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POR LUSA 20/08/23
O major-general José Arnaut Moreira defende que o sonho imperial russo acabou em abril de 2022, três meses depois da invasão da Ucrânia, e o líder do Kremlin, Vladimir Putin sabe, que a guerra "está absolutamente perdida".
Para o especialista militar, em entrevista à Lusa, a ofensiva russa, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, é "na verdade uma continuação da guerra de 2014", com a anexação ilegal da Crimeia e a insurreição no Donbass, leste da Ucrânia, e só acontece por "desleixo Ocidental", quer da NATO quer da União Europeia, que viviam "numa certa esperança de grande cooperação com a Federação Russa" e fecharam os olhos às ações hostis de Moscovo.
"A invasão de 2022 é a concretização do sonho imperial russo. Isto é, a Federação Russa considerou que estavam reunidas as condições de natureza política, porque a leitura daquilo que tinha feito o Ocidente em relação à guerra de 2014 mostrava o Ocidente desunido, fraco e sem capacidade de resposta", observou, a que se somou a militarização da Crimeia.
Criaram-se, segundo o analista militar, todas as condições para, "em 2022, o sonho imperial russo passar a ter afirmação e expressão territorial", mas que, na verdade, só durou três meses, quando se tornou claro que o poder político não ia colapsar em Kiev e que as forças armadas da Ucrânia eram capazes de conduzir ações de natureza defensiva contra o segundo maior exército do mundo.
"A partir de abril do ano passado começou um novo período a que eu chamaria o período da esperança ucraniana", sustentou Arnaut Moreira, que recordou a recuperação de território pelas forças de Kiev, logo naquele que se encontrava ocupado nas proximidades da sua capital, no norte do país, e da retirada das forças russas das regiões de Kharkiv, no leste, e de Kherson, no sul, no ano passado.
Uma ofensiva falhada de Moscovo no início de 2023 foi acompanhada de campanhas de destruição de infraestruturas civis em pleno inverno.
A anunciada contraofensiva ucraniana começou em junho, atrasada devido a demoras na entrega do equipamento moderno prometido pelo Ocidente, o que permitiu às tropas da Rússia estabelecer defesas bem montadas, justificando os avanços lentos das forças de Kiev desde então, o que, para o major-general, é "absolutamente normal em todas as guerras", porque todas "começam com planos brilhantes" que depois não se verificam.
"Às vezes concentramo-nos muito apenas no pequeno espaço de tempo do que aconteceu nas últimas semanas, mas a verdade é que a Ucrânia já recuperou mais de 50% do território que a Federação Russa conseguiu no início", observou. Adverte, por outro lado, que o número de quilómetros quadrados conquistados é irrelevante quando visto de forma mais ampla.
Segundo o analista, a confirmarem-se, ainda que lentos, os avanços ucranianos no sudeste do país, na direção de Berdyansk, Melitopol ou Mariupol, as tropas de Kiev nem precisam atingir o Mar de Azov, "porque a certa altura a profundidade estratégica é insuficiente" para a manutenção de forças da Federação Russa ocupantes.
"O que é importante não é chegar ao mar de Azov. O que é importante é olhar para onde passam as linhas férreas e para onde passam as linhas de abastecimento rodoviárias, que fazem a ligação entre o Donbass e a Crimeia e a zona de Armyansk, e se essas linhas forem cortadas, vão cair como um castelo de cartas todas as forças russas que se encontrem a ocidente delas (...) e muitos quilómetros quadrados sem disparar um tiro", apontou parecendo-lhe que estes objetivos de Kiev foram "muito bem escolhidos", tal como a Ponte da Crimeia, sem a qual "não é possível sustentar" um grande volume de tropas nesta zona.
"Putin sabe perfeitamente que esta guerra do ponto de vista militar para a Federação Russa está perdida", considerou Arnaut Moreira, que não vê "nenhuma capacidade" de Moscovo conquistar a Ucrânia neste momento, mas também do ponto de vista geoestratégico a derrota é evidente, "não há como esconder".
Ninguém apoia militarmente de forma aberta a Rússia, argumentou, enquanto todo o Ocidente alargado está a ajudar a Ucrânia do ponto de vista económico, financeiro e em armamento, contribuindo também para o isolamento de Moscovo a adesão da Finlândia à NATO, e provável da Suécia, países até aqui neutrais, o que significa que o Kremlin "não tem capacidade de atração sobre os seus vizinhos, apenas de repulsão" e não há liderança geoestratégica sem esse poder.
Um dos argumentos para a invasão russa foi justamente a aproximação da Aliança Atlântica às suas fronteiras, através da Ucrânia, mas ela acabou por acontecer de qualquer forma e bastante extensa, através daqueles países nórdicos - fazendo do Mar Báltico, "onde a Rússia ainda dispunha de alguma liberdade, um mar autêntico da NATO" - e futuramente com a possível adesão de Kiev, também candidata a estado-membro da União Europeia.
Em suma, "a Rússia sai perdedora de todo este conflito", a que se adiciona, ainda no capitulo das fragilidades, a debilidade económica de Moscovo, evidenciada pela acentuada queda do rublo, após o período em que as autoridades russas estiveram "a vangloriar-se de que as sanções não tinham qualquer efeito sobre a economia da Federação" e que mantinha "um conjunto grande de divisas acumuladas em face dos negócios milionários que ela conduziu com a própria Europa em relação àquilo que eram os bens de natureza energética".
Para o major-general, "tudo isso são coisas do passado" e a narrativa de que apenas o rublo conta para efeitos de economia doméstica não é verdade, na medida em que Putin retirou recursos da produção de bens para os colocar na indústria militar e que as importações ficarão mais caras, com custos para a classe média.
A própria guerra fria, lembrou, não terminou com uma derrota militar da União Soviética, mas "com uma derrota de natureza económica e social, porque nada daquilo que foi prometido acabou cumprido", tal como, no mesmo sentido, não augura "nada de bom" para a economia russa.
Arnaut Moreira também não tem nenhuma perspetiva de negociação entre as partes, como foi levantado na semana passada por um alto funcionário da NATO, sugerindo que Kiev poderia abdicar de território a troco do acordo de Moscovo na sua adesão à Aliança Atlântica (opção prontamente desmentida pelo secretário-geral Jens Stolternberg).
"Cada novo território entregue é uma base de partida para novas aspirações imperiais depois", alertou o analista militar, recordando que cada conquista e derrotas de ambas as partes tiveram custos humanos, e materiais, e frisando que nem vê nenhum ator internacional com capacidade de persuasão para sentá-las à mesa.
A guerra vai então prolongar-se por tempo indeterminado, em que a Rússia, na análise de Arnaut Moreira, já denota dificuldades de reposição de forças, mantendo-se em postura defensiva, enquanto Putin "espera que isto se resolva do ponto de vista político" e pelas eleições para a Casa Branca em 2024, em que uma vitória de Donald Trump poderia virar o jogo a seu favor.