Sergey Lavrov (Associated Press)
Declaração do ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, pode ser entendida como "desinformação para justificar o que é injustificável". Mas também pode significar algo mais - e mais perigoso. Embaixadores e um ex-ministro da Defesa de Portugal ouvidos pela CNN fazem a análise
Foi o primeiro encontro entre ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia e da Rússia desde o início da guerra: decorreu esta quinta-feira na Turquia e não resultou em qualquer desenvolvimento diplomático, mas uma frase dita pelo ministro russo Serguei Lavrov no final da cimeira ficou a pairar: “Não estamos a planear atacar outros países. Também não atacámos a Ucrânia”. Mas como olham os países vizinhos da Federação Russa para estas palavras?
“É óbvio que os países vizinhos interpretam essas declarações como uma ameaça”, considera o embaixador Martins da Cruz, que reforça que as palavras de Lavrov vão no sentido de reforçar a narrativa do Kremlin de que nunca houve um ataque à Ucrânia, apenas “a defesa dos dois pseudo-Estados que proclamaram a independência. No entanto, o embaixador divide os países vizinhos da Rússia em dois: os que pertencem à NATO e os que não pertencem, como a Moldova ou a Geórgia. “Os que são da NATO sentem-se, apesar de tudo, protegidos. Já os países que não são da NATO pensarão que, se um dia virem entrar as tropas russas, Moscovo vai dizer que não se trata de um ataque, mas sim de uma operação de defesa de minorias”.
Para o embaixador António Monteiro, estas declarações não constituem uma ameaça ao Ocidente, mas sim uma continuação da narrativa de Moscovo desde o início da invasão da Ucrânia – de que isto não é um ataque. “Não creio que seja uma ameaça. O que me parece que está a dizer é que não se trata de uma invasão, mas de uma entrada militar para proteger os interesses russos na Ucrânia. É desinformação para justificar o que é injustificável”, explicou. Estas declarações podem ser interpretadas também como “uma maneira de tranquilizar” os restantes países, sobretudo a ONU, acrescenta o também antigo ministro dos Negócios Estrangeiros. Ou seja, “estão a dizer que esta ação é limitada à Ucrânia e que não atacarão mais nada”. Mas, para o diplomata, estas declarações não passam de “manobras para disfarçar uma guerra, uma invasão absolutamente injustificada”.
Para o ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes, a questão trata-se de “um finca-pé da Rússia” acerca da “denominação jurídica desta invasão” que o Kremlin insiste não se tratar de uma guerra. Azeredo Lopes aponta mesmo que o discurso de Lavrov foi muito voltado para defesa dos povos da região do Donbass, que a Rússia diz “serem vítima de genocídio”. “O problema da Rússia é que isto faria algum sentido se fosse rápido e resolvido em dois ou três dias. Quantos mais dias passam, mais a Rússia fica enfiada na lama e mais agressiva fica.”
E, segundo o ex-ministro da Defesa, é neste momento em que o processo se torna mais perigoso. “Estas declarações têm de ser vistas com muito cuidado e nenhum triunfalismo. Zelensky tem dado mais provas de sabedoria do que algumas pessoas neste aspeto. Este é um momento muito delicado: há um país que sabe que está condenado, aí é que é preciso ter algum cuidado e pode tornar-se mais imprevisível.”
Diplomacia de consumo interno
A mensagem de Lavrov no final do encontro com Kuleba foi “seguramente feita para consumo interno”, defende Martins da Cruz, que não exclui que algumas das perguntas feitas por jornalistas russos na conferência de imprensa tenham sido combinadas. No entanto, o embaixador relembra que “os discursos para dentro” não são exclusivos da política russa e que muitos dos principais atores ocidentais estão a preparar-se para ir a eleições.
“Aliás, se nós virmos bem, muitas das intervenções, não só dos russos mas também de americanos e até de europeus, são para dentro, para as opiniões públicas internas. Não se esqueça que na América há eleições intercalares para o congresso e para o senado em novembro. Em França estamos em plena campanha eleitoral e o senhor Macron quer ser eleito já em abril. Na Alemanha, o chanceler Scholz sucedeu a 16 anos de Merkel e tem de se afirmar perante a opinião pública dele. O senhor Boris Johnson tem de fazer esquecer as festas em Downing Street, que quase provocaram a sua queda. Todos estão a fazer discursos para dentro.”
O embaixador acrescenta ainda que a Rússia foi à Turquia com uma intenção clara em mente: “Fazer com que estas negociações não resultassem”. O objetivo da delegação russa, argumenta, era mostrar abertura para a negociação, mas impondo condições de tal forma exigentes que o outro lado não pudesse aceitar.
Por outro lado, Martins da Cruz acredita que “nós assistimos a alguma predisposição para cedências da Ucrânia” quando disse estar disposta a considerar a situação dos cidadãos ucranianos nas repúblicas do Donbass e da Crimeia. “A Ucrânia está a dar sinais mais fortes do que a Rússia de que está disposta a negociar. O nível de destruição e o número de refugiados da Ucrânia já é de tal maneira grande que o senhor Zelensky tem de pensar muito bem quando é que vai içar a bandeira branca porque senão no futuro pode vir a ser acusado de ser intransigente e de ser um dos que estão a provocar o genocídio do seu povo”, refere. “É óbvio que a última fase deste processo diplomático será feito entre a Rússia e os Estados Unidos. Aliás, acredito que, nesta fase, exista já uma linha direta de diálogo entre russos e americanos.”
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RÚSSIA/UCRÂNIA: TV estatal russa está a informar que Rússia está a salvar ucranianos
© DIMITAR DILKOFF/AFP via Getty Images
Notícias ao Minuto 11/03/22
A televisão estatal da Rússia está a informar os telespetadores de que as tropas russas estão na Ucrânia para salvar as pessoas de "neonazis" e desarmar aquele país, de acordo com uma investigação da agência de notícias AP.
As reportagens da televisão dizem também que pessoas em toda a Rússia estão a apoiar o que o Kremlin chama de "operação militar especial" na Ucrânia, formando filas de carros, nos quais exibem as bandeiras tricolores (branco, azul e vermelho) russas.
Ou os cidadãos se juntam em pátios e formam uma grande letra 'Z' - até aconteceu com crianças com doenças terminais -, que se tornou um símbolo dos militares russos. Ou se reúnem em parques de estacionamento, cantando: "Nós não abandonamos os nossos".
Crianças com doenças terminais obrigadas a fazer propaganda para Putin |
Um pivot do canal estatal Rússia 24 citou os nomes das cidades que realizam essas manifestações. "Petropavlovsk-Kamchatsky, Chelyabinsk, Yekaterinburg, Stavropol, Tula - manifestações em massa em apoio à operação especial ocorreram nestas e em muitas outras cidades em todo o país", assinalou.
Noutro bloco informativo não muito diferente, um repórter adiantou que os motoristas têm colado "as letras 'Z' e 'V', retratadas em viaturas militares russas, nos seus carros em manifestações espontâneas [...] em todas as cidades" do país, como "sinal de solidariedade, apoio e orgulho pela coragem dos soldados russos".
Demorou vários dias após o início da invasão de 24 de fevereiro para a Rússia preparar a campanha que descreve o que diz ser um amplo apoio público ao ataque que já matou milhares de soldados e civis na Ucrânia e forçou mais de dois milhões a deixarem o país.
Analistas políticos dizem que os russos estão de facto a unir-se em torno da pátria, mas a grande questão é quanto tempo esse apoio vai durar face às sanções do Ocidente incapacitantes e da deterioração das condições de vida, ou se vai acabar por traduzir-se num maior apoio ao Presidente da Rússia, Vladimir Putin.
"Um número significativo de russos percebe [...] como a Rússia se encontra num grande desafio e, nessas condições, não deve fazer frente às autoridades", disse à AP a fundadora do think-tank R.Politikl, Tatyana Stanovaya.
Na tentativa de controlar a narrativa, o Kremlin bloqueou a maioria dos meios de comunicação social independentes russos e forçou os restantes a pararem a cobertura da guerra, com ameaças de acusação e prisão por reportagens que se desviam do critério oficial.
A cadeia de televisão RT anunciou que estava a vender camisolas com a letra "Z" para apoiar as tropas russas.
Autoridades e a televisão do Estado insistem que os soldados russos têm como alvo apenas instalações militares na Ucrânia, culpando quaisquer ataques a civis ao que chamam de "neonazis" no Governo de Kiev, apesar de o chefe de Estado ucraniano, Volodymyr Zelensky, ser judeu.
Para o investigador sénior do Programa Rússia e Eurásia da Chatham House Nikolai Petrov, com fontes de informação independentes canceladas, é mais fácil para os russos acreditarem na retórica do Kremlin.
"É um conforto psicológico para as pessoas. Elas não querem pensar que o seu líder é um criminoso e que está a cometer crimes de guerra. Elas estão mais confortáveis a pensar que o seu Exército vai resgatar alguém do nazismo", disse.
O Kremlin usa há muitos anos a vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazi na Segunda Guerra Mundial como forma de reforçar o sentimento patriótico e tentou aproveitá-lo ao usar a ideia do "neonazismo" como uma ameaça da Ucrânia.
"Sangue, suor, destruição.... Os russos apoiam Putin, mas, devido à gravidade da situação, não há uma mobilização tão incrível como houve em 2014 [durante a anexação da Crimeia pela Rússia]", disse o analista do Carnegie Moscow Center Andrei Kolesnikov.
Nikolai Petrov observou ainda que o apoio ao Kremlin pode diminuir, sabendo que a economia sofre com as sanções ocidentais.
Economistas previram a escassez de bens, preços altos e possível incumprimento de crédito.
"É claro e inevitável que o clima vai mudar. [...] Acho que Putin tem um período de tempo bastante limitado para declarar vitória e trazer o Exército de volta", apontou Nikolai Petrov.