Com 47 mandatos o PAIGC venceu as últimas eleições parlamentares guineenses, realizadas no passado dia 10 de março de corrente ano. Era uma vitória comemorável, mas um pouco amarga. Era uma maioria relativa, quando o partido falava em uma maioria absoluta, se não conseguisse a qualificada. Teria sido uma arrogância ou estratégia política dos libertadores perspectivar uma maioria qualificada quando os próprios vinham de um processo de sangramento político resultante duma profunda crise interna e que culminou com a dissidência/expulsão de 15 figurões do partido? Diga-se de passagem, um sangramento mal aproveitado pelos renovadores. Na tese do partido, a disciplina havia-se triunfado sobre a indisciplina e os personalismos. E no discurso daqueles que fundariam o Madem G-15 e que em menos de 9 meses conseguiriam a façanha de arrecadar 27 assentos no parlamento, não passariam de vítimas de um emergente leviatã que se propunha a centralizar o partido em torno de si e de seu círculo político. Ambas as narrativas nutriram a crise, desde pelo menos 2015. Os resultados eleitorais revelaram que ao Madem G-15 a considerável parte do eleitor deu razão, mesmo tendo sido o PAIGC interpretado pela maioria (maioria relativa) dos guineenses como vítima da crise e o mais preparado para governar. Essa foi a leitura da maioria dos citadinos da capital.
Como eu disse aos leitores do Jornal O Democrata em outras ocasiões, para o pleito, o PAIGC tinha uma narrativa, um discurso difícil de se desarmar e este se fortaleceu mais ainda quando o Presidente da República mostrou-se incapaz de coabitar com governo liderado pelo primeiro mandatário dos independentistas ou ministrado por qualquer um que este escolhesse para o efeito. A lambança presidencial de internacionalizar a crise e sua exploração política pelo partido que patrocinou a chegada de JOMAV ao palácio em 2014, concedeu de vez a musculatura à narrativa que levou o PAIGC à vitória. Aliás, essa relação de “puxa-estica” política dos últimos 4 anos não rendeu politicamente nada ao PRS, pelo contrário, este jogou um papel contraproducente daquilo que deveria constituir os interesses da própria legenda. Em várias ocasiões escrevi e comentei que o discurso de fator de estabilidade governativa e que justificava o ingresso do PRS em todos os governos era um equívoco político, senão uma falácia de quem queria governar com todos se olvidando de sua essência enquanto um policy seeking party, e não um office seeking party. A postura ambígua e contraditória do PRS foi severamente penalizada, especialmente na capital Bissau. Doravante, ou o partido se refunda das cinzas ou se pulveriza. Volto a esse ponto.
O discurso de disciplina logrou alguma legitimidade, mas não suficiente (vide as 27 cadeiras do G-15). Já o discurso de recuperação de mandato retirado pelo primeiro mandatário da nação e entregue à oposição e aos “amigos” foi, ipsis litteris, compreendido como tal pelo votante de Bissau. Essa narrativa deu ao PAIGC os 47 mandatos – 16, só na capital. Noutras regiões do país, esse discurso não se sustentou muito, muito menos a narrativa de disciplina – ou seja, do fortalecimento da institucionalidade partidária. Acredito que no interior do país tenha havido uma contra narrativa forte do Madem a esse “slogan”. Por agora não adentro no mérito da eventual estratégia utilizada por este último.
Por outro lado, a ligação do mandatário ou mensageiro político de JOMAV ao PRS produziu efeito bumerangue, como eu havia assinalado antes das eleições. Os renovadores abraçaram a um Botché desacreditado politicamente, tendo em conta a sua história de recorrente metamorfose partidária e, mais recentemente, sua desvinculação do PAIGC e associação ao presidente JOMAV (uma figura desgastada). Embora tenha ocorrido também em Bafatá, a penalização do PRS por se aliar ao “leão de Leste” foi sentida mais em Bissau – reduto eleitoral onde o eleitor tem adquirido cada vez mais uma percepção crítica e sofisticada do cenário político do país e dos players que nele jogam. Associado a tudo isso, o partido fundado por Koumba Yalá não conseguiu apresentar o seu futuro chefe de governo ao eleitor, o que deixava transparecer, primeiro, a inaptidão para governar e, segundo, as clivagens nas suas estruturas, panorama sustentado pelas recorrentes especulações de isolamento no partido de algumas figuras de peso. Nomes como Florentino Mendes Pereira, Artur Sanhá, Sori Djaló, entre outros, eram citados com frequência como os mais descontentados e descontentes com o andar da carruagem de agremiação de milho e arroz. Alberto Nambeia seria, conforme mandam os estatutos do partido, o futuro primeiro-ministro em caso de vitória. Um calcanhar de Aquilis dos renovadores na concepção de bissauenses.
O PAIGC explorou esse cenário, colando estrategicamente o nome de seu futuro primeiro-ministro em uma campanha para eleições legislativas, não presidenciais. Por contar com um enorme capital político acumulado, o nome de Domingos Simões Pereira era apresentado em contraposição ao nome de Alberto Nambeia, presidente de seu principal rival político. Nambeia, um dos pioneiros do PRS, visto como um paladino de paz, não apresentava atributos acadêmicos e técnicos suficientes em uma sociedade cada vez mais exigente. Sua associação a Botché Candé ampliou a imagem de uma frente dos menos ou não preparados contra aquela liderada por Simões Pereira, ex-secretário executivo da CPLP. O cabeça de lista de Madem G-15, Braima Camará, conseguiu reduzir esse abismo no que toca à interpretação dos votantes em relação à distancia de preparo entre os principais nomes do pleito. Não em Bissau. Em Bissau a disparidade era gritante. No interior, vários fatores, que podem merecer uma outra análise, deixaram parelhada a disputa.
Se o cabeça de lista era um outro nome menos badalado, talvez o PAIGC não chegasse a esses números. Mas também com o DSP não se passou dos 47. Maioria Relativa que lhe fez urgente e religiosamente implorar por um acordo com o APU-PDGB, UM e PND que lhe possibilitasse ter 54 cadeiras. Uma maioria absoluta apertada. Aliás, apertadíssima. Com 54 parlamentares, o partido vê, a priori, limitações para a aprovação de diplomas mais ambiciosos e de grandes reformas, mormente aqueles que requerem maioria absoluta qualificada. Volto a esse ponto para concluir a presente abordagem.
O APU-PDGB de Nuno Gomes Nabiam, que obteve 5 mandatos, números abaixo das expectativas, mas muito importantes para viabilizar a governação, resolveu costurar uma coligação com o PAIGC, como também podia o fazer com o PRS e o Madem G-15 – não faltaram ofertas e propostas para isso, evidentemente. Sem entrar no mérito de o PAIGC ter chegado ou não a tempo para apresentar sua proposta, o mais importante é analisar as possíveis implicações dessa coligação em conformidade com a nova configuração parlamentar.
Vejo a escolha de APU-PDGB como reflexo da concepção de um partido que interpreta o PAIGC, nesse momento e a curto prazo, como não seu adversário político direto. A médio prazo, mais precisamente a longo prazo, se o partido liderado por Nuno Nabiam se consolidar, passará a ver o PAIGC como adversário imediato. A coligação com o partido vencedor e não com o segundo e terceiro colocados é para colocar na oposição os dois, especialmente o PRS (com quem disputou o mesmo eleitorado), tentando se consolidar e disputar a condição de segunda força partidária, saindo em vantagem nos próximos embates. Se não houver nenhuma mudança radical, o PRS terá que suportar ficar fora dos gabinetes por quatro anos. Tarefa muito difícil, mas não impossível.
Sem trocadilho, o renovadores, como nunca, devem se renovar. Reestruturar a sua cúpula e criar um fato novo capaz de permitir com que o pedido de benefício de dúvida ao seu eleitorado seja atendido. Se isso não acontecer – acredito que ocorrerá – o partido se estagnará, para não dizer que se apequenará ainda mais ao longo dos próximos quatro anos. Após a realização do citado trabalho de casa, será normativo e politicamente produtivo os renovadores fazerem uma oposição responsável, o que passaria primeiramente pela capacidade de controlar o curral de parlamentares, para que de lá não haja fuga de deputados para se associar a bancada governista. Em sintonia com o Madem G-15, o êxito político pode ser logrado através de uma oposição responsável, mas também rigorosa e séria. A responsabilidade seria votar a favor de aprovação de programa e orçamento de governo que tomará posse nos próximos dias. Do ponto de vista do exercício político de oposição, penso que é possível que os dois partidos desgastem o governo, como mandam os clássicos manuais da política, na prossecução de seus mais importantes diplomas por aprovar – sobretudo aqueles cuja aprovação requererá maioria qualificada.
O governo que será empossado entrará em execução tendo que administrar a coligação e governar: duas missões. Desgastantes. A iniciativa do PAIGC de protocolar e depositar o acordo de coligação junto das instâncias internacionais governamentais expressa uma tentativa de comprometer seus pares junto destas, como forma de os constranger em um eventual ensaio de desembarque do governo. É uma tentativa plausível e útil, entretanto não suficiente. Em política, o princípio “rebus sic stantibus” ainda tem seu lugar. Penso que os independentistas terão que falar baixo aos seus pares da coligação e fazer cedências, mas também é possível que o PAIGC tente cooptar parlamentares do PRS e, até mesmo, do Madem G-15. Mas o recíproco também é verdadeiro e exequível. Sobretudo do Madem G-15 aos parlamentares do PAIGC – seria difícil devido à tônica da disciplina implementada, mas não completamente descartável. É possível também constatarmos migração de mandatários da nação do PRS para APU-PDGB, o que tenderá a ser um pouco mais difícil caso o devido trabalho de casa recomendado for feito pelo PRS. Um novo PRS.
Por: Timóteo Saba M’bunde, Mestre em Ciência Política.
OdemocrataGB
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