Noutros países da África Ocidental os geradores são um problema ambiental. Na Guiné-Bissau não. Apenas 5,1% da população tem dinheiro para ter um gerador. |
Num país onde a natureza é o maior tesouro, a utilização de energia limpa, do sol, é o modelo a replicar, dizem especialistas de várias áreas. O governo, porém, parece não ouvir. A cerca de cem quilómetros, quer desmatar uma floresta protegida para construir uma central termoelétrica, colocando em risco a maior reserva de água doce do país.
São seis da tarde e o sol desaparece em Bambadinca. Ao longe, um homem avança por uma picada de terra vermelha. Vai de chinelos e veste uma buba azul-bebé. O tecido largo flutua-lhe em volta como um pedaço de céu soprado, um rasgo de luz agora que a penumbra começa a espalhar-se sobre as pessoas e animais, sobre os autocarros apinhados, a confusão de táxis e carroças, motos e vendedoras de fritos, sobre as nuvens de pó e música, o troar dos motores e todo o vaivém de crianças e adultos no comércio de beira de estrada.
A 120 quilómetros de Bissau, Bambadinca é uma vila com oito mil pessoas no cruzamento entre uma estrada de alcatrão esburacado e uma estrada de terra batida. |
Na região de Bafatá, 120 quilómetros a leste da capital Bissau, Bambadinca é um cruzamento com oito mil pessoas. Literalmente: Bambadinca irradia do cruzamento entre uma estrada de alcatrão esburacado e uma estrada de terra batida, como as que cruzam a maior parte do país – em volta, acumulam-se as casas de adobe com telhados de zinco e pequenos alpendres onde as famílias se sentam a descansar e a conviver, por vezes a cozinhar e a rezar.
Nos primeiros dias de dezembro, as temperaturas já deviam ter reduzido, mas o calor abafa. Várias mulheres da família de Abulai Bilai estão sentadas à porta das duas casas partilhadas pelo agregado de mais de uma dúzia de pessoas. Uma das mulheres, muito jovem, amamenta um bebé. Há crianças a jogar futebol e gritos de felicidade por causa de uma bicicleta, vários miúdos empilhados em cima e constantemente a cair em volta. As gargalhadas ecoam, mas Abulai Bilai não sorri.
Centro Comunitário, noite de sexta-feira, novela brasileira na televisão. As ruas em redor estariam às escuras não fosse a luz projetada das janelas abertas. |
«Considerava ser classe média se o meu salário chegasse a meio do mês», explica zangado. Não chega. E as contas estão feitas: para sobreviver do salário, teria de ganhar pelo menos 114 mil francos CFA – 105 euros. «Pelo menos», repete ele. Ele que, além da mulher e dos filhos, tem a cargo os filhos órfãos de uma irmã. Um agregado a que se junta um irmão com um segundo salário mas também a sua mulher e filhos. Na Guiné é raro um trabalhador viver de apenas um salário.
Normalmente, cada assalariado tem vários empregos e cada família diferentes fontes de rendimento, em diferentes tabuleiros da economia, nomeadamente a paralela, que é a primeira economia nacional. Na família de Abulai, até há pouco, as mulheres cozinhavam para fora. Deixou de ser rentável. Ficaram os salários. E cortaram- se custos. É por isso que a família tem contador e acesso à rede elétrica mas raramente tem eletricidade. «Não temos estofo para manter a luz acesa. Temos um frigorífico, mas não funciona há três meses – está desligado. Não podemos.» Sem eletrodomésticos, Abulai diz que pagaria 41 mil CFA mensais – são mais de 62 euros apenas em lâmpadas acesas.
Na casa de Abulai Bilai, a família tem contador e acesso à rede elétrica mas raramente tem eletricidade. Não há dinheiro. «Temos um frigorífico desligado há três meses». |
«Lus bai, lus bin». «Luz vai, luz vem», em crioulo. A eletricidade é escassa e pouco fiável. Quase todos os dias as lâmpadas se apagam. |
Na verdade, na Guiné-Bissau, não há sequer uma verdadeira rede pública de eletricidade – há diferentes soluções regionais. Ao contrário do que acontece no vizinho Senegal, por exemplo, não existe também uma política energética para as zonas rurais.
Estima-se que entre 1970 e 1990 os programas de eletrificação de zonas rurais tenham levado eletricidade a cerca de oitocentos milhões de pessoas em todo o mundo. Ainda assim, dois mil milhões foram deixados para trás. Entre eles, grande parte dos guineenses. Até 2013, estima-se que a rede elétrica chegasse a apenas 21% da população – 6% nas zonas rurais, 37% nas urbanas. Apenas o ano de 2015 trouxe melhorias a este quadro [ver caixa].
FOI PRECISAMENTE ATÉ ESSE ANO que Luís Vaz Martins presidiu à Liga Guineense dos Direitos Humanos. «Não encontro sociedade alguma que se tenha desenvolvido sem energia. Com energia consegue-se acesso a água de melhor qualidade, conservam-se melhor alimentos e medicamentos, facilita-se a transformação de produtos agrícolas para consumo doméstico e exportação. Sem energia não há investimento privado, muito menos industrialização», diz o especialista. Foi o tipo de temas que a ONGD portuguesa Tese foi buscar para a promoção do seu Bambadinca Sta Claro, uma iniciativa pioneira de energias renováveis que levou à construção da primeira central fotovoltaica da Guiné-Bissau, em 2011.
A microrrede de 1248 painéis solares ficou conclu´´ida em 2015. Custou dois milhões de euros, geridos pela Tese, uma ONGD portuguesa. |
Bambadinca não vinha assim da escuridão mas quase: entre 1983 e 2006 estivera ligada à central de Bafatá, em 2006 esses geradores deixaram de funcionar e a única solução passou a ser a ligação à cidade de Badora, com custos que praticamente ninguém podia suportar. Com a chegada da Tese ao terreno os problemas avolumaram-se: uma mãe contabilizava seis velas diárias para os filhos estudarem; um carpinteiro dizia que em pleno século xxi usar apenas plainas de mão era «como trabalhar num buraco».
Nessa altura, a população desconhecia que tipo de condições viria a ter com a sua central. Mas pouco depois havia já planos em ação: uma mulher decidira comprar um frigorífico e montar um negócio de sorvetes e água fresca – com o lucro previa pagar a eletricidade para os filhos estudarem, a televisão com que lhes mostraria mundo e as ventoinhas com que afastaria os mosquitos, portadores de doenças. Esta mãe chama- se Dilan Fati. É uma das duas mulheres de Abibu Fati, um motorista profissional, responsável sindical da região.
Dilan Fati montou um negócio de sorvetes e água fresca. Com o lucro paga a eletricidade para os filhos estudarem. |
Abibu faz contas aos pequenos sorvetes de sumo de cabaceira: cada um rende cem francos (um cêntimo) – o mesmo que pequenas lojas por todo o lado cobram para carregar um telemóvel. Normalmente, serão 1500 a 2000 CFA (dois a três euros) de rendimento mensal. Em dezembro será menos: aqui o consumo energético é pré-pago; carregam-se cartões para inserir no contador – há três dias que a central tem um problema de software, há três dias que a família de Abibu está sem eletricidade.
É noite quando chegamos à central, um pequeno edifício pintado de verde-garrafa e um descampado com os 1248 painéis que, durante o dia, recolhem e transformam a energia solar. Dja Seidi, o responsável, recebe- nos no alpendre iluminado por uma lâmpada fluorescente branca. Em volta uma nuvem de mosquitos ferozes. «As pessoas esquecem-se de que o papel do Estado seria garantir a energia que esta central produz», diz quando confrontado com a insatisfação popular. «E que nesta região têm de pagar o custo total da eletricidade.»
É que em Bambadinca, ao contrário do que acontece em Bissau, o Estado não comparticipa custos. O que faz uma população já com menos dinheiro pagar mais pelos serviços. E a assimetria é grande. Malam Biai, que nasceu e cresceu em Bambadinca e é operador de câmara da RTP em Bissau, diz que, na capital, tem ar condicionado e, mesmo assim paga apenas 20 mil CFA (30 euros) mensais – metade do que Abulai Bilai diz que gastaria em apenas iluminação.
«A gestão da eletricidade na Guiné é muito política», diz Sara Dourado. A responsável pelo setor energético da Tese não se surpreende com as reclamações em Bambadinca. Correspondem a um problema de «gestão de expetativas». E os números parecem dar-lhe razão.
Com eletricidade em Bambadinca, as pessas reúnem-se à noite e é mais seguro circular nas estradas. |
Depois da época do arroz, a época das chuvas é sempre de carência e as famílias entram em contenção. Já na época do caju, quando há mais dinheiro a circular, os consumos sobem. As vendas aumentam também, por exemplo, às segundas-feiras, dia de mercado.
É SEXTA-FEIRA E MALAM abre caminho até ao centro comunitário onde dezenas de habitantes assistem a uma novela brasileira. As ruas são estreitas e de terra batida. Estariam às escuras se não fosse a luz das lojas que agora ficam abertas até à meia-noite. Isso já torna a vida melhor, nomeadamente para as mulheres, que antes recolhiam mais cedo. Mas essa parece ser uma memória distante. A população agora quer mais.
É no edifício da central que se carregam os cartões pré-pagos que se inserem depois nos contadores de eletricidade nas casas. Quando o software vai abaixo, não se carrega o cartão. E não há luz. |
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