Por Henrique Magalhães Claudino CNN Portugal
A CNN Portugal fez um levantamento dos registos da Assembleia da República e descobriu 23 parlamentares sem qualquer intervenção, ainda que muitos tenham declarações de voto ou questões a ministros. São todos do PS ou do PSD, muitos estreantes, mas há caras conhecidas como Sérgio Sousa Pinto e Fernando Medina.
Telmo Faria estava num dos camarotes do Estádio da Luz quando o árbitro apitou para o intervalo. Enquanto os amigos se juntavam para beber um copo o telefone começou a tocar. “Vi que era o número do Luís Montenegro. Fiquei um bocado nervoso, pedi desculpa e saí.” Era perto das 20:00, faltava um par de meses para as legislativas do ano passado e, na confusão de filas de adeptos, Telmo ouviu o líder do PSD a vender-lhe a ideia de colocar os projetos que tinha para abrir um novo hotel em Óbidos em pausa para poder encabeçar a lista do partido a Leiria.
Seria o fim de um hiato político de onze anos após ter cumprido três mandatos à frente da Câmara Municipal de Óbidos. “Foi uma surpresa, eu não tinha preparado a minha vida para a vida política, mas o Luís Montenegro disse que precisava de mim porque não queria as pessoas do costume. Eu lembro-me de dizer: 'olha Luís, se eu for pensar, vou acabar por desistir'”. Então aceitou, a AD acabou por vencer em Leiria e Telmo chegou disparado ao Parlamento cheio de vontade de se inaugurar no combate político no plenário. Acabou por não fazer nada disso.
Teve discussões azedas com embaixadores, trouxe Enrico Letta ao Parlamento, mas não há um segundo seu de intervenções no plenário registado nos arquivos da Assembleia da República. “Se calhar, se eu estivesse a espernear na sala de sessões com argumentos muito confrontacionais com adversários, se tivesse abraçado esse lado mais espalhafatoso da política, tinha mais importância e mais valor.”
O deputado não é caso único. A CNN Portugal fez um levantamento dos registos da Assembleia da República e descobriu 23 parlamentares na mesma situação. Muitos têm declarações de voto, ou questões a ministros, mas sem intervenções em plenário - aquelas que têm maior exposição pública e que, segundo especialistas na matéria, são as mais valorizadas pelos grupos parlamentares. São todos do PS ou do PSD, muitos estreantes, mas há caras conhecidas como Sérgio Sousa Pinto e Fernando Medina, que decidiram não integrar as listas de Pedro Nuno Santos este ano. Como eles, também Telmo Faria tomou a mesma decisão em rota de colisão com elementos do seu próprio partido.
João Mineiro, antropólogo e investigador no ISCTE, está familiarizado com esta realidade. Durante quase cinco anos foi uma sombra no Parlamento, acompanhando o trabalho parlamentar dos deputados, ouvindo em surdina as suas queixas nos corredores e traçando o perfil de muitos que viram as suas ambições frustradas por não terem tido tempo de antena em debates quinzenais ou intervenções temáticas. No final, escreveu um livro que espelha este ambiente e apresenta uma conclusão: “Os deputados têm todos os mesmos direitos, mas na prática esse princípio é posto em causa por uma série de hierarquias e autoridades que determinam quem tem ou não tem acesso, por exemplo, a encarar um debate na Assembleia da República”, afirma à CNN Portugal.
Há 23 deputados sem intervenções no plenário
Plenário da Assembleia da República no momento do debate da moção de confiança a Luís Montenegro (Lusa)
A zeros nesta categoria ficou também o deputado Davide Amado. Presidente da Junta de Alcântara, o socialista teve um 2024 atípico. Em 16.º nas listas de Pedro Nuno Santos, ficou a ver o seu nome exatamente travado na linha entre os que entraram e os que, como ele, ficaram fora do Parlamento. Isto até às eleições europeias, que levaram Marta Temido para Bruxelas e deram oportunidade a Davide para a substituir e estrear-se na casa da República.
Só que quando chegou, em julho, o Parlamento foi de férias. E quando voltou, passado alguns meses, o Parlamento foi dissolvido após o chumbo da moção de confiança a Luís Montenegro. Exatamente no momento em que tinha previsto estrear-se no plenário. “Apresentei pelo PS um projeto de resolução que recomendava ao Governo um debate público alargado, tendo em vista o plano de requalificação da Praça do Comércio”, “certamente seria a minha primeira intervenção em plenário, mas já não fui a tempo”.
Davide Amado conta também que quando chegou ao Parlamento se deparou com um quadro diferente daquele que esperava. “Confesso-lhe que não tinha ideia da quantidade de trabalho que existe enquanto deputado em todas estas matérias.” Ao mesmo tempo, manteve o seu cargo na Junta. “Obviamente, tenho menos tempo, mas geralmente chego à Junta às sete e meia, oito da manhã. Como moro aqui em Alcântara também é mais fácil. Quando saio da Assembleia venho para Alcântara e volto a trabalhar. Tenho dois trabalhos, mas só tenho um salário, porque não tenho qualquer tempo na junta.”
O deputado foi colocado na Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto e foi a partir dela que conduziu a maior parte da sua ação política. Mas aí notou uma grande disparidade entre a sua esfera de ação autárquica e aquilo que efetivamente podia fazer no Parlamento. “Muitas vezes, estes problemas são problemas muito localizados e a burocracia e todo o processo que leva à resolução ou a criar o caminho para a resolução destes problemas às vezes é muito demorada. Não é uma coisa tão imediata, como ser autarca e poder ter mais facilidade de resolver problemas, embora problemas muito mais pequenos.”
Para muitos estreantes no Parlamento, como aponta João Mineiro, a maior desilusão reportada é a quantidade de entraves que os leva a ter de desistir das ideias e objetivos que estiveram na base da confiança que os eleitores neles depositaram. E muito dessa problemática surge, sublinha o investigador, por causa do funcionamento hierárquico dos grupos parlamentares que começa no líder da bancada e vai descendo degraus até acabar na maior parte dos deputados. “Em cada lugar que se ocupa tem-se mais ou menos margem para o exercício de determinados direitos, por exemplo, de se conseguir inscrever para uma intervenção no plenário, ou para coordenar um processo legislativo, ou para ser protagonista mediático sobre algum tema”, continua. “Mas além dessas hierarquias, que são mais de âmbito parlamentar, há também outras, por exemplo, a relação particular que o deputado tem não com a direção do grupo parlamentar, mas com a direção do partido, que é uma estrutura que está fora do Parlamento. Portanto, há deputados que podem não ter uma posição hierárquica dentro do Parlamento, dentro dos partidos, faz com que tenham muito mais margem de autonomia política interna.”
"Ninguém quer saber"
Telmo Faria durante uma reunião da Comissão de Assuntos Europeus (Lusa)
Na maior parte das vezes, essa desilusão é transmitida logo nos primeiros dias em que os deputados assumem funções. “Logo quando se chega, as pessoas têm de ser organizadas do ponto de vista das comissões a que vão pertencer, das responsabilidades concretas que vão assumir e, portanto, aí percebem imediatamente que há um conjunto de redes já pré-estabelecidas às quais eles têm de se adaptar”, refere João Mineiro, acrescentando que, “muitas vezes, os deputados não se conseguem adaptar para exercer aquilo que esperavam que poderiam vir a exercer ali no Parlamento”.
Na estrutura que o investigador assinala, Telmo Faria ficou bem posicionado. Foi designado presidente da Comissão de Assuntos Europeus (CAE). Mas, com esse cargo, de dentro do partido, foi-lhe passada a mensagem de que teria de se resguardar do combate político no plenário. Algo que não o perturbou. “Eu queria muito mais informação e muito menos representação numa primeira fase, a minha preocupação foi inteirar-me das pastas e passar uma mensagem de que o novo presidente da CAE era uma pessoa disponível e que queria afirmar os assuntos europeus na sua dimensão parlamentar, junto dos diplomatas acreditados na cidade de Lisboa.”
Nesse trabalho, recorda uma intervenção “duríssima” que teve junto do embaixador da Geórgia durante as manifestações de dezembro nas ruas de Tbilisi a exigir novas eleições e o reinício das negociações de adesão à UE. “Posso lhe dizer que com o embaixador foi uma reunião de uma hora muito difícil, porque estava também em causa a contestação aos resultados eleitorais e tinham sido chamadas instituições europeias, como o Parlamento Europeu, para fazer observação eleitoral e depois não gostaram dos relatórios aprovados pelo Parlamento Europeu. Diziam que houve interferência, e eu tive de perguntar ao embaixador porque é que chamam organismos internacionais se depois não aceitam o que eles dizem. E, no final, o embaixador acabou por me agradecer ter sido chamado ao Parlamento, porque tinha sido até àquela data a única instituição que tinha manifestado preocupação por aquilo que se estava a passar na Geórgia.”
O que mais o decepcionou foi a falta de reconhecimento desse trabalho fora do seu staff e dos colegas da comissão. “Pouca gente sabe, além das pessoas que trabalharam comigo, porque ninguém pergunta. Ninguém quer saber. De certa maneira, o trabalho que você realiza não é aquilo que é mais valorizado de alguma maneira.”
Telmo Faria decidiu recusar este ano entrar nas listas da AD em Leiria, após ter visto o seu nome ser colocado em terceiro lugar, atrás da ministra da Juventude e Modernização, Margarida Balseiro Lopes, e de Hugo Oliveira, presidente daquela distrital. “Ia passar de primeiro para terceiro, mas a questão nem era tanto de lugares, era ir atrás de uma pessoa que não estabelecia um ideal de referência que eu gostaria de ver. Fazer listas para que pessoas que não são referências na sociedade as ocupem só porque são presidentes das Distritais é que me parece uma intervenção partidária demasiada e, portanto, não gostei dessa situação e anunciei que a manterem a proposta eu sairia e saí.”
"Há deputados sem qualquer apoio técnico"
Davide Amado, deputado do PS e presidente da Junta de Freguesia de Alcântara, em Lisboa
Já Davide Amado volta a integrar as listas do PS no círculo de Lisboa, mas desta vez numa posição mais avançada - vai em 12.º. Conta ser eleito este ano, o mesmo em que deverá abandonar por definitivo a Junta de Alcântara e também o mesmo em que foi pronunciado para julgamento num processo em que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa terá sido lesada em mais de um milhão de euros. “Obviamente que é difícil lidarmos com este tipo de exposição mediática, mas eu estou neste processo porque era funcionário de uma empresa para a qual comecei a trabalhar em 2002. Nem sequer era presidente da junta. E, neste momento, por ter exposição política, que tem esta questão mediática, agora eu estou muito sereno em relação a isso.”
Quando foi acusado, em fevereiro de 2023, Davide Amado demitiu-se da liderança da concelhia de Lisboa do PS. Em julho do ano passado, ao mesmo tempo que deu os seus primeiros passos no Parlamento, voltou a candidatar-se e a ser eleito. “Em relação a isso, revela apenas e só que os militantes de Lisboa confiam em mim, tal como os alcantarenses, que sempre confiaram em mim.”
Já Telmo Faria, que não vai reeditar a sua passagem pelo Parlamento, aponta que o mais difícil é deixar a comissão que liderava, onde tinha posto em curso um plano para dotar o Parlamento de assessores independentes e especializados em assuntos europeus e que tinha tido luz verde recentemente. “Uma espécie de UTAO para os temas europeus. Esta é a minha última batalha, na qual vou trabalhar até junho e talvez pro bono a seguir a isso.”
Curiosamente, o plano que Telmo Faria tinha posto em curso é paralelo a muitas das frustrações dos deputados ouvidos pelo antropólogo João Mineiro, que dão conta de que a falta de assessoria tem levado ao bloqueio da ação de muitos parlamentares. “Afeta muito, especialmente porque no regulamento da Assembleia consta que todos os deputados deveriam ter uma assessoria individual o que permitiria, teoricamente, que um deputado poderia ter uma ideia que gostaria de apresentar a partir de uma leitura política que faz e depois encontraria nesse apoio técnico uma forma de a concretizar do ponto de vista concreto da lei ou do escrutínio de uma lei existente.”
Na prática, contudo, o que “acontece é que as assessorias dos grupos parlamentares que deveriam ser para apoio ao trabalho individual são assessorias que fazem apoio aos coordenadores dos partidos nas comissões”. “E, portanto, os deputados, a não ser que ocupem um lugar hierárquico nas estruturas do partido ou nas comissões, não têm esse apoio, mesmo que a pessoa queira exercer esse direito político de trabalho.”
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