Por CNN ENTREVISTA || Os países da Europa Ocidental até podem estar esquecidos, mas "a Europa de Leste lembra-se": foi a UE que deu o maior passo "em direção a uma comunidade assente nos ideais de Kant, num mundo ainda governado por Maquiavel", e "não devemos ficar ofendidos por ainda não vivermos numa república kantiana, temos, sim, de aprender a jogar o jogo de Maquiavel". É o que defende Małgorzata Zachara-Szymańska, especialista em Relações Internacionais sediada em Cracóvia. Em entrevista à CNN, critica o facto de "continuarmos em busca de grandes visões, reformas instantâneas ou soluções rápidas", quando hoje mais do que nunca "temos de nos desligar da cultura da gratificação imediata"
A UE enfrenta dois grandes desafios imediatos no contexto da segunda presidência Trump: por um lado, uma guerra comercial pendente e o que pode ou não fazer para impedir que Washington aplique mais tarifas às suas exportações; por outro, o futuro da NATO e tudo o que isso envolve, dos gastos com defesa ao destacamento de tropas dos EUA na Europa. O que é que a Polónia pode ensinar ao resto dos Estados-membros nestas duas frentes?
A Polónia segue o princípio de que, se não se pode mudar as circunstâncias desfavoráveis, então é preciso procurar oportunidades dentro delas. Tanto a roleta tarifária como a posição hesitante dos Estados Unidos em relação à NATO obrigaram a Europa a reavaliar a sua posição – é o início de uma procura de oportunidades. Uma maior “europeização” da aliança no futuro poderia permitir aos países europeus negociar a partir de uma posição mais forte. O aumento das despesas com a Defesa não tem de significar militarização, algo de que a Europa tem justificadamente medo. Trata-se de uma estratégia de dissuasão.
Olhando para a guerra tarifária em pausa, qual diria que deve ser a resposta da UE?
No que toca a respostas à guerra comercial, não existe uma estratégia polaca distinta. As tarifas foram impostas (e, mais tarde, suspensas) à UE como um todo, e a Polónia aborda-as como parte de uma resposta coletiva. Mas a mensagem do primeiro-ministro polaco [Donald Tusk] sobre o assunto é clara: “Não estamos em pânico, mas estamos a preparar-nos bem para as potenciais consequências destas tarifas”.
E o que significa isso na prática?
Que temos de estar preparados, expandir a rede de parcerias e deixar claro a Donald Trump que as suas tentativas de forçar a mão dos aliados europeus vêm com um custo. Um custo pago pelas empresas e os consumidores americanos – e, em última instância, um custo político para o próprio Trump.
Isso liga à ideia que destaca neste seu artigo: confrontada com grandes mudanças na chamada “ordem mundial do pós-guerra”, e dado que não tem como travar Trump, a UE tem de fazer uma escolha – ou concentra energias na resistência à erosão da diplomacia ou implementa uma estratégia de controlo de danos…
O primeiro-ministro polaco também é conhecido por outra frase reveladora: “Não podemos ofender-nos com a realidade.” É uma chamada de atenção para o facto de que, embora possamos não gostar da forma como a aliança transatlântica está a ser manchada, fingir que não está a acontecer não é uma opção. O pragmatismo, e não a indignação, deve guiar a nossa reação. O que pode diferenciar um pouco a perspetiva polaca da dos principais países da Europa Ocidental é uma maior consciência dos pontos fortes da União Europeia.
Bolseira Jean Monet no European University Institute, Małgorzata Zachara-Szymańska é professora do departamento de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Jagiellonian, em Cracóvia, na Polónia foto: DROs europeus ocidentais tendem a concentrar-se sobretudo nas crises internas, o que se traduz em instabilidade política nos seus sistemas individuais. Poucos se lembram da enorme e positiva transformação que a União Europeia trouxe à forma como pensamos o mundo e as regras que o governam. A Europa de Leste lembra-se. Foi a UE que deu o maior passo em direção a uma comunidade assente em ideais kantianos, num mundo ainda governado por Maquiavel. Não devemos ficar ofendidos pelo facto de ainda não vivermos numa república kantiana; temos, sim, de aprender a jogar o jogo de Maquiavel – lentamente, de forma consistente e, por vezes, meticulosa – para ganhar em sucessivas frentes.
E quanto à NATO? É uma frente sobre a qual a Polónia pode ter mais sabedoria a partilhar…
A questão é que, sem segurança, poucas outras coisas são possíveis. Se os Estados Unidos deixarem de ser o garante da segurança, os outros Estados-membros têm de se concentrar na forma de garantir essa segurança pelos nossos próprios meios. Neste momento, não existe qualquer hipótese realista de os Estados Unidos abandonarem a NATO – seria necessária uma maioria de dois terços no Senado [norte-americano]. Mas qualquer mecanismo de segurança coletiva só funciona quando os seus Estados-membros são unânimes no seu objetivo.
Como podemos garantir essa unidade com esta administração americana?
Atualmente, a forma mais rápida de garantir essa unidade é através dos compromissos de despesa com a Defesa assumidos pelos países europeus. É crucial não enquadrar este passo como “militarização”, mas antes como “dissuasão”. Ninguém quer produzir mais munições ou tanques só por produzir – isso seria muito “pouco kantiano” e atrasaria a transição verde. Mas se a Rússia produz 4,5 milhões de munições por ano, enquanto a Europa – mesmo depois de ter duplicado a sua produção – conseguiu apenas um milhão de munições em 2024, a mensagem que estamos a enviar à Rússia é clara: a Europa é fraca, descartável e a sua influência pode ser reduzida.
Diz que “a chave para o progresso da Polónia” desde a queda do comunismo tem sido a sua "capacidade de navegar habilmente no espaço transatlântico”. Quais os principais pontos dessa estratégia a nível interno e como podem ser transferidos para a esfera da UE considerando as atuais tensões e divisões dentro do próprio bloco?
A UE tem de se redefinir porque o ambiente externo mudou radicalmente. Tem de escolher as suas batalhas – não pode fazer tudo ou brilhar em todos os domínios. A Europa está dividida? Sim. Está agora, esteve no passado e estará no futuro. Faz parte do acordo. Quando há 27 músicos numa orquestra sem maestro, cada um a querer tocar a sua própria melodia, é irrealista esperar uma harmonia perfeita. Mas temos de deixar de tratar estas divisões como ameaças existenciais ao projeto europeu – ao fazê-lo, corremos o risco de transformar esse medo numa profecia auto-realizável.
"Quando há 27 músicos numa orquestra sem maestro, cada um querendo tocar a sua própria melodia, é irrealista esperar uma harmonia perfeita. Mas temos de deixar de tratar estas divisões como ameaças existenciais ao projeto europeu" foto: Geert Vanden Wijngaert/APEntão o que devemos fazer?
Há objetivos estratégicos com os quais todos os Estados-Membros concordam: desenvolvimento económico e coesão social. Este é um valor extraordinário que a UE traz para o mundo. É preciso abrandar o capitalismo desenfreado – e os Estados europeus, mais do que quaisquer outros, têm experiência em equilibrar o crescimento económico com a responsabilidade social. Os objetivos ambientais devem ser alcançados a nível mundial. E, mais uma vez, a Europa lidera com as ideias mais ousadas e os conhecimentos mais profundos.
Sim, o sistema internacional está a mudar. Mas há espaço para uma nova liderança. O que é frequentemente referido como “o efeito Bruxelas” – a capacidade da Europa para moldar as normas globais através da regulamentação – continua a ser tão relevante neste mundo pós-americano quanto sempre foi. Os períodos de transição são caóticos e, em tempos de caos, os Estados e as organizações procuram desesperadamente normas. E a UE sabe como moldar normas.
Quão eficaz pode ser essa posição no contexto atual? Posto de outra forma: como pode a UE concentrar-se nas normas que mais precisam de ser moldadas e em que devemos investir?
No meu curso “Ordem Internacional e Desenvolvimento”, digo sempre aos alunos que não é por acaso que os estudos sobre desenvolvimento são agrupados com os estudos sobre a paz – a paz é uma condição prévia para o desenvolvimento. É compreensível que os países da Europa Ocidental e do Sul deem prioridade à aceleração do crescimento económico. No entanto, apesar da menor perceção de ameaça da Rússia nestas regiões, a guerra híbrida russa e as campanhas de desinformação estão também a desestabilizar os seus sistemas políticos.
Um objetivo político importante para a Europa é combater os efeitos das alterações climáticas. Investigações mostram que, quando as questões climáticas são enquadradas numa narrativa de segurança, sobem na agenda política, aumentando as hipóteses de uma ação significativa. As despesas com a segurança não têm de ser um cenário de uma coisa ou outra. O sucesso da Polónia em termos de desenvolvimento é a prova disso.
De que forma?
A Polónia tem tido capacidade de reforçar as capacidades de defesa sem ter de comprometer os seus objetivos de desenvolvimento. Tem um sistema de ensino público bem desenvolvido, uma rede de cuidados de saúde eficiente e continua a ser um país seguro – embora não excessivamente securitizado. A componente das alterações climáticas ainda precisa de grandes melhorias. Mas, como escrevi num outro artigo: temos de escolher as nossas batalhas.
A Polónia escolheu a segurança e o desenvolvimento – e isso tem dado resultados. Basta ver a reportagem de capa da revista The Economist esta semana: desde 1995, o rendimento por pessoa mais do que triplicou. Desde que aderiu à UE, em 2004, a Polónia nunca conheceu uma recessão, à exceção de um breve período no auge do confinamento provocado pela Covid-19. Durante estas duas décadas, o crescimento médio anual da Polónia foi de quase 4%.
Saída da II Guerra Mundial como um Estado-satélite da URSS, e após aguentar décadas de opressão, a Polónia transformou-se no que a Economist diz ser a "potência militar e económica mais negligenciada da Europa" na atualidade, com um exército maior do que o da Grã-Bretanha, de França ou da Alemanha e "padrões de vida ajustados ao poder de compra que estão prestes a eclipsar os do Japão" foto: Omar Marques/Anadolu Agency via Getty ImagesGostava de pegar na analogia de John C. Hulsman e A. Wess Mitchell em “The Godfather Doctrine: A Foreign Policy Parable”. Nesse livro de 2009, os autores comparam a Polónia ao padeiro Enzo, personagem leal e estável que monta guarda à família Corleone no filme de 1972, sendo os EUA Don Vito Corleone, um homem ferido que tenta manter a sua influência enquanto os seus filhos lutam para salvar o poder da família. Cita esta alegoria no seu artigo, levantando uma questão que gostava de lhe colocar de volta: a Europa deve aproveitar este momento para entrar em confronto com os EUA ou "deve assegurar os recursos possíveis de uma superpotência em declínio para se reforçar no contexto das suas próprias vulnerabilidades"? Dada a posição das peças no atual xadrez geopolítico, qual deve ser a próxima jogada da UE?
A confrontação é dispendiosa e destrutiva – especialmente se não estivermos em posição de vencer. E a Europa não está em posição de ganhar – nem uma guerra comercial, nem uma guerra militar. Envolver-se em qualquer forma de confronto só prejudicaria a UE, porque qualquer potencial adversário – sejam os Estados Unidos, a Rússia, a China ou os grandes gigantes da tecnologia – jogará o jogo da divisão da Europa. E é provável que consigam dividi-la. Em vez disso, a Europa deveria concentrar-se no jogo que melhor conhece: o trabalho lento, responsável e reconhecidamente pouco glamouroso de construir, peça por peça, um continente que as pessoas de todo o mundo invoquem se lhes perguntarem: “Se tivesse de viver e pagar impostos noutro lugar, onde seria?” É esse o grande potencial da UE, um potencial que ainda está por explorar.
Como pode esse potencial ser explorado?
O nosso problema em descrever a realidade política é que continuamos em busca de grandes visões, reformas instantâneas ou soluções rápidas. Para criar o espaço mental adequado para encontrar soluções, temos de nos desligar da cultura da gratificação imediata. A política não tem a ver com reuniões que são manchete ou dramas pessoais de curta duração que dominam o ciclo de notícias durante duas semanas e depois são esquecidos. É por isso que também devemos falar de “libertar o potencial da Europa” em termos de processos a longo prazo e não de acontecimentos isolados.
Como europeus, somos de facto muito hábeis a negociar tensões e a ultrapassar animosidades históricas. Vivemos perto uns dos outros, mantemo-nos em contacto e partilhamos uma grande quantidade de conhecimentos tácitos que podemos trocar entre nós. Se pegarmos na governação digital da Estónia, na literacia mediática da Finlândia, na ética de trabalho da Alemanha ou da Polónia e combinarmos tudo isso com o amor italiano e português pela beleza – e houver verdadeiramente uma troca desses pontos fortes – a Europa continuará a tornar-se um lugar melhor para viver. E isso, fundamentalmente, é política. Mas para que isso aconteça, as pessoas precisam de se sentir seguras. E, atualmente, muitas não se sentem seguras, não só por causa da guerra na Ucrânia.
E como é que se dá resposta a esse sentimento de insegurança?
Neutralizamos este sentimento de ameaça reconstruindo a confiança nas instituições e investindo no capital social. Se é possível? Absolutamente. Temos estado a fazer isso há muito tempo, e sabemos como fazê-lo. Se vai acontecer da noite para o dia? Não. Mas se mudarmos a nossa atenção para o jogo de longo prazo, isto vai tornar-se a nossa política do dia-a-dia, em vez dos dramas das redes sociais. E aí faremos também disso uma profecia auto-realizável.
O centrista Rafal Trzaskowski (na foto) obteve 31,3% dos votos na primeira volta das presidenciais polacas há uma semana, vencendo por pouco Karol Nawrocki (29,5%), o candidato apoiado pela direita populista do PiS. Para Zachara-Szymańska, a primeira votação trouxe consigo dois alertas, um para o atual governo de Donald Tusk, o outro para uma UE que tem de prestar atenção à desinformação e às câmaras de eco na internet. A segunda volta tem lugar daqui a uma semana foto: EPAEstamos entre as duas voltas das presidenciais na Polónia. Após oito anos com o partido nacionalista conservador Lei e Justiça (PiS) no poder, entre 2015 e 2023, um governo que assumiu uma postura mais combativa em relação a Bruxelas e a Berlim, a Coligação Cívica lidera agora o executivo polaco e o seu candidato presidencial, Rafał Trzaskowski, acaba de se apurar para a segunda volta, disputada a 1 de junho. O que podem os polacos e o resto dos europeus esperar destas presidenciais?
Se o candidato democrático Rafał Trzaskowski perder, isso significará que a grande mobilização de 2023 – que retirou o PiS do poder – terá sido efetivamente anulada. O sistema político ficará ainda mais desestabilizado, o país entrará numa espiral de conflitos e lutas de poder desnecessárias, desperdiçando tempo, energia e potencial. Mas, ainda assim, a Polónia sente-se reconfortada por um facto crucial: os seus objetivos estratégicos continuam firmemente definidos. Os polacos querem fazer parte da União Europeia, e nem mesmo oito anos de retórica nacionalista e anti-UE [do PiS] mudaram isso. Também querem segurança e podemos esperar que esse rumo se mantenha firme, mesmo tendo Karol Nawrocki [do PiS] como Presidente.
Se o candidato da coligação democrática ganhar as eleições, isso enviará um sinal poderoso ao resto da Europa: de que o populismo, o extremismo e o radicalismo – forças com que outros países também se debatem – podem ser persistentes, mas podem ser contidos, podem ser relegados para segundo plano. Nesse cenário, é provável que a relação da Polónia com a UE se torne mais harmoniosa, assente no respeito mútuo. Os resultados da primeira volta das eleições serviram como um sinal de aviso para o governo – um sinal de que deve acelerar reformas, especialmente no que diz respeito ao restabelecimento do Estado de direito e à expansão das liberdades civis.
No caso recente das presidenciais repetidas na Roménia, como com o referendo sobre a adesão da Moldova à UE e até as recentes legislativas antecipadas em Portugal, têm sido noticiadas redes de desinformação e contas falsas nas redes sociais com impacto direto nos plebiscitos. Há pouco também falava do uso da desinformação pela Rússia, que afeta não apenas os países que estão mais próximos dela geograficamente. De que forma está esse assunto a ser abordado na Polónia agora que a votação presidencial está em curso?
Muito bem visto. A desinformação e as câmaras de eco são algo em que temos de nos concentrar quando reforçamos a resiliência da sociedade. Para responder à sua pergunta: na Polónia, não tem havido um debate público sério sobre a interferência russa no processo eleitoral, apesar do conhecimento generalizado da penetração russa na infosfera polaca. Os resultados da primeira volta podem servir de alerta. Grzegorz Braun, um candidato claramente pró-russo, abertamente xenófobo, antissemita e anti-ucraniano, ficou em quarto lugar com mais de um milhão de votos.
Este é um sinal de alarme. Se será ouvido – só o tempo o dirá.