o renomado físico britânico Stephen Hawking postulou que a matéria negra poderia esconder-se nos buracos negros – o principal objeto do seu trabalho – que se formaram durante o big bang.
“Foi realmente uma agradável surpresa desse ponto de vista”, diz David Kaiser, um dos autores do estudo.
“Estávamos a usar os famosos cálculos de Stephen Hawking sobre buracos negros, especialmente o seu importante resultado sobre a radiação que os buracos negros emitem”, explica Kaiser. “Estes buracos negros exóticos emergem da tentativa de resolver o problema da matéria negra – são um subproduto da explicação da matéria negra.”
O primeiro quintilionésimo de segundo
Os cientistas têm feito muitas suposições sobre o que a matéria negra poderá ser, desde partículas desconhecidas a dimensões extra. Mas a teoria dos buracos negros de Hawking só recentemente entrou em ação.
“As pessoas não a levaram realmente a sério até há cerca de uns 10 anos”, diz a coautora do estudo Elba Alonso-Monsalve, estudante do MIT. “E isso deve-se ao facto de os buracos negros terem em tempos parecido evasivos – no início do século XX, as pessoas achavam que eram apenas um facto divertido da matemática, nada que envolvesse a física.”
Hoje sabemos que quase todas as galáxias têm no seu centro um buraco negro e a descoberta de investigadores em 2015 sobre as ondas gravitacionais de Einstein criadas por buracos negros que colidem – uma descoberta histórica – torna claro que eles estão por todo o lado.
“Na verdade, o universo está repleto de buracos negros”, diz Alonso-Monsalve. “Mas a partícula de matéria negra não foi descoberta, apesar de as pessoas terem procurado em todos os locais onde achavam que podiam encontrá-la. Isto não quer dizer que a matéria negra não é uma partícula, ou que corresponda de certeza a buracos negros. Mas agora, os buracos negros como candidatos a matéria negra são levados muito mais a sério.”
Outros estudos recentes já confirmaram a validade da hipótese de Hawking, mas o trabalho de Alonso-Monsalve e de Kaiser, respetivamente uma professora de Física e o professor Germeshausen de História da Ciência no MIT, vai mais longe e analisa exatamente o que aconteceu quando os buracos negros primordiais se formaram.
O estudo, publicado a 6 de junho na revista especializada Physical Review Letters, revela que estes buracos negros têm de ter aparecido no primeiro quintilionésimo de segundo do big bang: “Isto é mesmo muito cedo e muito antes do momento em que se formaram os protões e os neutrões, as partículas de que tudo é composto”, diz Alonso-Monsalve.
No nosso mundo quotidiano, não podemos encontrar protões nem neutrões separados, adianta, e eles agem como partículas elementares. Contudo, sabemos que não o são, porque são compostos por partículas ainda mais pequenas chamadas quarks, que estão unidas por outras partículas chamadas gluões.
“Não é possível encontrar quarks e gluões sozinhos e à solta no universo neste momento, porque ainda é demasiado frio”, acrescenta Alonso-Monsalve. “Mas no início do big bang, quando tudo estava muito quente, podiam encontrar-se sozinhos e livres. Portanto os buracos negros primordiais formaram-se ao absorverem quarks e gluões livres.”
Tal formação torná-los-ia fundamentalmente diferentes dos buracos negros astrofísicos que os cientistas normalmente observam no universo, que resultam diretamente de estrelas que colapsam entre si. Para além disso, um buraco negro primordial seria muito mais pequeno – apenas a massa de um asteróide, em média, condensada no volume de um átomo apenas. Mas se um número suficiente destes buracos negros primordiais não se evaporarou no início do big bang e sobreviveu até aos dias de hoje, isso poderia explicar toda ou a maior parte da matéria negra.
Uma assinatura duradoura
De acordo com o estudo, durante a formação dos buracos negros primordiais, outro tipo de buraco negro nunca antes visto deverá ter-se formado como uma espécie de subproduto. Estes seriam ainda mais pequenos – correspondendo apenas à massa de um rinoceronte condensada em menos do que o volume de um único protão.
Devido ao seu diminuto tamanho, estes buracos negros minúsculos teriam sido capazes de captar uma propriedade rara e exótica da sopa de quarks-gluões em que se formaram, chamada “carga de cor”. Trata-se de um estado de carga que é exclusivo dos quarks e dos gluões, nunca encontrados em objetos comuns, diz Kaiser.
Esta carga de cor torná-los-ia únicos entre os buracos negros, que normalmente não têm qualquer tipo de carga. “É inevitável que estes pequenos buracos negros se tenham formado também, como um subproduto [da formação dos buracos negros primordiais]”, diz Alonso-Monsalve, “mas já não existiriam hoje, pois já se teriam evaporado.”
Ainda assim, se ainda existissem apenas dez milionésimos de segundos após o big bang, quando os protões e os neutrões se formaram, poderiam ter deixado assinaturas observáveis ao alterarem o equilíbrio entre os dois tipos de partículas.
"O equilíbrio entre o número de protões e o número de neutrões produzidos é muito delicado e depende das outras coisas que existiam no Universo nessa altura”, acrescenta Alonso-Monsalve. “Se estes buracos negros com carga colorida ainda existissem, poderiam ter alterado o equilíbrio entre protões e neutrões [a favor de uns ou de outros], o suficiente para que, nos anos seguintes, o pudéssemos medir."
A medição poderia ser feita com recurso a telescópios terrestres ou por instrumentos sensíveis em satélites em órbita, diz Kaiser. Mas pode haver outra forma de confirmar a existência destes buracos negros exóticos, acrescenta.
"A formação de uma população de buracos negros é um processo muito violento que provocaria enormes ondulações no espaço-tempo circundante. Estas seriam atenuadas ao longo da história cósmica, mas não até zero", explica Kaiser. "A próxima geração de detectores gravitacionais poderá vislumbrar os buracos negros de pequena massa – um estado exótico da matéria que foi um subproduto inesperado dos buracos negros mais mundanos que poderiam explicar a atual matéria negra."
Muitas formas de matéria negra
O que significa isto para as experiências em curso que estão a tentar detetar a matéria negra, como a Experiência LZ Dark Matter no Dakota do Sul?
"A ideia de que existem novas partículas exóticas continua a ser uma hipótese interessante", diz Kaiser. "Há outros tipos de grandes experiências, algumas das quais estão em construção, que procuram formas sofisticadas de detetar ondas gravitacionais. E essas experiências podem, de facto, captar alguns dos sinais dispersos do processo de formação muito violento dos buracos negros primordiais."
Há também a possibilidade de os buracos negros primordiais serem apenas uma fração da matéria negra, acrescenta Alonso-Monsalve. "Não tem de ser tudo a mesma coisa", diz. "Há cinco vezes mais matéria negra do que matéria normal, e a matéria normal é formada por uma série de partículas diferentes. Então, porque é que a matéria negra tem de ser um único tipo de objeto?"
Os buracos negros primordiais voltaram a ganhar popularidade com a descoberta das ondas gravitacionais, mas não se sabe muito sobre a sua formação, indica Nico Cappelluti, professor assistente do Departamento de Física da Universidade de Miami, que não esteve envolvido no estudo.
"Este trabalho é uma opção interessante e viável para explicar a elusiva matéria negra", diz Cappelluti.
O estudo é empolgante e propõe um novo mecanismo de formação para a primeira geração de buracos negros, adianta Priyamvada Natarajan, professora Joseph S. e Sophia S. Fruton de Astronomia e Física na Universidade de Yale, que também não esteve envolvida no estudo.
"Todo o hidrogénio e hélio que temos hoje no nosso universo foram criados nos primeiros três minutos [do big bang] e, se um número suficiente destes buracos negros primordiais estivesse presente até então, teriam tido impacto nesse processo e esses efeitos poderiam ser detetáveis", indica Natarajan.
"O facto de se tratar de uma hipótese observacionalmente testável é o que considero realmente emocionante, para além do facto de isto sugerir que a natureza provavelmente cria buracos negros desde os tempos mais remotos através de múltiplas vias."
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