terça-feira, 11 de julho de 2017

Dezenas de milhares de crianças talibé alvo de abusos no Senegal

Dezenas de milhares de crianças talibé no Senegal continuam a ser obrigadas a pedir nas ruas e a serem alvo de abusos por parte de várias escolas corânicas tradicionais, denuncia-se hoje num relatório de várias instituições internacionais.


No documento, elaborado conjuntamente pelas organizações Human Rights Watch (HRW) e Plataforma para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos (PPDH, coligação de várias instituições senegalesas), é lembrado que o Governo senegalês aprovou legislação para combater estas práticas há um ano, mas "com pouco sucesso".

O relatório, de 40 páginas e intitulado "Continuo a Ver os Talibés a Pedir: O Fracasso do Programa Governamental para Proteger as Crianças Talibé no Senegal", analisa os êxitos e os fracassos do primeiro ano de aplicação da medida, destinada a retirar as crianças da rua.

Por outro lado, documenta os constantes abusos de que foram alvo as crianças talibé em Dacar e noutras quatro regiões do Senegal durante o primeiro ano de vigência do programa governamental, em que foram detetados casos de violência, abusos físicos e sexuais, de jovens acorrentados em locais escondidos e imposição forçada de peditórios.

As duas organizações destacam também o desafio que tem estado em curso para levar os responsáveis pelas violações à Justiça.

"Enquanto se dá um passo na direção certa, o programa do Senegal para retirar as crianças das ruas pouco foi capaz de fazer face aos números alarmantes de crianças talibé exploradas, abusadas e negligenciadas todos os dias", sublinhou a diretora associada do Departamento África da HRW, Corinne Dufka.

As crianças talibé que são exploradas pelas escolas corânicas, também conhecidas como madrassas, são difíceis de encontrar, prossegue-se no relatório, que dá conta do caso de um jovem, "com oito ou nove anos", que conseguiu escapar aos marabutos (professores da escola corânica).

"Pedíamos dinheiro e arroz nas ruas. O marabuto exigia-nos 400 Francos CFA/dia (0,60 euros/dia). Às quartas-feiras exigiam-nos 500 francos CFA (0,76 euros) para pagar a renda e a eletricidade. Se não conseguíssemos esse dinheiro, ou não recitássemos os versos (do Alcorão), o marabuto batia-nos", contou o jovem.

Em todo o Senegal estima-se que existam cerca de 50 mil crianças talibé a residir nas escolas corânicas e que são forçadas diariamente pelos seus professores a pedirem dinheiro, arroz ou açúcar nas ruas, vivendo em condições de extrema pobreza e, em muitos casos, sujeitas a abusos físicos e psicológicos.

Segundo o relatório, nem todas as escolas corânicas estão nestas circunstâncias, havendo inúmeras em que os marabutos respeitam os direitos das crianças a seu cuidado.

O programa governamental, iniciado em junho de 2016, começou com o retirar as crianças da rua, que alcançou algum sucesso. Até março deste ano, foram retiradas 1.547 crianças das ruas em Dacar, tendo centenas delas conseguido regressar às suas famílias.

Contudo, mais de mil das crianças identificadas como talibé foram devolvidas aos cuidados dos mesmos marabutos das madrassas a que pertenciam, lê-se no documento, com o Governo a evitar quaisquer investigações oficiais aos envolvidos no processo, bem como às condições de vida dos jovens.

"O Estado nunca verificou se as crianças são colocadas ou recolocadas numa boa escola corânica ou não. Algumas delas não têm quaisquer condições e as crianças dormem no chão. Há doenças, não há água nem latrinas. E, apesar de todas estas condições, as crianças continuam nas ruas a pedir", salientou o imã Elimame Diagné, presidente do Coletivo para a Modernização das Escolas Corânicas, instituição que integra a PPDH.

O relatório denuncia, por outro lado, que, desde o início do programa governamental, a HRW documentou as mortes de duas crianças talibé, aparentemente como resultado de abusos dos marabutos, cinco casos de abuso sexual por parte de marabutos ou de assistentes e 28 casos de violência, acorrentamento ou prisão nas escolas corânicas.

"O Governo (senegalês) tem de garantir que qualquer das crianças retiradas das ruas não regresse a uma escola corânica que tenha registos de violações aos direitos das crianças", exigem as duas organizações.

"Temos de parar com a exploração e abuso das crianças talibé, o setor mais vulnerável da população. Chegou a altura de pôr fim a esta violação em massa dos direitos das crianças no Senegal, que continua à vista de todos. Somos todos responsáveis. Todos temos a obrigação de agir coletivamente, com o Estado na linha da frente", concluiu Mamadou Wane, presidente da PPDH.

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