Na segunda-feira, 19 de maio, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, afirmou que manterá o controlo total sobre Gaza, mesmo perante o colapso humanitário e a crescente pressão internacional. A ajuda humanitária, que continua a entrar a conta-gotas e está ainda muito aquém do mínimo necessário, só começou a circular após pressões externas diretas.
O Reino Unido, a França e o Canadá emitiram uma nota conjunta classificando a ofensiva israelita como desproporcionada e inaceitável, num tom que reflecte isolamento diplomático e ameaça de sanções. Parte desta mudança de postura europeia deve-se a um despertar de consciência, ainda que tardio, mas também ao receio de que continuar a ignorar as ações de Netanyahu destrua de vez a credibilidade do sistema de direito internacional, o mesmo sistema que exige que Vladimir Putin preste contas pela sua agressão ilegal e imoral contra a Ucrânia. Donald Trump, até então em silêncio, também passou a pressionar Netanyahu, não por empatia ou princípios, mas porque precisa de manter boas relações com os países do Golfo para avançar com acordos estratégicos e sabe que as imagens de crianças famintas em Gaza dificultam esse jogo.
Entretanto, os ataques aéreos e terrestres continuam sem tréguas, com evacuações forçadas em Khan Younis e bombardeamentos a atingir escolas e habitações em Deir al-Balah e Nuseirat. Mais de 53 mil pessoas já morreram, segundo autoridades locais, mas o governo israelita insiste em falar de progressos e operações cirúrgicas. A ajuda prometida pelos Estados Unidos, entregue através de empresas privadas num plano já rejeitado pela ONU, continua bloqueada. E os poucos camiões que entram visam apenas conter a revolta dos aliados. A libertação parcial da ajuda não parece ter sido motivada por compaixão, mas sim por cálculo político. Netanyahu percebeu que as imagens de Gaza começavam realmente a ameaçar o apoio internacional. Oficialmente, Israel nega estar a usar a fome como arma, mas as declarações públicas e a realidade no terreno sustentam essa perceção.
A frase “vamos ocupar, limpar e ficar lá até destruir o Hamas. E pelo caminho, vamos destruir tudo o que restar da Faixa” não foi proferida por um extremista qualquer. Foi dita pelo ministro das Finanças, Bezalel Smotrich. É a confissão clara de que o objetivo vai para além do Hamas. Visa destruir também a infraestrutura civil de Gaza. E quando o próprio Netanyahu admite que o bloqueio serve para pressionar o Hamas, está, na prática, a reconhecer que a punição coletiva se tornou política de Estado. Neste cenário, continua a repetir o slogan da “vitória total”, uma expressão vaga, moldável, usada para manter o apoio dos setores mais radicais do seu governo e adiar, mais uma vez, a pergunta central: o que fazer com Gaza quando só restarem os escombros?
Existem aqui dois pontos principais que merecem atenção. O primeiro diz respeito à forma como tudo isto tem sido conduzido. Relativizar crimes com base na ideia de vingança ou sugerir que o sequestro de reféns justifica punições coletivas, como o uso da fome como arma de guerra, é profundamente perigoso. O sequestro de civis é um crime de guerra, previsto no artigo 8.º do Estatuto de Roma, mas o assassinato de civis e o bloqueio de ajuda humanitária também o são. Israel já venceu militarmente. Desmantelou grande parte do Hamas, decapitou a sua liderança, enfraqueceu a sua capacidade operacional. O que resta é uma força guerrilheira dispersa e uma ideologia que, como tantas outras, é impossível de eliminar com bombas.
Netanyahu afirma que o seu objetivo é a destruição total do Hamas, uma organização terrorista cuja carta fundadora prevê a eliminação do Estado de Israel. Isso não é exagero nem propaganda. É, de facto, uma ideologia de extermínio. E ela manifesta-se nos atos praticados. A 7 de outubro de 2023, homens armados invadiram casas, executaram famílias inteiras, queimaram crianças nos quartos, decapitaram soldados, violaram mulheres até à morte e celebraram cada morte como um feito heróico. Um bebé foi encontrado carbonizado no berço. Uma jovem foi arrastada pela rua com o corpo dilacerado. Diante dessa barbárie, é legítimo que Israel queira destruir o Hamas. Um governo cuja população é alvo desse nível de crueldade não só pode, como deve, procurar desmantelar o grupo responsável.
Mas o modo como essa resposta tem sido conduzida levanta sérias preocupações. Não é aceitável normalizar crimes de guerra com base em vingança. Se Israel é um Estado democrático, reconhecido internacionalmente, com forças armadas regulares e representação diplomática, então tem também a obrigação moral de respeitar os padrões definidos pelo direito internacional. O Hamas não segue essas regras, mas é precisamente isso que distingue um Estado de uma organização terrorista. Combater o Hamas é legítimo. Transformar Gaza num território sem lei, não.
Na prática, Israel já impôs derrotas estratégicas ao Hamas. A organização perdeu parte significativa da sua estrutura e da sua liderança. O arsenal foi severamente danificado. No entanto, continua a operar como força guerrilheira adaptável e resiliente. Estima-se que tenha recrutado cerca de 20 mil novos combatentes, que reutiliza munições não detonadas de origem israelita, controla o mercado paralelo de ajuda humanitária e reprime dissidência interna. Ou seja, continua funcional. Mas já não é a ameaça centralizada e ofensiva que era antes. Foi desarticulada, isolada e empurrada para as margens. É justamente por isso que insistir em mais destruição não reforça a segurança de Israel. Apenas prolonga o sofrimento em Gaza e mina o apoio internacional que ainda sustenta parte da legitimidade da operação militar.
Hoje, a sociedade israelita está exausta. Após meses de guerra, mais de 70 por cento da população apoia um acordo com o Hamas para a libertação dos reféns, mesmo que isso implique concessões difíceis. De acordo com estimativas oficiais, permanecem 58 reféns, dos quais pelo menos 20 estarão vivos. A continuação dos bombardeamentos pode pôr em risco precisamente esses que ainda podem regressar. E então impõe-se a pergunta que cada vez mais israelitas fazem em voz alta. Se estas operações colocam os reféns em risco e não garantem a destruição total do Hamas, para que servem? A resposta mais honesta continua a apontar para o mesmo lugar. A sobrevivência política de Netanyahu.
Manter a guerra ativa serve múltiplos propósitos para Netanyahu. Desvia o foco dos escândalos que o envolvem, mantém pressão sobre o Hezbollah e o Irão e reforça o apoio interno entre os seus aliados da extrema-direita, que defendem a reocupação completa de Gaza e até a expulsão dos palestinianos. O que deveria ser uma resposta de segurança nacional transformou-se, pouco a pouco, numa estratégia de manutenção no poder.
O escândalo conhecido como Catargate só agrava este cenário. Envolve assessores próximos, contratos suspeitos e indícios de influência comprada vinda de Doha. Netanyahu ainda não é formalmente investigado, mas há sinais claros de que tinha conhecimento do caso, como a tentativa de demitir o chefe do Shin Bet, Ronen Bar, num gesto amplamente interpretado como retaliação pela sua atuação nas investigações. No fim, o que se vê é uma sociedade que foi atacada brutalmente a 7 de outubro e que hoje, sem esquecer esse trauma, continua a sofrer nas mãos de uma liderança que deveria protegê-la, politicamente, moralmente e estrategicamente.
As consequências da política de Netanyahu não se limitam a Gaza. Estão a corroer Israel por dentro. A sociedade israelita, alvo de uma atrocidade em outubro, hoje encontra-se refém de um governo que instrumentaliza o medo, o luto e a sede de justiça para se manter no poder. A maioria apoia um cessar-fogo como forma de recuperar os reféns, mas esse desejo legítimo está a ser manipulado. O governo alimenta a ilusão de que mais bombardeamentos podem resultar em resgates, quando quase todos os reféns libertados até agora o foram durante tréguas humanitárias, não durante operações militares. As famílias vivem num ciclo de falsas promessas e frustrações.
Esta manipulação tem efeitos profundos. As críticas internas estão a aumentar. Famílias de reféns acusam abertamente Netanyahu de os usar como moeda política para prolongar a guerra. E quando um país como Israel, cercado por inimigos, começa a fragmentar-se internamente, o risco é duplo. Vulnerabilidade externa e colapso da coesão nacional. Manter a unidade interna deveria ser prioridade estratégica. Netanyahu faz o oposto.
Ao colocar a sua sobrevivência política acima dos interesses nacionais, Netanyahu sacrifica até vidas israelitas. Para agradar aos setores mais extremistas, normalizou a violência, expôs soldados a riscos evitáveis e prolongou uma guerra que já perdeu qualquer racionalidade estratégica. Os mais de 52 mil mortos em Gaza, a maioria civis, deveriam ser suficientes para acender todos os alertas. Mas nem a vida dos próprios cidadãos parece ser limite para um governo disposto a tudo para se manter no poder.
Externamente, Netanyahu está a isolar Israel como nunca. A nota conjunta de Reino Unido, França e Canadá exigindo a suspensão imediata da ofensiva, a entrada irrestrita de ajuda humanitária e a colaboração com a ONU mostra que até os aliados históricos estão a perder a paciência. Uma outra nota, assinada por 22 ministérios dos Negócios Estrangeiros da União Europeia e três altos representantes, exige a libertação imediata dos reféns e o recomeço da ajuda humanitária em larga escala. A forma como a guerra tem sido conduzida viola o direito internacional humanitário, alimenta acusações de genocídio no Tribunal Internacional de Justiça, impulsiona o antissemitismo no mundo e mancha a memória do povo judeu, vítima das maiores atrocidades da história.
Num momento de crise das normas internacionais e do multilateralismo, Netanyahu contribui diretamente para a perda de legitimidade de Israel no sistema internacional. A emissão de um mandado de captura contra o primeiro-ministro por parte do Tribunal Penal Internacional, ainda que no contexto de combate ao terrorismo, é um marco negativo inédito para a imagem institucional do país. Ao mesmo tempo, cresce a influência do extremismo religioso na definição das políticas israelitas. Ao tentar salvar-se, Netanyahu compromete o futuro de Israel por dentro e por fora.
No fim de contas, os israelitas não enfrentam apenas um inimigo. De um lado, há grupos terroristas que defendem abertamente a destruição de Israel e que devem, sim, ser combatidos. Mas do outro, há um primeiro-ministro que se tornou um risco interno. Um líder que isola diplomaticamente o país, sabota a possibilidade de resgatar reféns, mina a coesão nacional e expõe os seus soldados. Tudo para prolongar uma guerra que já não se justifica. Netanyahu transformou uma resposta legítima ao terror numa máquina de destruição descontrolada, que alimenta o extremismo, fomenta o antissemitismo e desgasta a imagem de Israel no mundo. Hoje, o país que ele diz defender está mais vulnerável, mais dividido e mais desacreditado. E isso não é culpa do Hamas. É o resultado direto de quem governa como se o cargo fosse um escudo pessoal.