Por CNN, 08/02/2024
À semelhança de Mark Twain, Grigory Rodchenkov, o russo que denunciou uma rede de doping, afirma que as notícias sobre a sua morte foram muito exageradas.
"Na imprensa russa está escrito que fui morto, mas estou vivo e a trabalhar arduamente", disse recentemente Rodchenkov, que está sob proteção do FBI, numa entrevista à CNN.
Uma vez que se encontra no programa de proteção de testemunhas do FBI, Rodchenkov, de 65 anos, confirma a sua identidade - "Sim, sou Grigory Rodchenkov" - com o seu sotaque russo caraterístico, através de uma chamada telefónica estabelecida pelo seu advogado, Jim Walden.
Personagem principal do documentário da Netflix Icarus, vencedor de um Óscar, Rodchenkov foi o mentor do programa de dopagem patrocinado pelo Estado russo que beneficiou mais de mil atletas entre 2011 e 2015.
As alegações de Rodchenkov constituíram a base do Relatório McLaren de 2016, que concluiu que a Rússia conspirou com atletas e dirigentes desportivos para levar a cabo um programa de dopagem sem precedentes na sua escala e ambição, num "encobrimento sistemático e centralizado". Rodchenkov também disse que recebeu ordens para ocultar o uso de drogas dos medalhistas de Sochi 2014, onde se realizaram os Jogos Olímpicos de Inverno.
Mas tudo mudou em 2015, quando Rodchenkov disse que fugiu da Rússia para os EUA depois de receber um aviso de que teria a vida em perigo.
A Rússia tem negado sistematicamente as alegações de Rodchenkov, que é também o antigo chefe do laboratório antidopagem de Moscovo, e tem tentado desacreditá-lo continuamente.
Isto apesar de o Comité Olímpico Internacional (COI) ter apoiado as provas de Rodchenkov, descrevendo-o como "uma testemunha verdadeira".
Em julho de 2016, o presidente russo Vladimir Putin apelidou Rodchenkov de "homem com uma reputação escandalosa", enquanto o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, descreveu as alegações do denunciante como "difamação por um desertor", acrescentando que "não confiaria neste tipo de declarações infundadas".
O governo russo também afirmou que Rodchenkov tinha dado pessoalmente drogas aos atletas, que alegadamente não sabiam que estavam a tomar substâncias proibidas.
Símbolos de assassínio e violação
Os Jogos Olímpicos de Paris estão a aproximar-se rapidamente. Em dezembro de 2023, após meses de especulação, o COI anunciou que os atletas russos e bielorrussos que se qualificaram para Paris 2024 poderão competir como Atletas Individuais Neutros (AIN), desde que cumpram determinados requisitos, tendo em conta a guerra que a Rússia está a travar contra a Ucrânia com o apoio da Bielorrússia.
Rodchenkov disse à CNN que "a bandeira e os hinos russos estão a ser usados para a competição": "A bandeira e os hinos russos tornaram-se símbolos de assassínio e violação - deviam ser banidos dos Jogos [Olímpicos] para sempre", afirma, descrevendo a guerra como "impensável" e "incivilizada".
Quando a CNN concedeu um direito de resposta, nem o COI nem o Comité Olímpico Russo responderam aos comentários de Rodchenkov.
Desde a invasão russa da Ucrânia em 2022, os investigadores ucranianos registaram vários casos de violência sexual no antigo Estado soviético, incluindo violações às mãos de soldados russos que, segundo eles, estão a utilizar esses crimes como arma de guerra.
O subúrbio ucraniano de Bucha também se tornou um sinónimo de crimes de guerra, com relatos de bombardeamentos indiscriminados e execuções que realçam as atrocidades da ocupação russa.
"Não há dúvida de que, se o COI quiser ter alguma credibilidade, deve bani-los [os atletas russos] por 10 anos, nem mais nem menos", afirma Rodchenkov.
Atualmente, dos 4.600 atletas de todo o mundo que se qualificaram para Paris 2024, apenas 11 vão atuar com estatuto AIN - seis com passaporte russo e cinco com passaporte bielorrusso.
O COI mantém condições de elegibilidade rigorosas para os AIN que se qualificam para os Jogos Olímpicos de 2024; os atletas que apoiam ativamente a guerra contra a Ucrânia não podem competir, nem os que são contratados pelas forças armadas do seu país ou pelas agências de segurança nacional.
As equipas de atletas com passaporte russo ou bielorrusso não serão consideradas.
Um dos princípios fundamentais da Carta Olímpica é que o "Movimento Olímpico deve aplicar a neutralidade política". O COI não quer ver atletas individuais punidos pelas acções dos seus governos.
As federações desportivas internacionais são as primeiras a decidir se os atletas russos e bielorrussos podem sequer tentar qualificar-se para os Jogos Olímpicos.
Mas não é assim tão simples. Apesar da decisão do COI de autorizar os atletas russos e bielorrussos a competir como AIN, a World Athletics manteve a proibição, o que significa que nenhum cidadão russo ou bielorrusso poderá participar num dos espectáculos mais populares dos Jogos - o atletismo, que reúne as provas mais importantes - em Paris.
Ele "não se leva muito a sério"
Apesar de viver sob a proteção do FBI, o advogado de Rodchenkov, Walden, disse à CNN que o seu cliente "não se leva muito a sério", mesmo que esteja "sob muito stress". "Raramente, ou nunca, deixa isso transparecer".
De acordo com Walden, Rodchenkov é uma "pessoa intelectualmente muito curiosa" e "encontra sempre coisas que lhe interessam e coisas para fazer, apesar do facto de estar [...] num ambiente bastante fechado".
O denunciante disse que escreveu um segundo livro intitulado "Doping. Páginas Proibidas", que será publicado ainda este ano.
O livro utilizará os diários que Rodchenkov começou a escrever quando era adolescente, na década de 1970. Desde então, tem escrito um diário por ano e diz que conseguiu levar alguns diários consigo quando deixou a Rússia em 2015.
Desde então, Walden garante que foi possível trazer mais diários para os EUA, embora não tenha entrado em pormenores sobre a forma como foram retirados da Rússia.
Quando as pessoas começarem a ir para a prisão, a corrupção vai diminuir
O maior legado de Rodchenkov será provavelmente as ações que empreendeu enquanto denunciante de casos de dopagem e a questão da batota no desporto continua a ser uma grande preocupação.
Numa entrevista à BBC há quase seis anos, Rodchenkov afirmou que "as federações desportivas internacionais são os maiores problemas no controlo da dopagem".
Rodchenkov afirmou que defende "corajosamente" estes comentários.
"Várias federações continuam a evitar a deteção e recusam-se mesmo a investigar a fundo os atletas que apresentam irregularidades nos seus parâmetros sanguíneos, o chamado passaporte biológico", refere Rodchenkov.
"Não está a ser feito. Por exemplo, se os esquiadores e patinadores russos com passaportes sanguíneos anormais tivessem sido totalmente investigados, teriam sido banidos dos Jogos Olímpicos", acrescenta, dizendo ainda que "a corrupção é generalizada", pelo que o "levantamento de pesos e o atletismo são dois problemas constantes".
É por isso que Rodchenkov é um defensor de um castigo mais severo.
"A única forma de acabar com isto é processar os organizadores ao abrigo da Lei Anti-Doping de Rodchenkov. Quando as pessoas começarem a ir para a cadeia, a corrupção diminuirá", afirma.
A Lei Anti-Doping Rodchenkov, que recebeu o nome do denunciante, permite aos EUA impor sanções penais a indivíduos envolvidos em atividades de dopagem em eventos internacionais em que um ou mais atletas americanos (e três ou mais outros atletas) competem e que são patrocinados por uma empresa americana ou o evento recebe dinheiro do direito de transmissão comercial nos EUA.
A competição deve também ser regida pelo código da Agência Mundial Antidopagem (AMA).
"O COI e o sistema CAS [Tribunal Arbitral do Desporto] não podem acabar com o problema, e não acabaram com o problema. Desta forma, tornaram-se parte do problema", diz Rodchenkov, apontando que "o recurso ao direito civil não é suficiente - é preciso recorrer ao direito penal".
O COI não respondeu ao pedido de comentário da CNN, enquanto o diretor-geral do CAS, Matthieu Reeb, afirmou: "O CAS gere os casos de arbitragem e aplica os regulamentos antidoping estabelecidos pelos organismos desportivos (questões de direito civil).
"Os aspetos criminais do doping e da corrupção permanecem sob a jurisdição de cada Estado individual (direito público), com a consequência de que a mesma ofensa pode levar a sanções diferentes (ou nenhuma sanção) dependendo do Estado em questão."
Em dezembro de 2019, a AMA proibiu a Rússia de participar em grandes competições desportivas internacionais durante quatro anos devido à não conformidade com a dopagem.
Mas um ano mais tarde, depois de a Rússia ter recorrido ao CAS, a proibição inicial de quatro anos foi reduzida para metade.
Começar a pôr pessoas na prisão
Em maio de 2023, Eric Lira, do Texas, declarou-se culpado de envolvimento no fornecimento de drogas proibidas para melhorar o desempenho a atletas olímpicos antes dos Jogos de Tóquio em 2021.
Lira é a primeira pessoa a ser acusada e condenada ao abrigo da Lei Anti-Doping Rodchenkov.
"Quando houver pessoas como Eric Lira, que agora vai pelo menos enfrentar uma pena de prisão pelas suas atividades durante os Jogos de Tóquio, [...] as pessoas vão pensar duas vezes antes de tentarem participar nestas conspirações", reflete Walden.
Entretanto, em dezembro de 2023, dois treinadores de atletismo - o jamaicano Dewayne Barrett e o liberiano O'Neil Wright - foram acusados ao abrigo da Lei Anti-Doping de Rodchenkov por alegadamente terem obtido e distribuído vários medicamentos para melhorar o desempenho antes dos Jogos Olímpicos de Tóquio.
A dupla - ambos antigos velocistas de elite - terá fornecido drogas proibidas para melhorar o desempenho a pelo menos três atletas que representavam a Nigéria, a Suíça e o Reino Unido.
O advogado de Barrett disse à CNN que não queria comentar, enquanto os advogados de Wright não aproveitaram a oportunidade para falar.