Por cnnportugal.iol.pt
O futuro das comunicações está a ser moldado por uma constelação de satélites que não conhece fronteiras – e por um homem que decide onde e quando a ligação é permitida. Elon Musk domina 62% do mercado e tem planos para muito mais. "Dezenas de países, exércitos e populações estão a ficar dependentes desta tecnologia. O que acontece se Musk fechar a torneira?"
Milhões assistiam, mas poucos faziam ideia de que estavam a observar o começo de uma revolução. Era o ano de 2015 e a SpaceX, de Elon Musk, acabava de fazer história ao aterrar um foguetão pela primeira vez. Quatro anos depois, em 2019, esse mesmo modelo de foguetão, o Falcon 9, transportava para a órbita da terra os primeiros satélites do programa Starlink com uma promessa ambiciosa: levar internet de alta velocidade a qualquer canto do planeta. Hoje é muito mais do que isso. Para uns representa uma nova esperança de acesso ao mundo, para outros é uma questão de vida ou morte. E isso está a deixar muita gente nervosa, um pouco por todo o mundo. E o perigo da dependência é real, com os especialistas a alertarem que países inteiros correm “um risco muito elevado” de ficar reféns da empresa de um homem que tem mais de metade dos satélites em órbita e acaba de entrar no círculo restrito da política americana.
“É motivo para o mundo ficar preocupado, incluindo para nós na Europa. O que é que acontece a uma sociedade se decidir investir tudo em Elon Musk? É dar o poder a um indivíduo de cortar o sinal a uma nação com quem ele não concorda politicamente. Hoje ele luta pela nossa causa e amanhã pode lutar por outra causa”, alerta o especialista em cibersegurança Nuno Mateus-Coelho, em entrevista à CNN Portugal.
É difícil minimizar a velocidade a que o domínio espacial de Elon Musk se está a fazer sentir. Menos de cinco anos depois de ter lançado o primeiro satélite para o espaço, a SpaceX colocou em órbita mais sete mil satélites, dez vezes mais do que o seu principal rival, dominando 62% do mercado. Estes satélites enviam um sinal de internet de alta velocidade para os terminais em terra. Em média, a empresa avaliada em 255 mil milhões de dólares envia para o espaço três satélites por dia e já opera em 102 países. Mas não quer ficar por aqui. O plano de Musk antevê o envio de 42 mil satélites de baixa órbita nos próximos anos para completar a rede, estando os competidores a uma distância considerável.
Nos corredores de Bruxelas o receio tornou-se palpável. Principalmente após a recente explosão de influência política do dono da SpaceX nos Estados Unidos. Elon Musk, o homem mais rico do mundo, tornou-se um dos principais doadores financeiros da campanha de Donald Trump e acabou por ser nomeado pelo candidato republicano para chefiar um novo corpo do governo destinado a “limpar” as regulações americanas: o Departamento para a Eficiência Governamental.
Só que esta combinação de poder político com um monopólio da economia espacial que depende de contratos bilionários com a NASA está a fazer com que muitos na Europa temam que o bilionário venha a ter poderes comparados ao de um país. Ao mesmo tempo que a proximidade a Trump, a quem Elon Musk doou mais de 134 milhões de euros para a sua campanha, levanta questões acerca de um possível conflito de interesses que pode resultar num círculo vicioso de favores políticos e vantagens regulatórias, os especialistas alertam para o perigo da rede Starlink ser utilizada como ferramenta de política externa americana, prejudicando países rivais ou críticos.
“O futuro mostra que a tecnologia de comunicações mais robusta é a de satélite. Só que isso tem perigos e um deles é entregar tanto poder para as mãos de uma só pessoa, que passa a ter o poder de bloquear o acesso a uma nação inteira. Dezenas de países, exércitos e populações estão a ficar dependentes desta tecnologia. O que acontece se Musk fechar a torneira?”, questiona o especialista em cibersegurança Nuno Mateus-Coelho.
|
Um foguete SpaceX Falcon 9 que transporta a missão Starlink 4-20 é lançado do Complexo de Lançamento Espacial 40, no Centro Espacial Kennedy da NASA em Cabo Canaveral, Florida, em 4 de setembro de 2022 (Getty Images) |
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, no dia 24 de fevereiro de 2022, o exército de Moscovo conseguiu interferir com sucesso na rede de comunicação dos militares ucranianos, após um gigantesco ciberataque contra o satélite da Viasat utilizado por Kiev. Sem comunicações, qualquer coordenação militar era impossível e a Ucrânia corria o risco de cair. A situação era dramática e o ministro da Transformação Digital ucraniano, Mykhailo Fedorov, recorreu à rede social X, também propriedade de Musk, para pedir ajuda à SpaceX. A resposta de Musk foi rápida e uma lufada de esperança para a luta ucraniana. “O Starlink está agora ativo na Ucrânia. Mais terminais a caminho”, respondeu o empresário. Desde então, mais de 42 mil terminais Starlink foram enviados para a Ucrânia para ajudar no esforço de guerra, desempenhando um papel fundamental para os soldados ucranianos.
A tecnologia de satélites de baixa órbita demonstrou ser bastante resiliente em contexto de guerra. Frustrados com a incapacidade de quebrar as comunicações ucranianas, o exército russo começou a tentar interferir diretamente com os satélites americanos recorrendo a equipamentos cada vez mais fortes e sofisticados. Só que o elevado número de satélites que formam a constelação da Starlink tornam este serviço bastante capaz de resistir a interferência. Quando um satélite individual é interrompido, o terminal em terra conecta-se de imediato com outro satélite da rede.
E o receio de que Elon Musk possa utilizar o monopólio que criou para influenciar os destinos de países inteiros revelou-se durante a guerra na Ucrânia. O empresário restringiu pessoalmente a capacidade da Ucrânia de aceder à rede do Starlink para desempenhar operações militares que considerava perigosas e que podiam escalar o conflito. O principal caso aconteceu em 2023, quando o empresário decidiu recusar um pedido de urgência para a Ucrânia conseguir operar na península ocupada da Crimeia, que tinha como objetivo atacar com drones navais uma aglomeração de navios militares da frota do Mar Negro. Musk terá dito aos líderes ucranianos que o ataque, que descreveu como “um mini Pearl Harbor”, ia “longe demais” e poderia causar “uma derrota estratégica” do Kremlin, podendo levar a uma forte retaliação.
Mais tarde, durante a contraofensiva ucraniana que recuperou uma vasta quantidade de território na região de Kharkiv, outra medida tomada por Elon Musk foi paga com vidas de soldados ucranianos. Isto porque Musk decidiu impor um sistema de geofencing que limitava o acesso do Starlink aos locais ocupados pelos militares ucranianos. Isso acabou por fazer com que, à medida que as unidades mais avançadas do exército ucraniano progrediam, ficavam completamente sem acesso à rede de comunicação. Estas restrições só são possíveis porque a SpaceX tem acesso à localização, movimento e altitude de todos os seus terminais. O contacto só foi reposto depois da intervenção do ministro Mikhailo Fedorov, que pediu para que o serviço fosse reposto.
“Elon Musk não pode ser odiado pelo problema que criou na Crimeia, até porque quem salvou a Ucrânia no início da guerra foi ele. Esta dependência cria riscos, mas, neste momento, não há alternativa”, diz à CNN Portugal o major-general Arnaut Moreira, especialista em geoestratégia, que recentemente publicou o trabalho "Desafios Tecnológicos à Segurança no Sec XXI" no centro de estudos EuroDefense.
Apesar de ter protestado, a Ucrânia pouco pode fazer. Elon Musk tem a última palavra. Só que o coro de críticas cresceu quando se tornou público que o empresário manteve contacto regular por telefone com o presidente russo durante os últimos dois anos. Numa dessas conversas, Vladimir Putin terá apelado ao dono da SpaceX para que não ativasse a cobertura da rede Starlink no arquipélago de Taiwan, de forma a não provocar o aliado russo, Xi Jinping. Durante meses, o governo de Taiwan tentou obter acesso a este serviço, mas sem sucesso.
|
Uma antena Starlink coberta com uma rede de camuflagem no local de uma unidade das Forças Armadas da Ucrânia na região de Donetsk, Ucrânia, dezembro de 2022 (Maxym Marusenko/NurPhoto via Getty Images) |
Só que para o arquipélago, que convive com a constante ameaça iminente de um bloqueio naval da China, uma rede de satélites de baixa órbita pode ser ainda mais crucial do que para a Ucrânia. Pequim reclama a soberania de Taiwan e prometeu anexar este território, até mesmo pela via militar. A liderança militar taiwanesa teme que, em caso de invasão, os cabos subaquáticos que fornecem as comunicações ao arquipélago sejam um dos primeiros alvos de Pequim, deixando a ilha às escuras. Em resposta à intransigência de Musk, que tem na China a maior fábrica de outra das suas empresas, o governo de Taipé optou por construir a sua própria rede de satélites.
Só que o domínio da SpaceX, particularmente no campo do transporte de foguetões reutilizáveis, fez com que a empresa reduzisse drasticamente o preço por lançamento. Mesmo as empresas que tentam competir pelo mercado dos satélites de órbita baixa são obrigadas a recorrer ao serviço de lançamento da SpaceX. Além disso, existem poucas pessoas que conseguem competir com a capacidade de Elon Musk em financiar o projeto da SpaceX através de outras empresas como a Tesla, X, Neuralink ou a Boring Company, que juntas fazem dele o homem mais rico do mundo e lhe dão uma avaliação em bolsa de 323 mil milhões de dólares.
“É preocupante existir uma cobertura espacial com uma dimensão tão grande. Quando falamos destes valores, a capacidade de outras empresas aparecerem e competirem neste mercado reduz-se significativamente. O domínio absoluto do mercado vai dificultar muito a entrada de novas empresas”, avisa o major-general Arnaut Moreira.
As únicas alternativas estão a ser encontradas a nível estatal ou em parcerias com os privados. Um desses casos é o da SpaceSail, uma tentativa chinesa de rivalizar com a empresa americana. Sediada em Xangai e lançada em 2023, conta apenas com 36 satélites em órbita, embora o objetivo seja chegar aos 15 mil até 2030. Em novembro, o governo brasileiro assinou um acordo de cooperação com esta empresa para diminuir a dependência da Starlink, com quem o executivo de Lula da Silva tem cultivado uma relação difícil.
Mas esta alternativa não agrada a todos. Na União Europeia, a China é cada vez mais um rival estratégico e a ideia de trocar a dependência de um sistema privado norte-americano por uma empresa estatal chinesa não é vista com bons olhos. Não só as comunicações europeias por satélite poderiam ficar reféns dos objetivos geopolíticos chineses, como poderiam deixar entreaberto um alçapão a todas as comunicações militares, políticas e económicas que utilizassem essa rede. Um raciocínio semelhante levou praticamente todos os países europeus a colocar fortes restrições sobre os fabricantes chineses nos equipamentos da tecnologia 5G. Só que a opção de não contar com o apoio de uma rede de satélites de baixa órbita, a operar a uma altitude entre os 340 e os 1.200 km da terra, também coloca sérios riscos de segurança aos países da União Europeia numa altura crítica.
No final de novembro, duas ligações cruciais de cabos submarinos que ligam a Suécia à Lituânia e a Alemanha à Finlândia foram deliberadamente cortadas naquilo que os investigadores consideram ter sido um ato de sabotagem russo. Quando os navios militares da NATO chegaram ao local detetaram a presença de um navio cargueiro chinês, que tinha partido de um porto russo e estava a operar com sistema de identificação desligado, e que demonstrava sinais de ter utilizado a âncora da embarcação para prender os cabos e danificá-los. De acordo com as autoridades, o navio arrastou a infraestrutura durante mais de 160 quilómetros.
Em Portugal, por exemplo, este cenário seria particularmente dramático. Nas águas nacionais passam 14 cabos submarinos, incluindo o maior do mundo. O seu corte pode fazer com que centenas de milhares de casas fiquem sem Internet, telemóveis sem redes sociais, hospitais deixem de operar e economias entrem em crise profunda. E existem indícios de que este cenário pode estar em cima da mesa. O chefe do Estado Maior da Armada, o almirante Gouveia e Melo, admitiu que dezenas de navios espiões estão a estudar estas ligações. E o próprio vice-presidente do Conselho de Segurança russo Dmitry Medvedev garante que a Rússia não terá “constrangimentos morais” em destruir cabos de comunicação “inimigos”.
Este panorama, só veio reforçar na Europa a ideia de que é necessário um sistema alternativo, mais robusto a este tipo de interferências. A solução encontrada para quebrar a dependência da rede de Elon Musk é a IRIS² (Infrastructure for Resilience, Interconnectivity and Security by Satellite). Este projeto de 6 mil milhões de euros conta fazer o primeiro lançamento em 2025 e, em 2027, espera ter lançado 170 satélites de baixa órbita. O serviço pretende fornecer aos Estados-membros ligações seguras para uso militar e internet “em todo o lado, incluindo nas regiões mais recônditas da UE e de África”. Mas, acima de tudo, deve permitir “mantê-la em caso de crash das infraestruturas terrestres”.
|
Foguetão não reutilizável Ariane 6 da Agência Espacial Europeia, antes do seu primeiro lançamento. DR |
Ainda assim, este projeto não aproxima a União Europeia de uma tecnologia fundamental para tornar a indústria espacial lucrativa: a capacidade de reutilizar foguetões após o lançamento. Antes de Elon Musk aparecer, a União Europeia dominava o mercado de lançamentos espaciais. Só que a decisão da Agência Espacial Europeia de não desenvolver tecnologia de foguetões reutilizáveis fez com que a Europa perdesse a sua vantagem. Agora, o velho continente corre atrás do prejuízo, com os planos para criar o Ariane Next, um foguete reutilizável capaz de rivalizar com a tecnologia da SpaceX. “É o nosso Falcon 9”, sugeriu o então ministro da Economia francês, Bruno Le Maire. O objetivo do projeto é reduzir os custos para metade, só que este sistema só deve estar pronto depois de 2030, mais de uma década depois do primeiro sucesso do Falcon 9.
"Na Europa não temos nada igual. É utopia dizer que em 2027, com o lançamento dos primeiros satélites, vamos estar perto de competir. É preciso infraestrutura para criar a infraestrutura. Os resultados só serão visíveis a partir de 2030, mas por essa altura a SpaceX terá mais do dobro do que tem hoje”, sublinha Nuno Mateus Coelho.