terça-feira, 3 de março de 2020

Democracia para STJ, democracia do povo: duas visões pós eleitoral em disputa na Guiné-Bissau.

Ricardino Dumas. Professor universitário guineense no Brasil, PhD em Sociologia.

Democracia para STJ, democracia do povo: duas visões pós eleitoral em disputa na Guiné-Bissau.

Por que algumas pessoas advogam o “império da soberania jurídica” do Supremo Tribunal de Justiça guineense e não realçam o “império da soberania popular”, enquanto o fundamento supremo do exercício jurídico constitucional através da vontade popular? Qual é o lugar da expressão “povo” no âmbito de um contencioso eleitoral? Como se articulam o poder formal constitucional com o poder da soberania popular eleitoral? Essas questões trazem, no campo conceitual e analítico, algumas implicações sobre a própria definição do que seja democracia, em suas várias acepções e interpretações.

I. Para começar a consideração básica é a de que as democracias não são todas iguais, apesar de algumas similitudes.

Questões como sistemas de representação e separação de poderes, tipos de constituições, relações civil-militar , participação da sociedade civil e das organizações populares, doutrinas legais, conjunto de direitos e obrigações sociais, econômicos, culturais, religiosos, direitos e obrigações associados com a cidadania, todos diferem significativamente entre regimes que geralmente são reconhecidos como democráticos.

II. Tais questões e acepções têm suas implicações factuais substantivas.

Elas impactam não só as concepções e definições de democracia como também têm um peso substantiva sob a sustentabilidade e aplicabilidade concreta da democracia para que as estruturas formais constitucionais possam conceptualizar sua capacidade de resolução de contenciosos eleitorais, sociais e políticos, dentre outros conflitos multidimensionais. Quando essas capacidades se tornam tão adversas para a resolução de conflitos, o “império da lei”, via constituição, torna-se um significante vazio e a própria democracia e o poder judiciário entram em crise, em consequência inerente suas múltiplas insuficiências factuais substantivas de aplicabilidade e sustentabilidade.

III. Feitas tais considerações e lembrando que as democracias não são iguais, resta-se então analisar os seus pressupostos sociais, culturais e constitucionais que promovem sustâncias factuais, regras e objetivos politicamente desejáveis para que as instituições judiciais possam lidar com as múltiplas dimensões de conflito tendo como foco a realidade política, jurídica e sociológica pós eleitoral guineense.

IV. Tomo como referência duas matrizes conceituais da democracia.

A primeira - a matriz da democracia representativa, minimalista, liberal, de tradição inglesa, cujos pressupostos teriam contribuído o sociólogo Max Weber, o cientista político e economista Joseph Schumpeter e Norberto Bobbio. Para eles, não obstante as diferenças conceptuais, a democracia é entendida como um método político, isto é, um conjunto de arranjos institucionais para chagar a uma decisão política (por exemplo, um contencioso eleitoral, legislativo, administrativo ou societal) É justamente este é o ponto de partida que tem marcado a visão da democracia no contexto do conflito pós eleitoral na Guiné-Bissau, adestrado como “império da lei”. Além de restringir a democracia como um método de arranjos institucionais, meramente constitucionais, há também uma visão segundo a qual as organizações da sociedade civil, o povo, os partidos e associações de modo geral devem agir, de modo concentrado, na luta competitiva no mercado de voto e nos processos pós eleitorais de acordo com as regras constitucionais de jogo político para resolução de conflitos. É a visão normativa de democracia sustentada pelo judiciário e compartilhada por juízes do Supremo Tribunal de Justiça com os quais ocorrem as atribuições constitucionais em democracias representativas.

V. E no caso de Guiné-Bissau, como ficaria essa concepção formal da democracia?

O caso guineense é um contexto sociopolítico específico inserido no contexto global marcado pela fragilidade das instituições, em que os obstáculos à democracia decorre do fato de que o acesso à justiça é restrito e o povo (os pobres) olham a lei como um instrumento de opressão a serviço dos ricos e poderosos, normalmente indivíduos atrelados ao sistema partidário, ou igualmente atrelados ao sistema econômico e coadjuvados por interesses difusos, internos e externos, em que o sistema de justiça tem sido amplamente ineficiente, desacreditado, com recursos escassos à sua disposição. Por isso os juízes são frequentemente acusados de corrupção e dependentes a um sistema político e partidário. Como efetivar o “império da lei”, nesse quadro? A questão aqui não é a de negar a democracia pela ausência das instituições ou pelas suas fragilidades, nem tão pouco acreditar que todos os juízes do STJ sejam realmente facilmente corruptíveis pelo poder político-partidário. Significa sim levar em consideração o quadro sociológico e institucional em que o Supremo Tribunal de Justiça opera, embora sem condições efetivas, operacional e institucional, como sendo a única instância de salvação de interesse público e de exercício da educação democrática e da cidadania em um contexto de fatores multidimensionais que vão para além da própria capacidade institucional e constitucional do Supremo Tribunal de Justiça Guineense. É aqui que entra a tensão entre os interesses públicos e interesses particulares decorrentes da dependência quase total do sistema judiciário ao poder político bastante maleável ao sistema partidário, dependendo do partido político que esteja no poder.

VI. Por acreditarem excessivamente na capacidade jurídica e hegemônica do STJ, não na capacidade administrativa da Comissão Nacional de Eleições na gestão eleitoral, que também é parte do estado, a CNE é instrumentalmente colocada em xeque, em contraposição ao ordenamento jurídico do país. Os defensores da democracia representativa liberal, atrelado ao “império da lei do STJ”, revelam uma visão excessivamente universalista centrada na defesa das “regras de jogo democrático”, isto é, quais as decisões coletivas e quais as pessoas ou instâncias responsáveis capazes de tomar as decisões por meio de contenciosos judiciais, sem se preocuparem com as condições sociais, políticas e institucionais que impõe limites à justiça como “construção social” que se impõe ao exercício pleno e efetivo do STJ. A negação da justiça como construção dos fatos social explica-se pelo excesso de formalismo legal-constitucional.

VII. O excesso de formalismo constitucional gerou outros equívocos, mormente a interpretação universalista que intenta forçar uma aproximação entre a ideia da sociedade guineense e suas instituições com a formatação da sociedade e leis portuguesas, uma referência quase messiânica e obrigatória dos intelectuais e políticos guineenses, designadamente, profissionais de direito que pensam as instituições sociais a partir do arcabouço constitucional. Não defendo que tais referências lusitanas sejam más para a sociedade guineense, principalmente, como um país em construção, mas sim pela forma como os “modelos” da antiga metrópole são assumidos como uma engenharia institucional, à crítica às instituições, sem adequações apropriadas à realidade sociológica guineense, principalmente em momentos de crises sociopolíticas em que, em condições de uma sociedade aberta ao debate público, demandaria reflexões e possíveis formulações ou reformulações dos “modelos institucionais” tidas referencias obrigatórias que garantiriam o sucesso de políticas públicas na Guiné-Bissau.

VIII. Mas isso não acontece apenas em direito. Mesmo no campo da sociologia e da educação, conta-se com Portugal para quase tudo e para “refundar” o sistema, supostamente pelas semelhanças entre os dois países”. Isto é pura aberração, típica de uma pretensa cultura universalista que minimiza a discrepância societal entre a sociedade guineense e portuguesa e nega o debate público, inclusive o debate sobre a própria ideia que se tem da democracia, do direito, do estado e da sociedade que queremos que tratarei mais adiante ao retomar a relação entre a democracia jurídica e a democracia popular. O desafio intelectual, fundamental, pouco debatido, não diz respeito ao modelo jurídico ou educacional a ser seguido, mas sim em como pensar um sistema societal em que o universalismo não se sobrecarregue ou sobreponha as condições estruturais particulares da realidade guineense, sem obviamente desconsiderar o contexto global no qual o país está inserido. Esse é o quadro analítico substantivo que se espera de um debate qualificado na esfera pública guineense.

IX. No caso concreto do contencioso eleitoral, coloca-se a tensão entre o direito à reclamação, plasmado na constituição, e o direito à soberania popular, também garantido pela constituição, mas de cujo fundamento não estaria sujeito à interpretação do STJ, mas sim da interpretação da vontade popular pelo STJ, em que o direito ao voto de todo o cidadão tem igual peso nos termos constitucionais. Muitos, porém, são insensíveis a esse detalhe, pois não conseguem separar a esfera institucional judicial da esfera societal atrelada à vontade popular da democracia. Contudo, não obstante as diferenças entre as duas esferas, há pontos nodais comuns - não necessariamente pela função do STJ em dirimir conflitos, mas sim pela ideia da vontade popular como expressão do conflito dirimido pelo STJ enquanto instituição de um estado para a sociedade como um todo do ponto de vista relacional e interdependente entre ambas esferas de democracia.

X. Democracia do povo para além do STJ

É contra essa visão formalista da democracia que os teóricos da democracia social tentam criar uma alternativa à teoria liberal, elitista, minimalista e corporativa, centrada nas elites e baseada na restrição da soberania popular para a construção de um espaço democrático e ampliação das esferas sociais da democracia participativa que os proponentes da democracia social, em contraposição à liberal, realçam a centralidade da sociedade civil e dos movimentos populares.

Para os teóricos da democracia social popular, de tradição francesa, cujos pressupostos teriam contribuído Rousseau e, mais recentemente, Caroline Pateman e Jurgen Habermas, dentre outros, afirmam que o interesse dos teóricos da democracia representativa liberal era o de funcionamento estável do sistema político democrático, em termos de controle do campo político, porquanto, não se mostravam preocupados com a ausência de controle popular sobre a deliberações das elites políticas para a representação política de suas demandas nas diversas instâncias de interesse nacional. Identifico aqui a visão hoje que se tem de democracia no contexto do contencioso eleitoral guineense. Caberia ao Supremo Tribunal, nessa acepção, a função distintiva para resolver um contencioso cuja atribuição basear-se-á no princípio do “império da lei”, em antinomia à soberania popular, à vontade popular proclamada pela CNE que, ironicamente, também são funcionários públicos do povo e partes integrantes de um sistema social mais amplo, sujeitos à vontade popular à semelhança do STJ. Razão porque o STJ deveria pedir o respeito à vontade do povo guineense expressas através das urnas, e não criar um fato-ato jurídico inexistente do objeto do contencioso, solicitando a ata de apuramento nacional para depois ser pleiteado pelo candidato derrotado fora do quadro de reclamação nas mesas de votação, nos círculos eleitorais, estabelecida em lei eleitoral, segundo as alegações de Comissão Nacional de Eleições, composto também por juízes do STJ, legitimados por um poder da soberania representado pela Assembleia Nacional Popular da República de Guiné Bissau, de notável saber jurídico e idoneidade moral.

XI. A ideia da democracia popular ou social pressupõe a luta da sociedade civil e indivíduos pela construção das condições sociais pelos próprios atores coletivos, incluindo as condições materiais, institucionais e judiciais para o bom funcionamento e autonomia do STJ; uma forma de democracia interna da própria sociedade guineense, da qual o Supremo Tribunal de Justiça e a CNE são partes do sistema social, que se espera democrático, em colaboração com outros aparelhos de estado como é o Ministério Público, mas o STJ não é a única parte de um todo. O termo “público” é um ponto de conexão entre a ideia de democracia formal e democracia social popular dos movimentos sociais e da sociedade civil, em constante diálogo e mediações institucionais. Todavia é preciso não romantizar a ideia de “popular” atrelada à sociedade civil”, porquanto, como sabemos, a ideia da democracia participativa popular também apresenta seus limites e fragilidades a que se junta a outras fragilidades de democracia representativa, formal e minimalista, em particular, no contexto guineense.

XII. Tomo aqui como referência as fragilidades da emergência de “novos” grupos e organizações da sociedade civil, na Guiné-Bissau, sobretudo na cidade de Bissau, em que encontramos os limites dessa abordagem de democracia participativa popular em variadas formas de participação e inserção social, política e econômica, de organizações ou indivíduos que são apêndices do partido político que esteja no controle de poder político estatal, de cujos dirigentes são escolhidos entre aqueles que mais e melhores serviços partidários prestaram para assunção de cargos públicos no governo a partir do qual contribuem com os recursos estatais financeiros para grupos afins, produzindo uma profunda deformação da ideia “idealizada” que se tem das organizações da sociedade civil e dos movimentos sociais populares como repositórios da ética, da moralização política e do bem púbico, sobretudo de algumas ONGs, em tempos de crise política que demanda a necessidade de mudança de mentalidades e busca de alternativas práticas às desgraças nacionais, regionais e setoriais.

À semelhança como ocorre com a concepção meramente normativa da democracia, encontramos sobretudo nas ONGs a mesma visão normativa e instrumental da democracia que se tem das organizações da sociedade civil e dos movimentos populares como espaços de ressonância de interesse particulares, mormente, nos períodos tensos de disputas eleitorais à Presidência ou apoio à disputa entre executivo e legislativo, entre o judiciário e forças sociais e políticas contrárias ao governo que esteja no controle do exercício de poder político, como é o caso do sindicalismo em luta constante pelas melhorias de condições de existência humana e profissional, bem como dos movimentos de estudantes que lutam pelo acesso à educação formal, principalmente no que tange ao funcionamento de escolas públicas. Aqui reside outra fragilidade atrelada ao princípio jurídico do “império da lei” em uma sociedade em que o direito à justiça e educação são publicamente inexistentes, constantemente violado pelos próprios atores do estado a quem compete, constitucionalmente, garantir a efetividade factual de “direitos humanos a ter direitos”.

Qual seria o fundamento da legitimidade factual de direito e obrigação no contexto pós eleitoral do contencioso eleitoral? É possível falar da “legitimidade constitucional” sem se referir a “legitimidade popular” do ponto de vista de sua incorporação para aceitar a autoridade do STJ? Quais são os limites do fundamento constitucional do “império da lei” constantemente evocado se ele é quase inexistente, inoperante, questionado ou repudiado quando não agradam grupos que hoje advogam a sua supremacia de decisão jurídica-social, institucional-política, ética-moral na esfera de contendas pós eleitorais?

XIII. A atual disputa pós eleitoral, deslocada do campo político partidário para o campo jurídico, no âmbito do Supremo Tribunal de Justiça, de Guiné-Bissau, extensivo aos demais países da África, da Europa e da America Latina, coloca o desafio de articulação entre soberania popular e elementos constitucionais, legais e parlamentares que colocam em ação os princípios de limitação do poder do Supremo Tribunal de justiça e separação de poderes, não só em nome da soberania popular-eleitoral, como também em nome dos direitos fundamentais do povo guineense, que passa pelo respeito ao Voto popular, sem desconsiderar os fundamentais formais do arcabouço constitucional.

XIV. De igual modo, não se pode falar de um sistema democrático cujo fundamento da soberania popular coloca em xeque os direitos fundamentais ao pluralismo de atores sociais e políticos e a defesa das liberdades dos indivíduos, organizações, candidatos e partidos. Assim, a democracia, em suas concepções constitucionais formais e sociais populares, pode ser entendida como a interdependência entre a soberania popular e normas constitucionais, entre as atribuições da CNE e do STJ, entre partidos e sociedade. Apesar de constituírem esferas distintas, há um ponto nodal de prática articulatória que congrega a ideia da democracia popular com atribuições constitucionais da democracia.

XV. No primeiro caso, denominado de democracia popular, o princípio básico da regra de convivência democrática é o “poder do povo”, via eleições periódicas de candidatos a cargos eletivos para o parlamento e para a presidência da república. A legitimidade do voto dos cidadãos deve ser a base democrática de qualquer sociedade. O STJ, por sua vez, deve respeitar a escolha do povo, sem distinção de etnia, religião, condição econômica, estilo de vida, sexo, etc. No segundo, chamada de democracia formal constitucional representativa, interpretada como o princípio jurídico do “império da lei” por funcionários públicos do STJ, parte-se de princípio segundo o qual todos os cidadãos, organizações, grupos ou partidos que gozam de direitos políticos fundamentais, são livres para reclamar, ser ouvido e garantido seu contencioso, seja de qual natureza for, ao máximo possível, livremente, em uma livre disputa entre grupos políticos e sociais em concorrência entre si que envolvam a decisão do judiciário, seja ainda por salvaguarda da escolha popular sujeita à vontade do povo guineense, sujeita à contestação, mas não passíveis de suplantação pela “democracia dos juízes” atrelados ao STJ fora do quadro legal eleitoral e da Constituição da República de Guiné-Bissau.

XVI. Isto porque a democracia não é um simples Acordão de engenharia constitucional. Ainda que seja um fator importante em democracia, não é o único. Nenhuma manifestação eleitoral, majoritária, da vontade popular, via sufrágio universal, direto e secreto, com a presença de representação de todos os candidatos e sem contestação nas mesas de votação e junto à Comissão Nacional de Eleições deve ser suplantada por “homens de leis”. A democracia é a expressão popular por excelência e revela-se uma condição social, histórica e política particular, própria do aprendizado político e cívico de cada sociedade que, identificando-se com a ideia do “homem novo” de Amílcar Cabral, a participação popular é a sua realização plena.

XVII. Não pode haver sobreposições nas relações entre as instituições, organizações, grupos, etnias e partidos ou nas relações entre o executivo, judiciário e legislativo e nas relações entre os cidadãos e o Estado. A interpretação do contencioso eleitoral, em suas diversas acepções que se possa fazer, evidencia a tensão entre os pressupostos da democracia formal de “regras de jogo” e democracia popular da participação da sociedade como sua expressão sine qua non que garante a legitimidade de qualquer Estado Democrático de Direitos Humanos. Além disso o contencioso revela a fragilidade do recurso à Justiça em definir o “jogo” tendo o fundamento da soberania popular estabelecido em regras para a escolha eleitoral à presidência, coloca limites ao STJ que aparece como parte do “jogo” do campo político pós eleitoral mais amplo entre forças políticas e sociais articulados em torno de candidatos, partidos e grupos de interesses em luta para o controle do Estado que coloca em disputa a própria ideia de democracia.

Professor universitário guineense no Brasil, PhD em Sociologia.

2 comentários:

  1. Interessante. Matéria para estudiosos

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